Se queremos que a democracia funcione — e não vejo outra forma, apesar dos cínicos — o debate público pode ser hiperbólico, pode ser agressivo, pode (deve até) ser irritante. Pode ser tudo; só não pode é deixar de ter conteúdo.

Tenho há tempos pensada uma crónica sobre a política e o comentário político mas tem demasiados palavrões para poder ser impressa na última página do público.

Essa crónica partiria de um desabafo, tido ao telefone com um amigo, no qual tentei descrever a minha reacção à espiral regressiva a que está sujeito o debate político-mediático. A coisa funciona assim: espera-se que um político diga um disparate qualquer; depois vai perguntar-se a todos os outros políticos o que acharam, na esperança de que eles venham a dizer mais disparates sobre o disparate do outro. Provavelmente regressa-se ao primeiro político, ou ao partido dele, para que diga mais disparates, cada vez mais destemperados, sobre os disparates que os outros disseram sobre o primeiro disparate. Deixa-se passar umas horas e chega a vez dos comentadores, os quais é suposto que digam uns disparates sobre aquilo tudo, de preferência aos berros e falando todos ao mesmo tempo.

Onde está a palavra “disparates” estava no original um palavrão. Outros palavrões pontuavam o final das frases ou marcavam o lugar das vírgulas. Porquê? Porque enquanto elemento deste cenário, a gosto ou contragosto, me irrita a pressão desta cadeia alimentar ao contrário, em que toda a gente se alimenta dos dejectos deixados pelo comentário anterior. Pode ser uma pressão das audiências, dos lucros e das vendas, do mínimo denominador comum, da pura preguiça, do hábito, da descrença, do que quer que seja. Venha de onde vier, sei que é preciso resistir-lhe, ainda mais em ano eleitoral. Não, eu não quero um debate chato. Se queremos que a democracia funcione — e não vejo outra forma, apesar dos cínicos — o debate público pode ser hiperbólico, pode ser agressivo, pode (deve até) ser irritante. Pode ser tudo; só não pode é deixar de ter conteúdo.

***

O manifesto “O Nosso Presente e o Nosso Futuro — Algumas questões prementes”, no qual está a mão de António Pinto Ribeiro, Isabel Allegro de Magalhães e Viriato Soromenho Marques, entre outros, é um esforço por trazer conteúdo ao debate. E é um texto fora do comum, em pelo menos dois aspectos.

O primeiro é que — ao contrário dos manifestos mais recentes, sobre a dívida, o desemprego e as obras públicas — não se trata de um documento que venha dar respostas, mas antes colocar perguntas. Elas aparecem às dezenas, espalhadas por cada fim de secção, e são interpelações directas aos partidos, aos políticos e aos cidadãos.

O segundo é que — também ao contrário desses manifestos — o seu ponto de partida não é a economia. Poderia dizer-se que é antes a cultura, se entendida no seu sentido mais lato. Eu diria mais: é um texto que começa por considerar o estado da civilização humana e o lugar de Portugal nela.

Existe uma tendência, feita de provincianismo e estúpida humildade, que nos impede de colocar as coisas desta forma. Este documento supera isso: as suas primeiras considerações vão para o cosmopolitismo, os impasses do projecto europeu, a relação com a lusofonia. Depois de olhar para fora, o texto permite-se ter uma visão mais ampla sobre o que se passa cá dentro, alicerçando assim as suas perguntas sobre educação, cultura, forças armadas ou ambiente.

Não é um texto doutrinário, nem nos obriga a concordar com ele em tudo. Mas se eu fosse aos políticos, como aos comentadores e aos jornalistas, não perderia a oportunidade de dialogar com ele. Um ano eleitoral, ainda por cima em crise, não é para desperdiçar numa repetida cacofonia sem conteúdo. Não venham depois dizer que foi o que as pessoas quiseram.

[do Público]

7 thoughts to “Questões prementes

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Caro Rui Tavares

    Uma vez mais estando de acordo consigo, penso que todos têm como fazer um esforço nesse sentido, e no Seu caso….a começar por si.
    De facto, diga-se, não tem por hábito entrar na critica de pessoas, no disse que disse, mas no seu Partido/Movimento, o chefe, gosta de o fazer e sempre num tom muito agressivo, parece que prepara em frente ao espelho, a forma de parecer : mauzão e sempre senhor da verdade universal.
    Não é o único, são quase todos em todos os Partidos, algo a mudar, já!
    Por outro lado, essa ideia do não ataque a Pessoas, mas a assuntos, é essncial.
    Todos , essencialmente V/ politicos o devem fazer, e deve trespassar jornais, TELEJORNAIS…um sem fim de locais.
    Comecemos aqui e agora!

  • Zé Carlos Albino

    Gostava de ter acesso ao Manifesto ontem referido no Público, pois passou.me ao lado…!
    Obrigado!
    Zé Carlos Albino
    Messejana .

  • Rui Evangelista

    O manifesto pode ser obtido aqui: http://www.cidadaosdebatempolitica.net/
    Boa leitura.

  • Alexandre Spatuzza

    Caro Rui,
    Palavras suas são quase as minhas. No entanto vejo um perigo muito maior: o de total descrédito da política e a volta para a estados de exceção onde a política não importa. E neste período de limbo em que estamos, ou sjea, o processo lierado pela imprensa empresarial que está em curso, quem se beneficia são os que têm poder econômico e de influenciar o congresso por meios escusos.
    E assim os congressistaas vão aprovando coisas que estes grupos querem e deixando coisas importantes de lado.
    E nós, o público em geral, ficamos a escutar as baboseiras de que politicos são todos corruptos e falam apenas disparates.
    É muito poder que eles têm para deixá-los dialogar apenas com outros poderosos em câmaras obscuras porque não podem sair à luz do dia.

  • antonio noronha

    Como não encontrei o seu e-mail, aproveito este espaço para lhe dar conta da minha interpretação do seu artigo hoje publicado(22).
    Estou de acordo com a sua subtileza ao referir-se á necessidade premente no voto útil do povo de esquerda nesta difícil conjuntura.
    Estarei sempre atento às suas lúcidas análises.
    Saudações!

  • Fernando Dacosta

    Para Rui Tavares

    Em 40 anos de luta contra a insensibilidade arrogante dos responsáveis pelos nossos jornais, faz-me bem encontrar num deles (o Público, de que fui um dos fundadores) uma visão inteligente, lúcida, flexível do que é escrever, do que é aflutuação da nossa língua. Parabéns pela sua crónica «Bom!Bonito!Barato!», como por muitas outras suas que me levam a continuar a ler aquele diário.
    Aceite a profunda admiração do
    Fernando Dacosta

  • apartament

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