Monárquicos prestam vassalagem à República

Estamos, talvez pela primeira vez, perante uma geração de monárquicos já destituída de qualquer cultura monárquica. Aculturados que estão pela República, não têm já narrativa ou ritual próprios. Uma coisa é certa: para haver um escândalo em Agosto tem de ser protagonizado por esquerdistas, pobres ou minorias étnicas. Se for uma acção de meninos-bem ninguém lhes teme as razões de queixa — que não têm — nem lhes pressente mais ameaça do que a de, na altura certa, os papás lhes arranjarem os melhores empregos. E por isso o país opinativo respira fundo e declara que uma palermice não passa de uma palermice. Estamos assim livres para comentar com tranquilidade os “guerrilheiros simbólicos” que hastearam uma bandeira monárquica na Câmara de Lisboa. Por mim, dou-lhes nota alta no capítulo da “guerrilha” — subir por um escadote e filmar a cena toda — e nota medíocre no capítulo do “simbólico” — que supostamente deveria ser o ponto crucial da coisa. Vejamos: temos desde logo um desrespeito pela regra da equivalência hierárquica.

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O oxigénio

Acredito que seja vedado ao jornalismo adoptar a pessoalização e a subjectividade nos seus géneros mais noticiosos. Mas o que está a acontecer é o contrário: no afã completamente ultrapassado de atingir uma informação neutral, o jornalismo corre o risco de neutralizar os seus géneros mais críticos e opinativos. Mais do que uma coisa interessante ou simpática, entender a linguagem é uma coisa necessária. A comunicação assente na linguagem é o nosso oxigénio enquanto civilização humana. Mas lá porque todos respiramos — ou lá porque o oxigénio é invísivel — não há desculpa para não meditarmos sobre ele. Sobre a comunicação, as opiniões taxativas e as tiradas de autoridade são tão frequentes quanto mais o objecto é fugidio. E contudo há um princípio da incerteza só para a comunicação. Como só podemos descrever a linguagem através do recurso à própria linguagem, não é possível delimitá-la nem circunscrevê-la.

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Distinção e distância

Alguém pode citar grandes realizações das nossas elites nacionais que facilmente aguentassem a comparação com aquilo que de melhor se faz no mundo? É difícil. Elite quer dizer, essencialmente, distância. Uma elite distancia-se de duas formas diferentes: no primeiro caso, fá-lo pelas suas realizações; no segundo caso, fá-lo empurrando o resto da sociedade para trás. A distância entre elite e o resto da sociedade está lá; mas foi atingida de duas formas completamente diferentes. Não é difícil imaginar qual das duas formas é mais benéfica para a sociedade como um todo. Feliz a sociedade na qual a elite precisa, para se manter elite, de lutar sempre por realizações novas e constantes, de estudar e trabalhar mais, em suma, de fazer tanto quanto se faz de melhor pelo mundo fora em cada área. Em muitas outras sociedades, contudo, a elite segura o seu lugar deixando o resto da sociedade na desigualdade de acesso à riqueza e ao conhecimento. A distância é a mesma; as sociedades são radicalmente diferentes e tendem a aumentar as suas diferenças. Não é difícil, também, adivinhar em qual dos casos se encontrou Portugal em grande parte do século XX e, para dizer verdade, em grande parte da sua história.

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Mau para a imprensa, mau para a democracia

Já existe em Portugal uma barreira demasiado grande à entrada dos cidadãos na causa pública. Ela foi erguida pela opacidade dos aparelhos dos partidos, mas também por preconceitos larvares Aqui há uns anos dei-me pela primeira vez conta da existência de um professor universitário que comentava nas televisões a Guerra do Iraque. O seu nome era Azeredo Lopes. Eu habituei-me a ouvi-lo com atenção porque as suas opiniões me pareciam interessantes e ponderadas. Admito que outros espectadores fizessem o mesmo. Mais tarde, o mesmo professor Azeredo Lopes foi nomeado presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Poderia dizer-se que o foi por causa da sua notoriedade como comentador televisivo? Talvez, na medida em que se ele fosse um completo desconhecido ninguém se lembraria dele. Mas por outro lado, a notoriedade dele não nasceu do nada: veio das opiniões que ele emitia, da forma bem articulada como o fazia e dos anos de estudo em que elas se alicerçavam.

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Departamento das coisas preocupantes

Não é só bizarro o pedido de desculpas que o Público apresentou ao Belenenses por causa de uma reportagem do crítico musical João Bonifácio (verídico: ver aqui). É preocupante que a imprensa, no meio da sua crise, se vergue perante as pressões de um qualquer grupo de adeptos zangados, desguarnecendo assim a protecção que deve moralmente dar à liberdade da crítica. Não foi só João Bonifácio, mas qualquer pessoa que emita opinião no jornal, que ficou prejudicado com este estapafúrdio pedido de desculpas.

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A sangue frio

Pensei que as eleições europeias tivessem bastado para se aprender esta lição: uma campanha eleitoral, por mais acalorados que pareçam estar os seus principais participantes, é um desporto que se destina a ser ganho pelos animais da sangue-frio. Uma das piadas que prefiro é tão volátil que mesmo quando vista sob a forma original — um cartune que encontrei por acaso há uns anos — nem sempre consegue fazer despertar um breve sorriso. Mas eu afeiçoei-me a essa piada e, apesar de nunca ter tido sucesso, persisto em contá-la, em várias ocasiões e até línguas, sem mímica ou com mímica, tentando ou não descrever o desenho que a acompanhava. Algumas pessoas reagem quando eu a conto, mas é só por pena, ao verem o meu esforço. E é essa piada sem graça, que funciona mal sob desenho e não funciona nunca quando contada oralmente, que eu vou tentar agora reproduzir aqui por escrito. É uma estreia mundial; preparem-se. A coisa é assim. Um crocodilo está sentado no banco dos réus de um tribunal (sim! um crocodilo no banco dos réus) sem trair qualquer arrependimento ou emoção no rosto, ou focinho. O advogado de acusação ataca-o por um qualquer crime hediondo cometido pelo crocodilo quando é interrompido pelo advogado de defesa, que lança uma objecção. “É claro que foi a sangue-frio, seu idiota!” grita o advogado de defesa, “Não vês que é um réptil?”. Não é hilariante? Um réptil! A sangue-frio! Ah ah.

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Quinze anos

Há uma competição consciente pelo termo “esquerda” no plano partidário, que desembocou neste fim-de-semana com notícias sobre incursões à esquerda para a composição das listas de deputados. Na campanha de 1995 contei o número de vezes em que ouvi Guterres pronunciar a palavra “esquerda”. No debates com Fernando Nogueira ocorreu uma vez, uma única. Pode ser que em comícios tenha acontecido outra vez. Quinze anos depois José Sócrates apresenta recorrentemente o PS como “grande partido da Esquerda” moderna, ou democrática, ou progressista, conforme a ocasião. Há uma competição consciente pelo termo “esquerda” no plano partidário, que desembocou neste fim-de-semana com notícias sobre incursões à esquerda para a composição das listas de deputados.

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Conflito e conteúdo

Nunca se ouviu um político dizer, “sabem que mais? eu até gostaria de ganhar; mas na verdade acho que o país se sairá bem se o meu adversário me derrotar”. Nenhuma campanha eleitoral permitiria isso, é claro. Todos nós somos mais complexos se tomados individualmente do que em interacção com os outros. Quer dizer que as nossas ideias são mais vagas, mais confusas e menos concretas se pensamos despreocupadamente do que quando nos colocamos em conflito. Em conflito, de repente, já todos nós somos certezas, vontades inequívocas e dogmas. Basta haver uma discussão para nos revelarmos assim. Se nos derem um adversário, nós poderemos até passar a querer o cargo que nunca quisemos, a missão desinteressante, a honraria que na verdade nunca nos disse grande coisa. É o simples facto de estarmos em competição nos faz ir à luta como se aquela fosse a coisa mais importante da nossa vida. Quando conquistamos o que há a conquistar sentimos um certo vazio cá dentro e dizemos: “será que desejei isto? será que faz uma grande diferença tê-lo conquistado?” Mas enquanto queremos a mesma coisa que o nosso adversário, o que precisamos de dizer é “ele e eu não poderíamos ser mais diferentes”.

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Questões prementes

Se queremos que a democracia funcione — e não vejo outra forma, apesar dos cínicos — o debate público pode ser hiperbólico, pode ser agressivo, pode (deve até) ser irritante. Pode ser tudo; só não pode é deixar de ter conteúdo. Tenho há tempos pensada uma crónica sobre a política e o comentário político mas tem demasiados palavrões para poder ser impressa na última página do público. Essa crónica partiria de um desabafo, tido ao telefone com um amigo, no qual tentei descrever a minha reacção à espiral regressiva a que está sujeito o debate político-mediático. A coisa funciona assim: espera-se que um político diga um disparate qualquer; depois vai perguntar-se a todos os outros políticos o que acharam, na esperança de que eles venham a dizer mais disparates sobre o disparate do outro. Provavelmente regressa-se ao primeiro político, ou ao partido dele, para que diga mais disparates, cada vez mais destemperados, sobre os disparates que os outros disseram sobre o primeiro disparate. Deixa-se passar umas horas e chega a vez dos comentadores, os quais é suposto que digam uns disparates sobre aquilo tudo, de preferência aos berros e falando todos ao mesmo tempo.

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Cinco anos de oposição

Sarkozy comporta-se como se comportaram os líderes franceses, desde De Gaulle a Luís XIV, passando por Bonaparte: para ele, o tesouro nacional é para ser usado em função da magnificência — muito elástica — do Grande Líder. Para os alemães como Angela Merkel, a memória de um grande trauma económico não é a Grande Depressão, mas a hiperinflação que destruiu a República de Weimar, e durante a qual o Banco Central alemão chegou a ter de imprimir notas de 100 biliões de marcos. Estrasburgo. É a primeira vez que estou nesta cidade, ainda não posso dizer que a conheço, não tenho cor local para emprestar à crónica. O nome não ajuda. Ou melhor, ajuda até demais: significa “cidade das estradas”, poderia escrever-se “cidade das encruzilhadas”, o que teria dado um bom título e permitiria uma série de figuras de estilo excessivamente fáceis sobre o lugar e os dilemas do futuro. O problema é que a crónica que tenho em mente é isto mesmo. Numa cidade que já foi alemã, francesa, e depois alemã e francesa outra vez, que se dane a previsibilidade, não posso senão escrever sobre a França e a Alemanha.

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