Olga Roussinova na estação Pavletsky, à chegada a Moscovo. Fui à Rússia para lançar o Pequeno Livro do Grande Terramoto — ou diria antes o nano-micro-piqueno-e-médio livro? — e logo na primeira noite no país tive vontade de escrever neste blogue. Saiu um post grande — ou deveria antes dizer médio-extenso? — e perdi-o ao tentar publicá-lo. Talvez tenha sido melhor. A semana passada, quando isto aconteceu, todos os portugueses (eu incluído) estavam obcecados com as eleições e não valia a pena tentar falar de outra coisa. No avião eu tinha lido um longo texto da Rolling Stone o fim dos Beatles visto de dentro [Why The Beatles Broke – The Inside Story]. Para além de gostar da música, nunca fui grande beatlesiano aplicado, porque sê-lo significa recolher e preservar grandes quantidades de informação. Acho que me limitei a ficar satisfeito por haver outros beatlesianos aplicados que fizessem o trabalho por mim. Mas ao ler a matéria da Rolling Stone, pude apreciar a história dos Beatles como ela é, não só de excelente música que continua excelente, mas de uma espécie de epopeia que está na história da criatividade humana como estão as dos grandes artistas e autores desde o Renascimento, com os seus elementos narrativos da descoberta do talento, da superação dos limites do próprio género, da ascensão e queda dos génios, e finalmente da sua conversão em figuras para-lá-da-arte. No caso dos Beatles, tudo isto é potenciado por ser — ao contrário dos artistas do Renascimento ou do Romantismo — uma história de uma banda, de um grupo de quatro rapazes. A narrativa fica também uma narrativa de amizade, de rivalidade e de cansaço. Uma das coisas mais interessantes era ver como algumas das grandes músicas — que são “momentos” mais do que músicas — se tinham cristalizado algures durante os grandes momentos de crise da banda. Era quando os Beatles já não se podiam ver uns aos outros, quando já estavam exaustos e irritados, que um se punha a tocar sozinho no seu canto, e outro quase tentando estragar-lhe a música acabava por a levar para outro patamar. Os Beatles não tinham perdido o “toque”. Só tinham perdido a capacidade de fazer coisas boas da maneira normal para passarem a fazer coisas geniais da maneira sofrida. O autor do artigo não deixava de, a cada possibilidade, insinuar as semelhanças entre o fim de uma banda e o fim de uma relação amorosa. Isso vai desde o título do artigo (aquele “broke up”) até à descrição das brigas, das irritações e da mesquinhez mútua e magoada dos membros da banda. A analogia é talvez demasiado típica. É muito comum tratar as parcerias artísticas nos termos das relações amorosas. No caso dos Beatles e de John Lennon em particular, com a chegada de Yoko Ono, isso é fácil de ver. Tão fácil que às vezes nos escapa o outro lado, ou seja, ver como as relações amorosas também são como as parcerias artísticas de certa maneira. E, no entanto, isso é de novo particularmente evidente com John & Yoko — Lennon não sai dos Beatles por uma relação amorosa apenas, mas se pensarmos que essa relação é também uma parceria artística, a coisa já faz mais sentido. Enfim. No sentido mais genérico, uma relação amorosa, — quando corre bem, quando corre mal, mas especialmente quando corre bem — tem as mesmas características da criação artística: o entusiasmo, os achados, a cristalização de uma linguagem privada, etc. Bem, a história poderia acabar aqui. No artigo explicava-se como no fim dos Beatles começaram a acontecer coisas inesperadas, como composições de George Harrison e músicas cantadas por Ringo Starr. E aparecia uma boa descrição do momento em que surgiu While my Guitar Gently Weeps, de George Harrison, que me deu vontade de ouvir a música. Na noite moscovita, num apartamento vazio, procurei o youtube e pus um clip da música a tocar repetidamente. No outro dia, de manhã, enquanto me preparava para enfrentar um primeiro frio outonal, fiz o mesmo. Devo ter ouvido o clip umas vinte vezes. Não é das músicas mais ouvidas dos Beatles, mas é muito viciante, pelo menos para mim. Durante o dia, fui fazer a apresentação do livro à MGIMO, uma Universidade Estatal russa para formação de diplomatas. No fim da palestra, reunimo-nos todos — os organizadores, Olga Roussinova da Universidade Europeia de São Petersburgo e João Mendonça João, do Instituto Camões, mais alguns professores do Departamento de Português — para beber um vinho e uma aguardente que se não me engano se chama sobogan. No grupo estava um tradutor de português e de outras línguas, Rinat Valiulin, que a certa altura se levantou para atender o telefone. O toque que ele tinha no telemóvel era nem mais nem menos do que — eu primeiro achei que estava a ter alucinações auditivas por excesso de repetições da música — While my Guitar Gently Weeps.