Quando a imagem de responsabilidade se desvanece, porém, não resta mais nada. Não há uma ideia, não há uma forma de ver o mundo que disfarce o vazio que sempre ali esteve.

Uma característica antiga da política em Portugal é considerar-se que o poder não deve ser exercido por quem testou as ideias mais estruturadas ou mais frescas, quem melhor sabe ler os seus tempos ou quem consegue casar as duas coisas (uma leitura dos problemas do seu tempo com as ideias certas para eles). Não. Para o Portugal português, o poder deve ser exercido pelos senhores “responsáveis”. E como se sabe que esses senhores (e às vezes senhoras) são responsáveis? Sabe-se porque eles mesmos o repetem muito e porque têm muita gente à sua volta que também o repete muito. Os senhores responsáveis estariam portanto desobrigados de chegar ao poder pelas ideias; teriam assim uma espécie de direito pré-natural a ocupá-lo.

Por paralelismo, poderia dizer-se que esses senhores responsáveis são um pouco como os senhores respeitáveis de bancos como o BCP, o BPN e o BPN. Dá-se o caso, até, de muitas vezes serem as mesmas pessoas físicas: foram senhores muito responsáveis quando eram políticos, passaram a ser senhores respeitáveis quando se tornam empresários. À sua volta vão semeando as consequências que conhecemos.

Seja como for, por detrás destes vícios políticos nacionais está uma causa: a desvalorização do debate de ideias (ou ideológico, se preferirem, embora não seja o meu termo preferido), a desvalorização da controvérsia e da competição democrática.

***

O principal intérprete vivo dessa desvalorização tem sido o actual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Foi ele que disse que, colocados perante os mesmos dados, duas pessoas diferentes teriam de achar a mesma coisa — esquecendo, no seu ensimesmamento, que duas pessoas diferentes nunca olham para todos os mesmos dados, muito menos da mesma maneira. Se a ilusão de Cavaco Silva (e dos seus discípulos como Manuela Ferreira Leite) fosse possível, não precisaríamos do confronto que é a democracia.

Cavaco Silva é, assim, o “senhor muito reponsável” por excelência. E o Bloco Central, ou a aliança dos senhores muito responsáveis dos dois maiores partidos, é o ideal por excelência desta visão medíocre (há que dizê-lo) da política.

Quando a imagem de responsabilidade se desvanece, porém, não resta mais nada. Não há uma ideia, não há uma forma de ver o mundo que disfarce o vazio que sempre ali esteve.

A actual polémica sobre as “escutas” de Belém deixa-nos perante este vazio. Não vou escrever sobre os pormenores conspirativos dela. Seja esta polémica real ou puramente imaginária, vou apenas dizer isto: o que ela nos revela é que os irresponsáveis estão no topo do poder, que os senhores muito respeitáveis e muito competentes agem da forma mais pueril com as instituições que tanto dizem defender.

A pergunta que resta aos senhores responsáveis que defendem o Bloco Central como forma reponsável de salvar a nação é: querem mesmo esta aliança entre gente que acha que se espia mutuamente ou que acha que se lixa mutuamente através das páginas dos jornais?

[do Público]

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