A presente crise, como todos sabemos, não foi culpa de ninguém.
A crise começou há um ano (e um dia) quando a falência do banco Lehman Brothers lançou um tal pânico nos mercados financeiros que todo o sistema ficou à beira do colapso. “This sucker could go down” — esta brincadeira pode ir pelo cano, disse um George W. Bush em pânico, na Casa Branca, nos últimos dias do seu mandato. A culpa não foi de Bush.
Não. Na verdade, a crise começou um ano antes disso, em Agosto de 2007, quando os preços do imbiliário americano começaram a cair, arrastando com eles os créditos e as dívidas de milhões de americanos. Um sistema bancário sombra carreava empréstimos (que depois revendia) baseado na ideia de que os preços do imbiliário nunca caíriam. Quantos exemplos históricos havia para justificar esta ideia? Zero.
Mas não. A crise começou em 1999, nos últimos dias de Clinton, quando congressistas americanos de ambos os partidos permitiram que se criasse esse sistema sombra e não só desregularam os seus produtos financeiros como proibiram (proibiram!) que alguns deles alguma vez viessem a ser regulados.
Mas não, não! Esta crise começou antes disso, quando comentadores e políticos repetiram, sem nunca pensarem em pensar um bocadinho, que desregular era bom, que a ganância era boa, que a desigualdade até certo ponto era boa, que os mercados decidiam melhor sozinhos, e por aí adiante.
Mas não, não, não! Ninguém teve culpa. Ninguém defendeu que o sistema financeiro anglo-saxónico era a sétima maravilha do mundo, ninguém seguiu a cartilha de Washington e Bruxelas com toda a acefalia possível, ninguém — do centro-esquerda à direita — cedeu ao canto da sereia neoliberal. Aliás, ninguém foi neoliberal. O neoliberalismo nunca existiu. Eram os deuses astronautas e a crise veio do espaço exterior.
***
Há um ano, quando o banco Lehman Brothers rebentou e o sistema financeiro entrou em colapso, eu estava num debate com o catedrático economista João César das Neves que me garantiu duas coisas: que a crise nunca chegaria à economia real e que um dos produtos financeiros que esteve no centro da crise (os chamados “swaps”) estavam reguladíssimos. Pensei: se é isto que um economista acha, estamos lixados. Não mudei de ideias. João César das Neves imagino que também não. Mas só um de nós tinha razão.
Desde então, começou uma senda. Tenho tentado encontrar um político — um só — que me diga que teve responsabilidades na crise. Há poucos dias foi Durão Barroso. Ouvi-o responder que não, ele não teve responsabilidade na crise: “a crise veio dos Estados Unidos”. Ora que diabo; então e quem, na Europa, defendeu o modelo americano e o apresentou como exemplo? Ninguém, é claro.
À direita ninguém se apresenta, meus caros. E à esquerda? Tampouco ouvi alguém, até agora, admitir que foi pela terceira-via, que Clinton e Blair eram a sua inspiração, que os mercados eram amigos da esquerda moderna. Iria jurar que nos anos 1990 e 2000 ouvi muita gente, de Guterres a Sócrates, dizer este tipo de coisas. Devo ter alucinado.
E, porém. Em plena crise, seria simpático dizerem-me onde erraram, para eu saber se posso confiar em vocês de novo. Mas esteve alguém no poder durante estes anos? Ou estávamos em anarquia e ninguém me avisou?
[do Público]
5 thoughts to “Um ano e não tem pai”
Caro Rui,
Quando li no Público esta tua “crónica sem dor”, sorri, realmente, apesar de Portugal já obrigar a que as crinças filhas de “pai ausente” tenham o nome do pai, a pobrezinha desta crise continua sem pai, acho que isto devia ser levado a tribunal.
E quando alguem assume que, provavelmente, teve um, pequeno, papel na origem desta crise, a “batata quente” passa para os outros, os que vieram antes, os de outros paises, os de outros governos, os outros e os outros.
E, se, algum dia a anarquia chegar e eu não me aperceber, avisa-me também.
Fica bem.
“Ou estávamos em anarquia e ninguém me avisou?”
Acho que é mais por aqui. Alguns sectores da economia parecem subscrever e sempre que possivel praticar uma qualquer versão de anarco-capitalismo.
O segredo é eleger para governar alguém que diga, sempre que necessário, “Esse não é o papel do Governo”.
é , e continuamos com a economia real a repercutir o “tsunami” , sem vislumbrar soluções á vista
Caro Rui Tavares,
Sou autor dos 3 vols. “Portugal e os Judeus”, cujo 1º vol. lhe mereceu uma nota no programa “Câmara Clara”, em 2006.
Lanço esta semana “Breve História dos Judeus em Portugal”, sucedâneo da tese de doutoramento, destinada aos estudantes e ao grande público, inserido na colecção “Sefarad” (de que sou director).
Para além do que convite para estar presente na Livraria Círculo das Letras (que não lhe deverá ser posível, creio), dia 24 deste mês, às 18.30h, gostaria de lhe enviar um exemplar do meu livro. Para tal, necessito de um endereço.
Abraço,
Jorge Martins
Olá Rui!
Este meu comentário não vem a propósito do teu blog que admiro.
Uma coisa me lembro com saudades: De estares, com 5 anos talvez, à janela da casa de teus pais, no colo da tua mamã e gritares para mim: “Bajílio!”
Como está o teu irmão Marcelino? E o João? E o David? Perdi os contactos de toda a gente. Email-me.
Parabéns pela tua carreira e pelo sítio aonde chegaste.
Basílio