Desculpas não, Maitê

O vídeo de Maitê não me dói enquanto português. O problema é que me dói enquanto brasileiro. Aqui há dias lembrei-me de uma colega brasileira, A.C., que de entre todas as profissões do mundo logo foi escolher ser antropóloga. Uma vez, sentados para jantar numa mesquita parisiense, A.C. pediu para beber uma cerveja. O empregado disse-lhe “não temos”. “Não tem cerveja!?”. “Não, senhora. Temos chá de menta, refrigerante…”. “E vinho, pode ser?”. “Não temos nada com álcool, senhora”. “Mas eu quero algo com álcool!”. “Mas isto aqui é uma mesquita, senhora.” “Uma mesquita? Pois eu acho isso um absurdo!”. E prosseguiu contando piadas sobre portugueses. A.C. era ecuménica na sua falta de tacto.

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A derrota é uma coisa preciosa

As eleições locais têm uma lógica própria que não deve ser subalternizada pelas eleições nacionais — são demasiado importantes para isso. O Bloco de Esquerda levou a primeira grande lição da sua história de dez anos. Foi mesmo o principal derrotado das últimas eleições autárquicas (o CDS não conta porque praticamente nem foi a jogo). Isto é interessante. Mesmo as pessoas que gostam do BE e que acham que ele tem um papel essencial na política portuguesa — eu incluído — certamente não acham boa ideia que um partido tenha o crescimento por garantido, o que faria dele acrítico, teimoso e desatento. Uma derrota é uma coisa preciosa, e a sua lição não deve nunca ser desperdiçada. O próprio Bloco de Esquerda deveria sabê-lo bem, uma vez que é, de certa forma, filho de uma derrota — a do primeiro referendo do aborto, que precedeu e influenciou directamente a fundação do partido em 1999. Dez anos depois, tendo feito mais pela alteração do panorama político português do que provavelmente qualquer outro partido, e no fim de um ano brilhante em termos eleitorais, esta derrota vem no momento menos mau.

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Canonizar antes dos milagres

Escrevi aqui muitas vezes que Obama seria o mais multilateralista dos presidentes americanos, e isso está amplamente confirmado. Desta vez apanharam-me: até eu acho exagerado o prémio Nobel da Paz atribuído a Barack Obama. Há cerca de um ano por esta altura, decidi que iria a Chicago assistir às eleições presidenciais americanas. Na Europa, um debate viciado por oito anos de George W. Bush deixava a direita escanchada numa cega arrogância em relação a Obama: ora negando a importância do então candidato, ora agourando-lhe uma falta de ligação ao “povo”, ora menosprezando o efeito que teria a sua eleição, na maior parte contra todas as evidências disponíveis. Em última análise, encolhiam os ombros e diziam que o putativo anti-americanismo dos europeus, e em particular da esquerda, se converteria rapidamente num sentimento anti-Obama. E em última das últimas análises, acrescentavam, Obama estaria ali para defender os interesses americanos e que isso acabaria rapidamente com as suas simpatias no resto do mundo.

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Da varanda

Não esperem que os monárquicos belisquem o simbolismo republicano; para isso está cá o Presidente da República. Ainda não faz dois meses, um grupo de jovens “guerrilheiros simbólicos” subiu à varanda da Câmara Municipal de Lisboa para aí substituir a bandeira da República pela monárquica. Na altura, argumentei numa destas crónicas que eles se tinham limitado a prestar uma involuntária vassalagem ao simbolismo da República. O que os jovens monárquicos tinham feito era ritualizar — ou seja, repetir os gestos — da proclamação da República; e a ritualização é uma forma de homenagem. Chegado o dia do 99º aniversário da República Portuguesa, eis que a pior machadada contra este simbolismo foi desferida — nem mais nem menos — pelo Presidente da dita República.

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Da falta que faz um discurso urbano

Há povos que são profundamente indiferentes ao que os outros acham deles. Não é o caso dos brasileiros (nem dos portugueses) que vão dar tudo por tudo para não ficar mal na prova olímpica. Nos slogans publicitários está muitas vezes a admissão daquilo que sabemos que não somos. Aqui há uns anos, o slogan do Rio de Janeiro era “Rio, o Coração do Brasil” — aquilo a que um político português dotado de chamou uma vez uma “meta aspiracional”. Uma meta aspiracional quer dizer: algo que não somos, e que não temos certeza de poder vir a ser. O Rio de Janeiro, no fundo, sabia que já não era “o coração do Brasil”. Por isso tentava publicitar-se enquanto tal. Já não era o coração político do Brasil, uma vez que perdera a capitalidade para Brasília. E não era o coração económico do Brasil — mesmo os cariocas mais ferrenhos sabem que é de São Paulo, através das estradas e linhas aéreas do país, que se bombeia o sangue industrial, comercial e de serviços que sustenta o país. Pior ainda, o Rio de Janeiro tinha começado a duvidar que fosse ainda o coração cultural do Brasil.

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While my guitar gently weeps

Olga Roussinova na estação Pavletsky, à chegada a Moscovo. Fui à Rússia para lançar o Pequeno Livro do Grande Terramoto — ou diria antes o nano-micro-piqueno-e-médio livro? — e logo na primeira noite no país tive vontade de escrever neste blogue. Saiu um post grande — ou deveria antes dizer médio-extenso? — e perdi-o ao tentar publicá-lo. Talvez tenha sido melhor. A semana passada, quando isto aconteceu, todos os portugueses (eu incluído) estavam obcecados com as eleições e não valia a pena tentar falar de outra coisa. No avião eu tinha lido um longo texto da Rolling Stone o fim dos Beatles visto de dentro [Why The Beatles Broke – The Inside Story]. Para além de gostar da música, nunca fui grande beatlesiano aplicado, porque sê-lo significa recolher e preservar grandes quantidades de informação. Acho que me limitei a ficar satisfeito por haver outros beatlesianos aplicados que fizessem o trabalho por mim. Mas ao ler a matéria da Rolling Stone, pude apreciar a história dos Beatles como ela é, não só de excelente música que continua excelente, mas de uma espécie de epopeia que está na história da criatividade humana como estão as dos grandes artistas e autores desde o Renascimento, com os seus elementos narrativos da descoberta do talento, da superação dos limites do próprio género, da ascensão e queda dos génios, e finalmente da sua conversão em figuras para-lá-da-arte. No caso dos Beatles, tudo isto é potenciado por ser — ao contrário dos artistas do Renascimento ou do Romantismo — uma história de uma banda, de um grupo de quatro rapazes. A narrativa fica também uma narrativa de amizade, de rivalidade e de cansaço. Uma das coisas mais interessantes era ver como algumas das grandes músicas — que são “momentos” mais do que músicas — se tinham cristalizado algures durante os grandes momentos de crise da banda. Era quando os Beatles já não se podiam ver uns aos outros, quando já estavam exaustos e irritados, que um se punha a tocar sozinho no seu canto, e outro quase tentando estragar-lhe a música acabava por a levar para outro patamar. Os Beatles não tinham perdido o “toque”. Só tinham perdido a capacidade de fazer coisas boas da maneira normal para passarem a fazer coisas geniais da maneira sofrida. O autor do artigo não deixava de, a cada possibilidade, insinuar as semelhanças entre o fim de uma banda e o fim de uma relação amorosa. Isso vai desde o título do artigo (aquele “broke up”) até à descrição das brigas, das irritações e da mesquinhez mútua e magoada dos membros da banda. A analogia é talvez demasiado típica. É muito comum tratar as parcerias artísticas nos termos das relações amorosas. No caso dos Beatles e de John Lennon em particular, com a chegada de Yoko Ono, isso é fácil de ver. Tão fácil que às vezes nos escapa o outro lado, ou seja, ver como as relações amorosas também são como as parcerias artísticas de certa maneira. E, no entanto, isso é de novo particularmente evidente com John & Yoko — Lennon não sai dos Beatles por uma relação amorosa apenas, mas se pensarmos que essa relação é também uma parceria artística, a coisa já faz mais sentido. Enfim. No sentido mais genérico, uma relação amorosa, — quando corre bem, quando corre mal, mas especialmente quando corre bem — tem as mesmas características da criação artística: o entusiasmo, os achados, a cristalização de uma linguagem privada, etc. Bem, a história poderia acabar aqui. No artigo explicava-se como no fim dos Beatles começaram a acontecer coisas inesperadas, como composições de George Harrison e músicas cantadas por Ringo Starr. E aparecia uma boa descrição do momento em que surgiu While my Guitar Gently Weeps, de George Harrison, que me deu vontade de ouvir a música. Na noite moscovita, num apartamento vazio, procurei o youtube e pus um clip da música a tocar repetidamente. No outro dia, de manhã, enquanto me preparava para enfrentar um primeiro frio outonal, fiz o mesmo. Devo ter ouvido o clip umas vinte vezes. Não é das músicas mais ouvidas dos Beatles, mas é muito viciante, pelo menos para mim. Durante o dia, fui fazer a apresentação do livro à MGIMO, uma Universidade Estatal russa para formação de diplomatas. No fim da palestra, reunimo-nos todos — os organizadores, Olga Roussinova da Universidade Europeia de São Petersburgo e João Mendonça João, do Instituto Camões, mais alguns professores do Departamento de Português — para beber um vinho e uma aguardente que se não me engano se chama sobogan. No grupo estava um tradutor de português e de outras línguas, Rinat Valiulin, que a certa altura se levantou para atender o telefone. O toque que ele tinha no telemóvel era nem mais nem menos do que — eu primeiro achei que estava a ter alucinações auditivas por excesso de repetições da música — While my Guitar Gently Weeps.

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O que quer Sócrates?

o voto de cada português foi contado, todos valem exactamente o mesmo, e é bom que toda a gente respeite o veredicto. Leio na imprensa internacional que Francisco Van Zeller, porta-voz dos mais privilegiados e conservadores entre os patrões portugueses, faz campanha contra a possibilidade de sermos governados à esquerda — porque isso seria “nocivo ao crescimento da economia”. Noutro momento, a minha resposta seria irónica: qual crescimento? Mas lamento; ainda estamos demasiado perto das eleições. A ideia de que o voto de mais de três milhões de portugueses — que escolheram partidos de esquerda nestas eleições — deva ser ignorado para nos conformarmos todos com os preconceitos ideológicos do Sr. Van Zeller é ainda demasiado prematura. O Sr. Van Zeller pode não ficar contente com o resultado — como eu não fico, quando a direita ganha —, mas é de democracia que estamos a falar: o voto de cada português foi contado, todos valem exactamente o mesmo, e é bom que toda a gente respeite o veredicto.

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Tomem e desembrulhem

A bola está do lado de Sócrates, mas as consequências não são as mesmas em qualquer das soluções. O panorama político em que acordámos hoje é o mais interessante dos últimos anos. Depois deste ano frenético com três eleições, a política não sai de cena. Nunca uma legislatura prometeu ser tão diferente da anterior. E isto tudo apesar do que não mudou. Comecemos por aí, que é mais fácil. Em primeiro lugar, o eleitorado português continua firmemente de esquerda. A esquerda nos seu conjunto tem sempre mais de cinquenta por cento dos votos, ao passo que a direita não descola dos quarenta por cento. O eleitorado não tem confiança na maioria absoluta; mas quer ser governado à esquerda. Qualquer acordo à direita será feito contra uma maioria do eleitorado.

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O pentapartidarismo num país perto de si

Mas como em qualquer desenho, é preciso haver quem o saiba interpretar. E são os partidos menores, que mais beneficiam desta dispersão de votos, que mais interesse têm em demonstrar que ela não é danosa para o país. Nas eleições de domingo, só uma grande surpresa não nos dará cinco partidos com lugares no parlamento, todos eles fruto de votações. Dois partidos entre os 25 a 30%, três partidos em redor dos 10%. Poderíamos dizer “dois grandes partidos” e “três pequenos partidos”, mas talvez não seja desajustado pensá-los como partidos na casa média-maior, dois deles, e média-menor, os três restantes. Que país é este? A Alemanha. Embora sejam mais conhecidos os sistemas bipartidários, como o dos EUA; — ou tripartidários imperfeitos, como na Inglaterra; ou mesmo tetrapartidários, como foi Portugal desde o 25 de Abril até ao aparecimento do Bloco de Esquerda — não é tão incomum aquilo que teremos em Portugal a partir do próximo domingo. A prova é que partilhamos com a Alemanha, maior país da UE, um desenho político quase feito a papel vegetal.

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Senhores responsáveis

Quando a imagem de responsabilidade se desvanece, porém, não resta mais nada. Não há uma ideia, não há uma forma de ver o mundo que disfarce o vazio que sempre ali esteve. Uma característica antiga da política em Portugal é considerar-se que o poder não deve ser exercido por quem testou as ideias mais estruturadas ou mais frescas, quem melhor sabe ler os seus tempos ou quem consegue casar as duas coisas (uma leitura dos problemas do seu tempo com as ideias certas para eles). Não. Para o Portugal português, o poder deve ser exercido pelos senhores “responsáveis”. E como se sabe que esses senhores (e às vezes senhoras) são responsáveis? Sabe-se porque eles mesmos o repetem muito e porque têm muita gente à sua volta que também o repete muito. Os senhores responsáveis estariam portanto desobrigados de chegar ao poder pelas ideias; teriam assim uma espécie de direito pré-natural a ocupá-lo.

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