Um ano e não tem pai

Um sistema bancário sombra carreava empréstimos (que depois revendia) baseado na ideia de que os preços do imbiliário nunca caíriam. Quantos exemplos históricos havia para justificar esta ideia? Zero. A presente crise, como todos sabemos, não foi culpa de ninguém. A crise começou há um ano (e um dia) quando a falência do banco Lehman Brothers lançou um tal pânico nos mercados financeiros que todo o sistema ficou à beira do colapso. “This sucker could go down” — esta brincadeira pode ir pelo cano, disse um George W. Bush em pânico, na Casa Branca, nos últimos dias do seu mandato. A culpa não foi de Bush. Não. Na verdade, a crise começou um ano antes disso, em Agosto de 2007, quando os preços do imbiliário americano começaram a cair, arrastando com eles os créditos e as dívidas de milhões de americanos. Um sistema bancário sombra carreava empréstimos (que depois revendia) baseado na ideia de que os preços do imbiliário nunca caíriam. Quantos exemplos históricos havia para justificar esta ideia? Zero.

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Quero lá saber das expectativas

No diário El Mundo: “Portugal no es una provincia de España — enfatizó Manuela Ferreira Leite, exaltada, en el debate”. A diferença entre um debate e o governo é que no debate é preciso ganhar às expectativas. No governo é preciso ganhar à realidade. A diferença entre uma coisa e outra é que, no primeiro caso, basta ser menos mau do que esperavam de nós. No segundo caso é preciso ser o melhor possível. (Na verdade, ninguém ganha à realidade. Mas é preciso tentar sempre.) A realidade, para Portugal, não é favorável. Um país pequeno e periférico ou quase, com mais tempo de autoritarismo do que de liberdade, mais tempo de ignorância do que de conhecimento. Ganhar à realidade, no nosso caso, significa fazer das fraquezas forças; onde há pequenez criar cosmopolitismo, onde há prepotência exigir democracia, onde há desvantagens naturais inventar possibilidades alternativas. Ganhar à realidade significa, pelo menos, fazer por isso.

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Mau karma

Mas como lembram os mesmos budistas, esse karma não é um azar nem uma fatalidade; é a consequência do caminho que escolhemos. Uma pergunta útil nestas situações: se fossem outros a fazê-lo, como me sentiria? Nem sempre é possível responder com imparcialidade. Mas às vezes é só usar a memória. Em 2005 os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI foram cancelados após protestos e reclamações do governo Santana Lopes. Eu lembro-me de como fiquei. Indignado. Não fui só eu: toda a esquerda ficou furibunda e uma boa parte da direita envergonhada. Quando comentamos o caso do Jornal Nacional de 6ª feira [JN6], que foi cancelado pela mesma estação, convém ter isto em memória.

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De Ataúro

Quem esteve neste país em 1999 diz que já não se consegue imaginar o grau de destruição deixado pelas milícias e pelas tropas indonésias. Belloi, Timor Leste. — A ilha de Ataúro, última porção de Timor Leste sob domínio português até poucos dias antes da invasão indonésia em 1975, tem os contornos de uma gota de água e talvez a área da ilha Graciosa, nos Açores. Vivem aqui cerca de nove mil pessoas, que falam tétum e uma outra língua local, nas montanhas, com vários dialectos. Vivem aqui duas missionárias brasileiras protestantes, uma baptista que fala tétum com sotaque de Minas Gerais, a outra calvinista e oriunda da Paraíba. Faço a esta uma pergunta com rasteira: como decidiu vir para aqui? A missionária, que acredita na doutrina da predestinação, não se deixa enganar: não decidiu vir, diz-me, orou e Deus permitiu que ela viesse.

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Num país mais do que viável

A questão é mesmo onde estão os portugueses; souberam angustiar-se e sofrer com Timor Leste. Mas parece que não sabem o que fazer agora. Díli, Timor Leste. — Os pessimistas estão sempre em vantagem. Se as coisas correm mal, ganham porque tiveram razão. Se as coisas correm bem, ninguém se lembra que eles erraram; todos sentem que ganharam, e eles ganham também. Os optimistas estão sempre em desvantagem. Se as coisas correm mal, perdem mais ainda por terem tido a imprevidência de ser optimistas. Se as coisas correm bem, — bem, então nesse caso toda a gente se esquece que eles acertaram, ninguém pensa mais no assunto, toda a gente sente que ganhou, — e os optimistas, no máximo, empatam. Aqui em Timor Leste, as pessoas dão-se ao luxo de estar optimistas, Dos yuppies engravatados das embaixadas aos hippies desgrenhados das ONG’s, todos me dizem que “Timor Leste não está nem sequer perto de ser um estado falhado”. Acima de tudo, são os próprios timorenses de todos os tipos, do governo à oposição e da universidade ao campo, que nos fazem pensar que Timor Leste está bastante melhor do que simplesmente não ser um estado falhado.

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Lendo um jornal de Singapura

Na última década os salários dos singaporenses aumentaram mais do que o preço do imobiliário durante oito anos seguidos. Em trânsito. Durante estes dias, em missão fora do país, não adianta sequer tentar acompanhar a campanha eleitoral em Portugal, que deve estar a ganhar pedalada. O jornal que tenho à mão é, aliás, a coisa menos luso-lusitana de que me poderia lembrar: um exemplar do The Straits Times, de Singapura, datado de 22 de Agosto. Tem fama de ser um dos melhores jornais asiáticos em língua inglesa, e eu conhecia-o apenas da internet. Em papel, com a tinta desbotando-se nas mãos, é uma janela para outro mundo. Primeiro exemplo: um artigo sobre como os singaporenses andam a comprar mais casas por causa do aumento de rendimentos entre a população. Na última década os salários dos singaporenses aumentaram mais do que o preço do imobiliário durante oito anos seguidos.

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O Brasil visto de outro ângulo

Pela sua história, língua, dimensões e pelo simples facto de a América portuguesa se ter mantido unida num só país, o Brasil é um caso à parte. México. — Este é o país que mais sofreu com a crise. O número de pobres aumentou de seis para dez milhões, um Portugal inteiro. Metade dos novos pobres da América Latina estão agora aqui. O México está a pagar o preço de ter apostado todo o seu futuro num só país, os Estados Unidos, que são o seu grande vizinho do norte. Quando a bolha do imobiliário rebentou na Califórnia, as ondas de choque atingiram em primeiro lugar os mexicanos; os jardineiros ou as empregadas domésticas que trabalhavam em San Diego ou Los Angeles voltaram cruzar a fronteira para Tijuana; as famílias para quem eles enviavam dinheiro tiveram de apertar o cinto; os sectores que exportavam do México para os EUA enfrentaram uma contracção da procura. Pôr os ovos todos no mesmo cesto nunca foi boa ideia — lembram-se de quando as três prioridades externas de Sócrates eram Espanha, Espanha e Espanha?

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Novo presidencialismo e novo parlamentarismo

Comecemos pelo que sabemos relativamente bem. É muito difícil sair uma maioria absoluta das próximas eleições, e igualmente difícil formar-se uma coligação maioritária após a contagem dos votos. Há gente, em todos os partidos principais, que garante já saber exactamente o que fazer daqui a dois anos — quando o governo cair — ou o líder mudar — ou o partido fizer uma coligação — ou o presidente mandar — ou após as eleições antecipadas — e por aí fora. Espanta-me o vigor destas profecias. Não porque seja impossível qualquer destas coisas acontecer, mas porque necessitaria, cada uma delas, da conjugação perfeita de três ou quatro variáveis com a não-ocorrência de três ou quatro imprevistos. Ora uma boa profecia política não pode depender de muitas variáveis, mas de uma, ou no máximo duas, contra as quais aposte a maioria das pessoas. Com cinco partidos, vários actores secundários, uma dezena de combinações de resultados possíveis, possíveis alterações de liderança, mais conjuntura económica e alianças políticas, só será possível acertar se se apostar em tudo e mais alguma coisa.

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Bom! Bonito! Barato!

Eu também sonho às vezes com uma escrita que fosse só palavras, sem convenções gráficas. Mas a escrita é toda ela convenção; e logo vejo que há sinais gráficos a menos e não a mais. Há uns anos, a revista The Economist decidiu publicar um texto só com palavras curtas, porque Winston Churchill tinha dito uma vez que as palavras curtas eram as melhores. O autor ou autores, anónimos como sempre naquela revista, pareciam orgulhosos pelo seu feito, e convencidos de que tinham produzido um escrito pragmático, sucinto, preto-no-branco, claro, concreto e totalmente isento de toda a conversa fiada. Estavam errados. O texto era ilegível, o que até a mim surpreendeu. Aquela sucessão de palavras estreitas, na matraqueação das suas quase sempre duas sílabas, era o equivalente literário do ruído da electricidade estática e fazia da folha impressa uma paisagem de cagadelas de mosca. Sem palavras compridas, difíceis ou rebuscadas, não havia nada a que o cérebro se pudesse agarrar, nada que o intrigasse ou o forçasse a perder tempo, nada que segurasse a sua atenção. O texto declaradamente mais objectivo e anti-elitista era na verdade o mais arrogante e pseudo-intelectual dos manifestos. Assim é; e assim é também com a ideia equivocada, dominante no jornalismo literário, de que um bom texto deve ser feito de frases curtas.

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Deixem os rapazes em paz

O Rodrigo Moita de Deus foi constituido arguido, e o Henrique Burnay levado para a Polícia Judiciária, por causa do caso da troca de bandeiras a que me refiro no post abaixo. Sim, eu sei, quebraram a lei ou as leis, duas ou três delas, e sabiam que pelo menos isto lhes poderia acontecer. Mas onde há lei deve haver inteligência para a aplicar, e isso inclui admitir uma acção política que não foi violenta, não deixou vítimas, e teve uma saudável dose de nonsense. Eu gostei de ouvir o Hino da Maria da Fonte, cantado pelo libertário Vitorino, no vídeo dos rapazes monárquicos. Where there’s law there’s leeway — onde há lei há folga, diz-se em inglês. Independentemente das considerações que faço sobre a acção deles no post abaixo, — como verá quem ler o que escrevi, não estou aqui a defender “camaradas” — espero que o sistema judicial saiba entender essa folga, sem a qual uma sociedade começa a perder a humanidade no meio do legalismo.

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