Tudo bem, os debates sobre escândalos de liberdade de imprensa atraem todo o tipo de oportunismos e interesseirismos. E padecem quase sempre de uma extraordinária falta de memória. No outro dia tive um debate com Nuno Melo em que ele se gabava de ter tentado debater o caso PT/TVI no Parlamento Europeu. Nada disso. O que aconteceu foi que vários deputados do PPE, incluindo Nuno Melo, apresentaram o máximo de emendas que pretendiam torpedear um debate sobre Liberdade de Informação na Itália. Se o atual escândalo nacional até faz alguém que fez o seu possível por torpedear um debate sobre Liberdade de Informação apresentar-se como tendo querido fazer um debate (na verdade, uma emenda, e oral, no momento da votação) imagine-se o que não vai por aí. Já agora: Paulo Rangel também votou contra a resolução sobre Berlusconi, embora agora pareça ter evoluído para a posição de que o Parlamento Europeu afinal é o lugar ideal para discutir a questão da Liberdade de Informação num estado-membro em particular. Registo com agrado. Claro que, como também já foi bastante glosado aqui no Arrastão, também registo com agrado que um Insurgente, Rodrigo Adão da Fonseca, tenha evoluído na sua posição sobre estes assuntos. Em tempos pretendia que o proprietário do Público, por razões puramente não-editoriais, me expulsasse da lista de cronistas do jornal. Na sua opinião, o poder do dinheiro não deveria dar voz a quem pudesse ser contrários aos seus interesses imediatos. Agora já acha escandalosa uma intervenção sobre a propriedade de um canal de media para beneficiar os interesses imediatos, no caso, de um primeiro-ministro. Se as pessoas se preocupassem em ter critérios minimamente estáveis para estas coisas fariam um grande favor a si mesmas e às causas que querem defender. Pela mesma razão, aceito que haja uma demarcação em relação a este oportunismo e interesseirismo, mas só e apenas em quem se der ao trabalho de criar um discurso autónomo, vigoroso e sério sobre o que se está a passar. Porque evidentemente, como todos já percebemos para lá dos formalismos, há razões bem fundadas para concluir que Sócrates criou maus hábitos na relação com a imprensa. Estou à vontade para o escrever: a primeira vez que o denunciei foi quando Sócrates fez uma coisa legal (processar um jornalista) e não quando alegadamente teria feito algo que não o era. A imprensa é a fraqueza de Sócrates, uma fraqueza de tonalidade nixonianas que pode acabar por o perder. Foi repetidamente avisado e não emendou caminho. O seu descontrole emocional em relação à imprensa impôs-se a qualquer sensatez política e pôs em causa a sacralidade da imprensa — para um governo a imprensa deveria ser isso mesmo: sagrada — revelando-se em coisas que vão do alegadamente patético (exteriorizações coléricas sobre um jornalista) ao alegadamente gravíssimo (ter aliados políticos interessados em mudar a propriedade de canais de media). E agora o problema é de todos nós, porque é verdade que se criou um ambiente de degradação cívica a que a esquerda não pode deixar de dar resposta. Eu sei perfeitamente que se fosse um primeiro-ministro da direita eu estaria furioso, e comigo estariam todos os meus amigos do PS. Eu compreendo que não se queira chafurdar na porcaria, e que se queira evitar quem apenas se interessa pelas vantagens táticas imediatas desta situação. Mas isso só é aceitável em quem tiver um discurso autónomo e vigoroso sobre isto, exigindo que tudo seja esclarecido até ao fim e — caso não o seja — levantar a voz para dizer que é inaceitável que a fraqueza de um primeiro-minisro faça resvalar um país inteiro.