A que fala e os que se vergam

O que se passou foi que o governo francês mentiu em Bruxelas, e ao mais alto nível. Viviane Reding, vice-presidente da Comissão Europeia, com a pasta dos Direitos Fundamentais, é uma política conservadora luxemburguesa, bem ancorada há muitos anos na família democrata-cristã, e membro do Partido Popular Europeu, de que fazem parte Durão Barroso, o próprio Nicholas Sarkozy e, em Portugal, o PSD e o CDS. Por dever de funções, encontro-me com ela quase todas as semanas. Mesmo os deputados que dela estão distantes politicamente — é o meu caso — ou que não gostam dela pessoalmente — não é o meu caso — apreciam a sua franqueza e fala direta. E no primeiro debate que tivemos com ela sobre o caso dos ciganos em França, vários lhe perguntámos porque não era mais clara na condenação do que se estava a passar. A resposta dela foi sempre que — ao contrário do que noticiava a imprensa e afirmavam as pessoas no terreno — ela tinha recebido de vários ministros franceses garantias explícitas de que as deportações em curso não tinham como alvo os ciganos. O que se passou foi que o governo francês mentiu em Bruxelas, e ao mais alto nível. No fim de semana seguinte foi revelada uma circular interna do Ministério do Interior que declarava por três vezes que as deportações e desmantelamentos deveriam ser dirigidas “em prioridade aos roma (ciganos)”. Há nisto um duplo escândalo,

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Saudades do Brasil

Eu gosto do Brasil; mas adoro o Brasil em ano eleitoral — tem a exata mistura de idealismo, baixaria, cinismo, humor destravado e confusão utópica que não me deixa aborrecer. No ano de 2000 peguei em duas mochilas e voei sozinho para o Brasil, pensando voltar dali a dois meses. Quase não consegui. Comecei pelo Rio; ia aos jogos do Flamengo; não queria sair de lá. Em Ouro Preto, Minas Gerais, estive tentado a tornar-me dramaturgo residente de uma companhia de teatro — sem ter escrito até então uma só deixa ou indicação de cena, o que aliás era secundário. Em Brasília, fazendo fotos de Vila Planalto para a tese de uma jovem socióloga, prolonguei a minha solicitude desmesuradamente. Em Alcântara do Maranhão adormeci numa cadeira em plena praça, segurando na mão os meus óculos dependurados como se fossem o rosário de uma freira cansada; por pouco não perdi o último barco. Em Cairú, na Baía, rodando os botecos com um japonês paulista chamado Mário, ri às gargalhadas ao ver que não teria lugar no avião de regresso e, sobretudo, ao perceber que isso não me incomodava nada. Tirando umas horas na Praia do Futuro em Fortaleza, Ceará — bem antes do célebre multiplo homicídio do “monstro lusitano” e, curiosamente, a única vez que me aproximei da horripilante indústria turística nordestina “de luxo” — nunca houve nada de que eu não gostasse no Brasil, incluindo os prédios feios de Goiânia, as favelas intermináveis de São Paulo e os buracos nas estradas do Mato Grosso. Desloquei-me sempre de transportes terrestres, de ônibus. Se o país é grande a viagem tem de ser longa.

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Bingo!

A única preocupação que devemos ter com Manuel Alegre, como com qualquer candidato, é que as suas posições sejam apenas idênticas — não às do partido X ou Y — mas às de Manuel Alegre ele-próprio. É por isso que temos eleições presidenciais uninominais. Lástima é que, quando num dia futuro se fizer a história das presidenciais de 2011, vá passar despercebido o vigoroso momento de viragem que foi a passada sexta-feira. Efetivamente, foi nesse 10 de Setembro de 2010 que ocorreu a publicação de uma crónica de Vasco Pulido Valente em que este profetizava que “Alegre vai a caminho do desastre e não percebeu”. Deveria até ser alcandorado a tradição eleitoral, no mesmo patamar das straw polls das aldeias do Maine nos EUA ou das previsões do polvo Paul na Alemanha, o impreterível facto de que em Portugal nunca nenhuma vitória eleitoral, — em verdade, nunca nenhum facto político —, se pôde dar sem que o Vasco Pulido Valente que todos conhecemos e amamos não lhe prognosticado a sua evidente impossibilidade. Manuel Alegre tem ainda muito caminho para percorrer; mas pode já respirar de alívio por saber que este primeiro escolho lhe foi removido. Com infalível falibilidade, note-se, a previsão de Vasco Pulido Valente não vale só pela forma, mas também pelo conteúdo, a saber, que “o dr. Manuel Alegre condenou anteontem a decisão dos ministros das Finanças da União Europeia de impor um “visto prévio” ao Orçamento dos países-membros”. O problema não é ser isto incorreto — “formalmente, Manuel Alegre tem toda a razão” — mas que a “atitude de Alegre” o “torne assim, indiscutivelmente, o candidato do Bloco”. Vale a pena perder algum tempo descendo a estes pormenores.

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Armar ao pingarelho

O Presidente da Comissão, “guardiã dos tratados”, se cala quando os direitos fundamentais dos europeus — liberdade de movimentos, direito à não-discriminação — estão a ser violados Vídeo * Rui Tavares – Estado da União – PE Estrasburgo * Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, fez ontem o primeiro discurso de sempre do Estado da União — uma cerimónia nova a cuja ideia talvez não seja alheio o discurso do mesmo nome que todos os anos o Presidente Obama faz, com audiências televisivas de mais 40 milhões de pessoas. Tratando-se de Durão Barroso, porém, houve quem tivesse medo de que nem a casa se conseguisse encher. A Presidência do Parlamento Europeu inventou umas multas manhosas que seriam aplicadas aos deputados que, no momento da chamada, não premissem um botãozinho de verificação de presença. Não passou pela cabeça de ninguém que seria um pouco humilhante para Durão Barroso partir do princípio que apenas sob ameaça de extorsão alguém aceitasse ouvir o que ele tem para dizer. Mas isto não foi culpa dele. Mais extraordinário ainda, não passou pela cabeça de ninguém — nem do próprio — que a melhor forma de garantir o interesse por este e por futuros discursos seria fazer, singelamente, um bom discurso. Um discurso em que se dissesse coisas importantes, por exemplo. Quem sabe, coisas relevantes. Com um pouco de sorte, coisas corajosas. Imaginemos, por exemplo, que fosse necessário criticar severamente o líder de um dos estados-membro mais poderosos da União. Um discurso importante, relevante e corajoso não se coibiria de o fazer — e as pessoas seriam capazes de o ouvir, e depois de o recordar. Mas isto são noções demasiado rebuscadas para certos nichos da eurocracia. Para alguém que limitasse as suas expectativas ao mínimo, esperar-se-ia uma coisa de um discurso do Estado da União. Vá lá, não é difícil: que falasse do Estado da União. Mas não! Juro-vos que não estou a inventar,

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Falhámos nós

Costuma-se dizer que o estado falhou na Casa Pia. Dizer isso é impessoalizar a coisa. Mais do que o estado, quem falhou foi a comunidade — falhámos nós. À exceção eventual de “sórdido”, não me lembro de uma única palavra adequada para o caso Casa Pia. Qualquer coisa dita é sempre uma coisa desajustada, que não faz justiça, uma mancha verbal só justificada por uma razão: o silêncio seria ainda mais vergonhoso. De resto, tristeza. Tristeza pelas então crianças e tristeza pela instituição fria que não as protegeu. Tristeza pelos aspectos predatórios que a natureza humana tem. Tristeza pela demora e pela incompetência e pela dúvida, e pela possibilidade de inocentes ficarem também eles manchados. Tristeza porque uma maldade não apaga outra. Tristeza pelas famílias e amigos dos culpados — todos os criminosos têm alguém que gosta deles. Tristeza pelos aproveitadores e oportunistas que estas coisas arrastam. Nessa lamentável paisagem, distinguem-se aqueles que fizeram o que era sua responsabilidade. Quem tenha escrito ponderando — e não era fácil. Quem tenha investigado sem paixão — e não era fácil. Quem tenha julgado com justiça. Quem tenha defendido um réu acreditando na sua inocência, ou apenas  acreditando que toda a gente tem direito a uma defesa em tribunal. E acima de tudo, quem tenha prestado testemunho verdadeiro, lutando contra a vergonha e a memória e o trauma — e isso deve ter sido o mais difícil de tudo. Não sei quantas pessoas cabem em cada uma destas categorias. Só cada uma delas saberá se foi o seu caso. O colégio Dona Maria Pia, na Madre Deus, pertencente à Casa Pia, ficava a duzentos metros da minha escola primária em Lisboa. Cruzávamo-nos com os miúdos da Casa Pia na rua e tínhamos em mente os avisos dos nossos professores, dos contínuos, dos nossos pais e irmãos mais velhos. Os miúdos da Casa Pia eram — se pesarmos bem as palavras

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Esquecer caras, escolher palavras

Eu não dou opiniões: escolho palavras. Umas palavras desdobram as outras. Tenho um caso moderado de prosopagnosia, diz uma amiga que estuda estas coisas. Chama-se prosopagnosia à dificuldade de reconhecer rostos. Para compensar, uso pequenas manhas. Aviso toda a gente. Quando dei aulas, fazia questão de dizer aos meus alunos, na aula de apresentação: “se eu não vos cumprimentar no corredor…” (e aqui poderia ter acrescentado: “…é porque tenho um caso moderado de prosopagnosia”. Passado algum tempo, porém, esqueço-me se já avisei aquelas pessoas ou não, tenho receio de me tornar repetitivo. E então, de vez em quando, lá vão regressando as queixas: serei mal-educado, não cumprimentei fulano, já não conheço os velhos colegas, etc. Quando isso acontece, passo à fase seguinte: cumprimento toda a gente que julgo conhecer. Atravesso a rua para os saudar. E quando chego perto deles, pronto a abraçá-los, passo pela vergonha de ter de admitir perante um estranho que o tinha confundido com alguém. Sucedem-se os episódios: uma vez acariciei o pescoço de uma jovem atriz (que nunca me fora apresentada) pensando que era uma amiga dos tempos da faculdade. Outra vez confundi duas mulheres que tinham, entre elas, uma diferença de quarenta anos de idade (a mais nova não achou graça — ou melhor, riu à gargalhada, mas não achou graça à mesma). E aí nascem novas histórias: que sou distraído, que faço figuras ridículas. Envergonhado, deixo de cumprimentar toda a gente. Passo por arrogante. Envergonhado, volto a cumprimentar toda a gente. Passo por tontinho. A prosopagnosia já me deu uma lição de humildade

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Lições de há cinco anos

Os analistas que aplaudiram a escolha de Francisco Lopes pelo Comité Central do PCP parecem ter esquecido a lição de há cinco anos. O que interessa é se a candidatura tem condições para ter relevância para lá de um quadro partidário. Há cinco anos, mais ou menos, a política portuguesa estava assim. Mário Soares tinha apresentado a sua candidatura à Presidência da República, instado por José Sócrates entre outros, e entre outras razões porque havia sondagens (algumas delas publicadas, as outras confidenciais) que o davam como vencedor das eleições e, se não isso, pelo menos o único candidato capaz de interromper um passeio tranquilo de Cavaco Silva até Belém. Ato contínuo, o PCP e o BE apresentaram os seus candidatos, os mais fortes que tinham, mas que de certa forma se anulavam mutuamente: os líderes. As candidaturas de Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã foram o equivalente, em xadrez eleitoral, a uma troca de rainha por rainha. Um esforço de soma zero. Qualquer destes três candidatos, de uma forma ou outra, se sacrificou pelo seu partido. Entretanto, Manuel Alegre apresentou-se correndo por fora e acabou por ter o melhor resultado da esquerda. E Cavaco Silva foi eleito à primeira volta, sim, mas com a maioria mais reduzida de qualquer eleição presidencial da democracia. O passeio tranquilo esteve a pouco mais de meio ponto de se perder. O que se passou?

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A nossa agente em Petersburgo

Claro, quem melhor denuncia a identidade dos nossos espiões é sempre o ministro da tutela, desde Veiga Simão que publicou uma lista com os nomes deles, a Augusto Santos Silva que anteontem anunciou que ia enviar espiões militares para o Líbano. “Temos de ir beber um copo com o gajo do SIS”. “Com o gajo do quê?”. “Do SIS, pá, com o nosso espião”. “E tu sabes quem é?”; “toda a gente sabe”; “toda a gente, como?”; “oh pá, toda a gente: os estudantes de piano, os de matemática, e o português que veio para cá atrás da namorada — todos”. “Mas então o gajo revela assim a identidade?”. “Eh pá, tens que ver que ele está um bocado dependente de nós” — o meu interlocutor encolheu os ombros — “é que o gajo do SIS não sabe falar russo”. Estávamos numa cidade de cujo nome não quero recordar-me, mas onde falar russo não era insignificante. Bastava aguçar os ouvidos: toda a gente ali falava russo — menos eu e o gajo do SIS.

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Pancada no pequeno

O que a França está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a “guardiã dos tratados”, não se insurge. Durão Barroso está silencioso. Sabem o que eu gostaria de ser? Um colunista de direita. Se eu fosse um colunista de direita poderia comparar a minha ida ao Algarve para férias, — de avião, e em primeira classe — com o avanço do exército nazi pela Europa fora (o leitor que achar isto impossível faça o favor de ler a crónica de Vasco Pulido Valente de ontem). Sendo um cronista de esquerda, não posso sequer comparar o salazarismo com o fascismo. Porém, se fosse um cronista de direita poderia defender que o salazarismo foi o primeiro construtor do estado social, um grande escolarizador e, se tivéssemos dado uma chance (mais outra) ao marcelismo, uma quase democracia civilizada. (O leitor que achar isto impossível faça o favor de ler o ensaio de Rui Ramos sobre Salazar no “Atual” do Expresso). Sendo um cronista de esquerda, não tenho estas liberdades: devo até justificar-me por tudo e um par de botas, do PREC ao Guterrismo. Ora, se eu fosse um colunista de direita, teria o problema correspondente resolvido. Poderia simplesmente declarar que não existe nenhum partido de direita em Portugal, que o PSD e o CDS são na verdade socialistas, e que nenhum deles é digno das minhas extraordinárias ideias. (O leitor que achar isto impossível leia qualquer crónica de Henrique Raposo no Expresso). Sabem o que eu não queria? Chatear-vos nas vossas férias, reais ou simplesmente imaginadas. Mas cá vai disto.

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Ray Bradbury não morreu

Fantástico não era desembarcarem extraterrestres como nos outros livros de Ray Bradbury. Era ser rapaz e ler livros em que desembarcassem extraterrestres. Era no tempo dos telefones fixos e havia um coronel aposentado que ligava para um velho amigo na Cidade do México. Abre a janela e espeta o telefone do lado de fora, dizia ele; eu quero escutar os barulhos que sobem da praça do Zócalo, e as vendedoras apregoando mamão e polpa de cacto, e os índios dos 400 povos fazendo confusão aí embaixo. Isto era em A Cidade Fantástica, de Ray Bradbury, já mais de metade do livro andado. Eu tinha chegado até ali desconfiado. Mas então não passa disto? Numa coleção de ficção científica? Quando é que desembarcam os extraterrestres?

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