Chorar a 3D

As coisas que nos fazem chorar e as que nos fazem rir funcionam de maneira diferente. Nós rimos por explosões e choramos por implosão. Contaram-me uma vez esta história: uma pessoa que durante dez anos não tinha conseguido chorar. Apesar de nessa década ter acontecido o que por força acontece no decurso de uma década, mortes, separações, despedidas, e o sofrimento em cada uma dessas coisas ser igual ao que sempre tinha sido — essa pessoa queria chorar, e tentava forçar o choro, mas o choro não vinha. Um dia foi ver um filme melodramático italiano, e chorou baba e ranho. Ficou envergonhada ao pensar afinal que raio de pessoa era, que não chorava com uma morte ou uma separação, mas que desabava com um filme que nem sequer era muito bom. Esforçou-se então, através de uma laboriosa rememoração, por ir buscar a última vez que tinha chorado antes da década sem choro. E descobriu algo que sempre tinha sabido, mas que tinha também esquecido. O acontecimento em causa tinha ocorrido quando ainda era jovem.

Read more
Traduzam-se para a guerra

A sociedade contemporânea precisa de uma internet livre, justa e igual para a ONG, a banda de garagem, a empresa da esquina ou a companhia multinacional. Lembra-se quando as traduções automáticas do Google produziam resultados ridículos? Já experimentou recentemente traduções automáticas do Google e reparou como a qualidade delas melhorou enormemente? É interessante conhecer a história desta evolução. Ela começa por ser uma lição de linguística e acaba sendo uma lição de política. Primeiro, a linguística. Uma definição simples de “língua” consiste em dizer que ela é um conjunto de significados mais um conjunto de regras. Quando a Google tentou ensinar línguas aos seus computadores, quis fazê-lo dessa forma, dando-lhes os significados, as regras, e tentando que eles fizessem o trabalho da mente humana. Só que os computadores não pensam (ainda?) linguisticamente como as mentes humanas. Numa tradução, a máquina poderia apanhar todas as palavras bem e, todavia, o sentido geral ser absurdo. Até que a Google mudou de estratégia. Em vez de ensinar gramática aos computadores, usou aquilo em que eles já eram bons: estatística. Hoje, a máquina não “entende” a frase: limita-se a procurar entre milhares de exemplos de traduções semelhantes e sair-se com a mais provável. As traduções melhoraram muito. O segundo parágrafo deste texto fica assim em inglês, sem nenhum retoque meu: “It is interesting to know the history of this development. It starts as a lesson in linguistics and ends up being a lesson in politics.” Ah, e então a tal lição de política?

Read more
Um historiador

Para indignar-se ele não usava o passado. Tinha a atualidade, e não a poupava. Nem ela a ele. A short film about Tony Judt (YouTube) Entender é difícil. Ler os primeiros capítulos de Pós-Guerra — uma História da Europa desde 1945, de Tony Judt (editado em Portugal pelas ed. 70) — é perguntar “que continente é este”? Que continente é este que se matou e deportou desta forma. Numa página qualquer lá estão eles: os milhões de judeus mortos, milhões de ciganos mortos, centenas de milhares deste ou daquele povo (ucranianos, bielorussos, polacos, alemães) mudados de um lugar para o outro. A escrita é quase graciosa, de uma forma perturbante. Pousa sobre coisas que estão nos nossos alicerces sem ocultar nem escavacar nada. Citado ao acaso: “Entre 1939 e 1941 os Nazis escorraçaram 750000 camponeses polacos para Leste e ofereceram a terra esvaziada a alemães”. “Poucas semanas após o fim da Guerra, uma em cada cinco pessoas de Varsóvia sofriam de tuberculose”. “As clínicas e médicos de Viena documentaram que 87000 mulheres foram violadas à passagem do exército vermelho…”. “Na Baviera em 1951, 94 por cento dos juízes e procuradores tinham sido membros do partido Nazi”. Coisas pavorosas. Mas Tony Judt não escreveria tal palavra num livro de história.

Read more
Diógenes Laércio

Quando não sobra muito da obra de alguns dos filósofos, Diógenes Laércio é considerado uma fonte essencial, talvez a única em alguns casos. Há dois Diógenes importantes na antiga filosofia grega. Um deles é Diógenes o Cínico, que vivia como vagabundo, andava nu pelas ruas, fazia as necessidades onde calhava, e dormia dentro de uma barrica. A sua indiferença aos preceitos da sociedade está na origem do nome cínico, que não quer dizer aquilo a que estamos habituados, mas vem de kynikos, palavra grega relativa ao cão. Diógenes de forma tão livre e liberta como a de um cão — daí “cínico”, ou canino. Foi também o primeiro filósofo a declarar-se “cosmopolita”, cidadão do mundo. Diz-se que o imperador Alexandre o Grande pediu para o ver e lhe perguntou se ele queria alguma coisa. Diógenes disse-lhe que a única coisa que desejava do imperador era que ele se afastasse do Sol (Diógenes não queria estar à sombra). Alexandre proclamou: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes”. Diógenes disse-lhe: “estou à procura dos ossos do teu pai” — o rei e voraz conquistador Filipe, da Macedónia — “mas não consigo distingui-los dos de um escravo”. O outro Diógenes é Diógenes Laércio, historiador da filosofia, ou melhor, biógrafo de filósofos.

Read more
E se a verdade não for novidade?

A guerra do Afeganistão é agora pior do que uma guerra perdida: é uma guerra que não quer acabar. Quando 90 mil documentos secretos sobre a guerra do Afeganistão são revelados, que ficamos a saber? Que os militares ocidentais matam mais civis inocentes do que revelam; que as chefias militares comandam esquadrões da morte; que as alianças no terreno são ambivalentes e hipócritas. Sim, é verdade: ficamos a saber aquilo que já sabíamos. Mas não é por isso que estas revelações deixam de ser históricas. Aqueles que agora as desprezam como sendo triviais são os mesmo que antes se recusavam a admiti-las. Dizer que a verdade é trivial é apenas a nova forma que encontram de continuar a recusá-la. Estranhamente, esta resposta tornou-se também opinião convencional entre os jornalistas. “Isto é verdade”, dizem, “mas não é novidade”. E então?

Read more
Montaigne

As nossas vontades e os nossos fados tão contrários são, que por terra deitam todo o nosso engenho. Os nossos pensamentos são nossos; os fins deles já nada têm connosco. Após treze anos de Parlamento na segunda metade do século XVI, Montaigne abandonou a cidade de Bordéus e instalou-se no campo para esperar pelo seu próprio fim. Tinha aprendido com os antigos que “filosofar é aprender a morrer”. Mas, pensando melhor agora que tinha tempo, aprender a morrer é um empenhamento fútil – com ou sem aprendizagem, o momento chega. Montaigne chegou então a outra pergunta. Tenho lido nos últimos tempos um livro sobre Montaigne por uma autora inglesa chamada Sarah Bakewell. Todos os seus vinte capítulos são tentativas de resposta à pergunta que Montaigne encontrou na filosofia antiga (e já ficando fora de moda face a uma filosofia mais abstrata) e a que se dedicou então – Como Viver?

Read more
Primeiro vá a votos

Neste país onde nenhuma reforma verdadeiramente importante se consegue fazer, os políticos e editorialistas especializam-se em qualquer reforma que venha à rede. Pedro Passos Coelho propôs uma revisão da Constituição e de repente toda a gente se pôs a falar do conteúdo dessa revisão. Foi uma semana delirante. Pedro Passos Coelho é o líder do PSD, evidentemente. Para além disso não é sequer deputado. O partido dele foi a votos e obteve menos de um terço deles; Passos Coelho nem isso. No entanto, a revisão proposta é “a revisão de Pedro Passos Coelho”. Como? Claro, qualquer um pode propor uma revisão constitucional. Santana Lopes queria um Senado à italiana, Passos Coelho quer um Presidente à francesa, Paulo Teixeira Pinto — responsável pelas propostas constitucionais de Passos Coelho — preferiria uma rainha à inglesa. Perante a salganhada, pergunto: esta revisão é para se fazer ou para se falar?

Read more
A petrofonia

Pretende-se que a CPLP seja uma comunidade de democracias e que essa comunidade seja assente na língua. Não tanto uma comunidade para onde entram ditaduras assentes no petróleo. Parece que depois de amanhã a Comunidade de Países de Língua Portuguesa se prepara para acolher como membro a Guiné Equatorial. Num país e numa comunidade linguística em que o acordo ortográfico gerou e gera debate infindo, oposição estrénua e arrancar de vestes, a entrada da Guiné Equatorial na CPLP é uma coisa mais ou menos indiferente. O que é estranho, porque a língua portuguesa com mais ou menos trema ou consoante muda não continua sempre sendo a língua portuguesa. E mais estranho ainda, porque essa língua portuguesa pode ser muita coisa, mas não é a língua que se fala na Guiné Equatorial. À língua que se fala na Guiné Equatorial pode chamar-se castelhano, ou espanhol, mas dificilmente se chamará português. Poderão dizer-me que houve uma decisão do governo da Guiné Equatorial em consagrar o português como língua oficial (sem que se note que essa decisão tenha mais influência do que estar escrita em lei — nada na Guiné Equatorial se fala ou escreve em português, se exceptuarmos uns quantos milhares de falantes de crioulo na ilha de Ano Bom). Mas acontece que essa decisão foi tomada por um ditador dos mais insanos e caprichosos, Teodoro Obiango, recorrentemente eleito por 95% dos votos no país de que é dono e senhor. E agora dizem-nos que a entrada da Guiné Equatorial é favorecida pelo Brasil, por Angola e por São Tomé por aquele país ter muito petróleo. E aqui chegamos a outro ponto. Pretende-se que a CPLP seja uma comunidade de democracias (Angola esquece-se de fazer eleições como certas pessoas se esquecem de arrumar os papéis: para o ano é que é!). Pretende-se que essa comunidade seja assente na língua. Não tanto uma comunidade para onde entram ditaduras assentes no petróleo. Se a CPLP está numa atitude expansionista, tem bem para onde se virar. Existe no extremo da Ásia um país que decidiu democraticamente reintroduzir a língua portuguesa: Timor-Leste. Timor-Leste vem muito a propósito neste caso. Em primeiro lugar por uma razão moral: quando a Indonésia introduziu ditatorialmente a sua língua naquele país nós protestámos, pelo que não podemos agora aplaudir a decisão de Obiango de introduzir ditatorialmente o português na Guiné Equatorial. Em segundo lugar por uma razão tática. A geração pró-lusófona de Timor-Leste não dura para sempre, e a reintrodução da língua portuguesa não terá futuro a não ser que os países lusófonos façam o seu trabalho e dêem a ajuda que os timorenses pediram. Em terceiro lugar por uma razão estratégica. Timor-Leste está numa região do mundo onde ainda há muitas comunidades influenciadas pela língua ou pela cultura portuguesa: na Indonésia, na Malásia, no Sri Lanka, para não falar da Índia. Essas comunidades não estão organizadas em estados, mas dispersas em rede. Muitos dos seus membros são governantes, ou pertencem às elites locais — o candidato da oposição à presidência do Sri Lanka dava pelo apelido de Fonseka. Não deve ser impossível estudar essas comunidades, saber onde estão, manter contactos regulares com elas. Talvez até compensasse fazê-lo numa das regiões mais dinâmicas do mundo. Mas dá trabalho, lá isso dá. Trabalho que a diplomacia portuguesa deveria gostar de ter. Daria certamente mais gozo do que acolher caprichos de ditadores.

Read more
Uma história de gosto duvidoso

Paulo Portas é como o gajo que está em sério risco de ficar sozinho mas anuncia com bravata que só lhe faltam duas pessoas para uma ménage à trois. Contam os jornais que Paulo Portas, dono e senhor de um partido com cerca de onze por cento, se ofereceu para formar governo com os dois partidos “grandes” do sistema. Permitam-me uma glosa. Há anos vi um tipo atravessar a rua. Era numa cidade estrangeira, eu estava sentado numa esplanada de esquina, e aquele tipo chamou-me a atenção porque trazia uma daquelas t-shirts com uma frase escrita e eu — leitor compulsivo que sou — nunca consigo deixar de prestar atenção, apesar da minha miopia me obrigar a semicerrar os olhos muitos metros antes de conseguir ler o que lá vem escrito. Enquanto isso fui observando o tipo.

Read more
Deve ser do calor

A última edição do Expresso revelou que José Sócrates tentou formar um governo de coligação com o CDS/PP, chegando mesmo a oferecer a Paulo Portas o lugar de Ministro dos Negócios Estrangeiros. A ter acontecido, isto foi ao mesmo tempo que Sócrates recuperava o seu arsenal retórico contra o conservadorismo, e depois contra o neoliberalismo. Pouco depois começou a governar numa coligação tácita com o PSD de Pedro Passos Coelho, isto sem deixar — em simultâneo — de o atacar, e o outro a ele. Desde então José Sócrates e Pedro Passos Coelho têm desempenhado uma espécie de versão política de uma roda de capoeira: um finge que ataca, o outro finge que se esquiva. Os seus partidos juntam-se num círculo em torno deles e batem palmas disciplinadamente. Sócrates pode declarar-se progressista e querer governar com Paulo Portas, antineoliberal e negociar com Passos Coelho, keynesiano e não dar nenhuma abébia à esquerda. Já nada disto quer dizer nada. A missão de José Sócrates é chegar ao dia de amanhã vivo e primeiro-ministro. O convite de hoje destina-se a resolver a contradição de ontem; o beco-sem-saída de amanhã ver-se-á depois como fazer. É angustiante e fascinante e até um tanto aterrador. É como a pessoa que paga as dívidas do cartão de crédito anterior com o novo cartão de crédito e começar a pensar pagar essas dívidas com o cartão seguinte. Uma parte considerável de vocês, segundo as estatísticas, saberá do que estou a falar. Deve ser do calor; mas

Read more
Skip to content