Costuma-se dizer que o estado falhou na Casa Pia. Dizer isso é impessoalizar a coisa. Mais do que o estado, quem falhou foi a comunidade — falhámos nós.

À exceção eventual de “sórdido”, não me lembro de uma única palavra adequada para o caso Casa Pia. Qualquer coisa dita é sempre uma coisa desajustada, que não faz justiça, uma mancha verbal só justificada por uma razão: o silêncio seria ainda mais vergonhoso.

De resto, tristeza. Tristeza pelas então crianças e tristeza pela instituição fria que não as protegeu. Tristeza pelos aspectos predatórios que a natureza humana tem. Tristeza pela demora e pela incompetência e pela dúvida, e pela possibilidade de inocentes ficarem também eles manchados. Tristeza porque uma maldade não apaga outra. Tristeza pelas famílias e amigos dos culpados — todos os criminosos têm alguém que gosta deles. Tristeza pelos aproveitadores e oportunistas que estas coisas arrastam.

Nessa lamentável paisagem, distinguem-se aqueles que fizeram o que era sua responsabilidade. Quem tenha escrito ponderando — e não era fácil. Quem tenha investigado sem paixão — e não era fácil. Quem tenha julgado com justiça. Quem tenha defendido um réu acreditando na sua inocência, ou apenas  acreditando que toda a gente tem direito a uma defesa em tribunal. E acima de tudo, quem tenha prestado testemunho verdadeiro, lutando contra a vergonha e a memória e o trauma — e isso deve ter sido o mais difícil de tudo. Não sei quantas pessoas cabem em cada uma destas categorias. Só cada uma delas saberá se foi o seu caso.

O colégio Dona Maria Pia, na Madre Deus, pertencente à Casa Pia, ficava a duzentos metros da minha escola primária em Lisboa. Cruzávamo-nos com os miúdos da Casa Pia na rua e tínhamos em mente os avisos dos nossos professores, dos contínuos, dos nossos pais e irmãos mais velhos. Os miúdos da Casa Pia eram — se pesarmos bem as palavras — uma casta à parte. Considerados quase ineducados, agressivos, mentirosos, indignos de confiança, futuros meliantes, bêbedos e indigentes — era lançada uma camada de preconceito sobre eles ainda antes de porem o pé na rua.

Esse preconceito — um pouco de história e de sociologia do nosso país — era a secreção natural de um país injusto, que naturalizava os defeitos dos mais pobres e miseráveis para justificar porque não se deveria fazer nada por eles. Quando os miúdos da Casa Pia se queixaram, ninguém os levou a sério. Quando eles foram presa fácil do abuso ou, depois, da prostituição, deve até ter havido quem achasse que eles eram mesmo assim.

Se as coisas fossem diferentes, teria sempre havido abusadores e violadores. Mas não teriam podido aproveitar-se de um armazém de crianças à disposição.

Costuma-se dizer que o estado falhou na Casa Pia. Dizer isso é impessoalizar a coisa. Mais do que o estado, quem falhou foi a comunidade — falhámos nós. A Casa Pia tinha provedores e professores e responsáveis que não fizeram o que deviam. O Ministério dos Negócios Estrangeiros recebeu indicações sobre um diplomata que violava meninos nas suas missões ao estrangeiro — e deixou-o ficar em funções.

Gostaríamos de acreditar que o país já não é assim. Mas se pensarmos um pouco na nossa realidade social, não é difícil ficar inquietado. Estamos agora, como comunidade, ainda a falhar com pobres, crianças, deficientes e velhos — e não é inevitável que seja assim. Pensemos nisto: nem todos os países são assim.

6 thoughts to “Falhámos nós

  • Maria Lopes

    Conseguimos ir à lua, conseguimos ir ao fundo do mar, mas ainda não conseguimos ir ao fundo da questão: que tipo de pessoas somos nós que permitimos que tal acontecesse? As pessoas esquecem-se que são o Estado e como tal a nossa responsabilidade é igual às dos violadores.

  • Rui Silvares

    Mas uns são mais assim que outros.

  • bul bosa

    num tá mau — e não é inevitável que seja assim.
    Pensemos nisto: nem todos os países são assim, não são ?

    deves ter visto as partes melhores

    na finlândia na suécia também há guetos e excluidos

    têm é mais dinheiro para gastar

    e há pior e pior há-de ficar

  • José Manuel Faria

    “Mais do que o estado, quem falhou foi a comunidade — falhámos nós”

    Seguindo esse raciocínio, nunca há culpados para as realidades sociais concretas!

    Eu não falhei.

  • Ana Luísa

    Como resistir, ante o desamparo das vítimas, à tentação de exigir que se faça justiça, ainda que o mundo pereça? “Fiat justitia pereat mundus”… Como conter, ao pensar nas infâncias roubadas, o nosso surdo clamor interior por uma vingança taliónica?
    E, ao mesmo tempo, como não condenar o “efeito-de-pelourinho” dos anátemas que a saturação mediática lançou sobre os réus?

    Falhámos nós, sim… Nós, com as nossas múltiplas “separationes leprosorum”: económicas, sociais, raciais, morais… verbais… Falhámos e falhamos, nós, pois, quando tratamos outros seres humanos como “diferentes”, predestinados a uma carreira criminosa, condenados ao estigma de uma vida nas margens…
    Falhámos e falhamos na nossa percepção da alteridade, na nossa concepção do “outro” como a imagem invertida do “eu”… O “eu” normativo, virtuoso, o “outro” desviante, criminoso.
    Falhámos e nada o revelará melhor do que o preconceito condensado nos aforismos do “bonus pater famílias” que há em cada português: “cuidado com os meninos da Casa Pia”, “manter um olho no burro e outro no cigano”, “há muitos assaltos naquele bairro de imigrantes”. Assim se instalou, durante anos, a aquiescência silenciosa a algo que nada, nunca seria capaz de nos preparar para compreender: nenhuma leitura (nenhum Nabukov, nenhum Malaparte, nenhum Littel…), nenhum testemunho de vida escutado, nenhuma experiência presenciada…

    Tolerância ainda mais insidiosa em instituições que deveriam ser uma referência deontológica na vida pública: um Ministério que não expulsou, não puniu, nem tão-pouco denunciou um embaixador dado como “persona non grata” em vários países precisa de escrutinar impiedosamente as opacas entranhas da sua máquina burocrática.

    Post-Scriptum:

    Vale a pena ler “O Regresso do Paladino” do escritor mexicano Antonio Sarabbia. Numa escrita ponderada, num estilo que se diria “tranquilamente mensurado”, – que só pecará por se tornar “demasiado correcto” (ou previsível na intriga), tão perfeito é o equilíbrio entre contexto histórico, vivências do elenco e relato autoral diarístico – Antonio Sarabbia descreve de forma magistral o cerimonial da “separatio leprosorum”, na França do século XIV, de Filipe IV, o Belo. Porém, ao contrário do que acontece quase sempre na vida real, a sua vítima, personagem principal do livro, conhece a glória, as honrarias e o verdadeiro Amor longe, na Granada muçulmana, no seio do povo inimigo, aquele mesmo que fora ensinado a desprezar e que o acolhe quando os da sua condição social e religião o renegam e apodam de “impuro”, condenando-o ao ostracismo e a uma vida sem identidade.

    Antonio Sarabbia – divulgue-se – vive há já alguns anos em Lisboa, com a sua mulher, a também escritora, poeta “pensada” e biógrafa de Marie Curie, Lauren Mendinueta, de nacionalidade colombiana. Podem, por vezes, encontrar-se na livraria “Fabula Urbis” e falam com tempo e prazer dos seus respectivos projectos literários. Antonio já anunciou que dedicará a Inês de Castro, a nossa “Reine Morte” (Montherlant), um romance…

    Um apontamento mais: são meus amigos, mas devem sobretudo ser um motivo de orgulho para nós, por terem escolhido viver em Portugal, também eles na condição de artistas-migrantes, intelectuais-errantes, viajantes, em suma, do sonho criativo… Como tantos outros cidadãos de outros países, de todas as profissões, que aportam a Lisboa, como em tempos “a minha pátria se derramava na gare de Austerlitz” (Manuel Alegre)…

    Mas a esta questão – ao modo como tratamos os nossos imigrantes, as nossas minorias, os nossos “outros eus”, em suma… – teremos que voltar uma e outra vez até que as “sarko-azias” deste mundo cessem de nos provocar náuseas…

    Façamo-lo hoje e sempre porque talvez depois de um novo Auschwitz não seja mesmo possível filosofar.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Talvez haja hoje por parte de possiveis novas vitimas a noção de que apesar de tudo, podem ser ouvidas e atendidas.

    Talvez haja medo por parte de possiveis ,outros, abusadores de serem acusados, e de efectivamente virem a ser condenados.

    Ao menos que isto seja possivel: Havr cuidadodo, haver vergonha, haver alguma justeza!. O resto foi muito mau!!!!

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