Eu gosto do Brasil; mas adoro o Brasil em ano eleitoral — tem a exata mistura de idealismo, baixaria, cinismo, humor destravado e confusão utópica que não me deixa aborrecer.

No ano de 2000 peguei em duas mochilas e voei sozinho para o Brasil, pensando voltar dali a dois meses. Quase não consegui.

Comecei pelo Rio; ia aos jogos do Flamengo; não queria sair de lá. Em Ouro Preto, Minas Gerais, estive tentado a tornar-me dramaturgo residente de uma companhia de teatro — sem ter escrito até então uma só deixa ou indicação de cena, o que aliás era secundário. Em Brasília, fazendo fotos de Vila Planalto para a tese de uma jovem socióloga, prolonguei a minha solicitude desmesuradamente. Em Alcântara do Maranhão adormeci numa cadeira em plena praça, segurando na mão os meus óculos dependurados como se fossem o rosário de uma freira cansada; por pouco não perdi o último barco. Em Cairú, na Baía, rodando os botecos com um japonês paulista chamado Mário, ri às gargalhadas ao ver que não teria lugar no avião de regresso e, sobretudo, ao perceber que isso não me incomodava nada.

Tirando umas horas na Praia do Futuro em Fortaleza, Ceará — bem antes do célebre multiplo homicídio do “monstro lusitano” e, curiosamente, a única vez que me aproximei da horripilante indústria turística nordestina “de luxo” — nunca houve nada de que eu não gostasse no Brasil, incluindo os prédios feios de Goiânia, as favelas intermináveis de São Paulo e os buracos nas estradas do Mato Grosso.

Desloquei-me sempre de transportes terrestres, de ônibus. Se o país é grande a viagem tem de ser longa.

Era ano de eleições locais no Brasil.

Eu gosto do Brasil; mas adoro o Brasil em ano eleitoral — tem a exata mistura de idealismo, baixaria, cinismo, humor destravado e confusão utópica que não me deixa aborrecer. Em 2000, por todo o lado se viam pintados os extraordinários nomes dos candidatos a prefeitos e vereadores, apoiados por linhas de dez ou mais partidos, e com o devido acompanhamento musical (reggae no Maranhão; frevo em Pernambuco; axé na Baía). Chegada a noite eleitoral, com a precisão do voto eletrónico, soube-se em minutos que o PT tinha tido resultados encorajadores. A vitória de Lula começou ali e cumpriu-se dois anos depois.

Os oito anos de Lula fui vendo com os meus olhos: a chegada dos pobres à universidade, o ovo-de-Colombo da bolsa-família que alfabetiza as crianças e tira os pais da miséria, o sucesso do programa “Fome Zero” (logo glosado pelos donos dos bares com o “Sede Zero”).

Também vi os podres deste percurso. A forma como os quadros “aloprados” do PT perderam a cabeça diante do poder e do dinheiro foi repugnante; a tendência para a arrogância intelectual dos restantes é inquietante.

Mas feito o deve e haver, a presidência Lula é provavelmente a melhor de sempre no Brasil, superior — um estrangeiro pode dizer isto — à de Juscelino Kubistchek.

Há um ano, fiz uma curta viagem em Minas Gerais. Ao meu lado, um jovem motorista de táxi, vindo de um subúrbio pobre de Belo Horizonte, que fazia o curso de História da Arte Barroca em horário pós-laboral. Em hora e meia deu-me uma aula sobre sociedade e política brasileira que deixaria orgulhosos Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Darcy Ribeiro. Ele próprio era um indicador de como o país está a mudar — e há milhares de jovens assim. Adicionalmente, explicou-me que Dilma Roussef iria ganhar as eleições deste ano no Brasil — porque teria o apoio de Lula; e porque o PSDB não candidataria Aécio Neves, o ex-governador de Minas que ainda poderia dar alguma emoção à corrida, mas sim o gasto José Serra. As previsões dele cumpriram-se até agora, e devem cumprir-se até ao fim. Desta vez, as eleições brasileiras estão sem graça — resmungo eu, de longe.

9 thoughts to “Saudades do Brasil

  • Alexandre Monteiro

    E não é que hoje estourou mais um caso de corrupção do governo Lula, o tal que Rui Tavares considera o melhor da história do Brasil ?!?!

    Ahhh…Como sempre Lula não sabia de nada…

    http://www1.folha.uol.com.br/poder/799803-entenda-as-acusacoes-envolvendo-erenice-guerra.shtml

  • Maria Estácio

    Como manter e desenvolver uma relação na base da lonjura,interpostos,violência(q é o q é,n é?)e ameaças,Rui?!…
    Para essas guerras n tenho jeito,nem apetite.

  • F. A. Barros

    Aqui, Ruy, os jornalões de outrora ouvem criminosos, horrizados com a corrupção, denunciarem o PT de Lula, tendo como única prova seu ilibado testemunho. E os mais ingénuos, dão vazão às denúncias. A sorte é que no Brasil esses últimos são minoria, ainda que bicudos.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    O Brasil está a ser um exemplo positivo para o Mundo.

    Até na Agricultura! Onde conseguiu nestas últimas décadas fazer o que se pensva ser impossivel de fazer.

    E não é com base em exageros esquerdistas!

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Como é evidente o Ocidente e moremente a Europa, está num tremendo impasse, que só será resolvido com gente nova na política e na governção, hoje não se vê um unico politico capaz, nas esquerdas, nas direitas, nas oposições, só uma nova geração não formatada que não queira poder pelo poder, conseguira, algo fazer!!

  • Ana Luísa

    …Tão bonito… Que maravilhosa homenagem ao Brasil!

    E é tão terna a “solicitude prolongada” que a mais empedernida feminista não tem como “lê-la” senão como uma doce declaração de amor…

    Que engraçado: os seus textos têm sempre um “travo” a Brasil, não por causa da adopção da regra do Acordo Ortográfico, nem tão-pouco por alguns “brasileirismos” mais óbvios (em que texto seu é que eu li “comprar os ingressos para um concerto”?), mas talvez por causa do ritmo ondulante de alguns gerúndios (algo que partilha – já lhe disseram? – com a Lídia Jorge que os cultiva na sua expressão oral e os usa para temperar a dureza dos leitmotiv da sua ficção)…

    Também sou uma “lulista encartada”, melhor, uma “lulista beijada”, -pelo próprio – com a cumplicidade de um Chefe de Protocolo benevolente e uma forte dose de alegria juvenil fora-de-tempo….
    Para mim, o discurso de 01 de Janeiro de 2003 é que foi o início do novo Milénio!

    Contudo, também me preocupam algumas ambivalências do Lulismo e a persistência, na sociedade brasileira, de tantas “estruturas”, pessoas e “classes sociais” que não querem mudar, fazendo, por sistema, contravapor às políticas voluntaristas necessárias à inversão do ciclo de miséria em que ainda vivem milhões…

    Ainda assim, viva o Brasil!
    “Quando for grande”, também quero ser dramaturga e, agora, já sei para onde emigrar…

  • JoZé

    Para quem se interessa pelo fenómeno Brasil:
    http://exiladonomundo.blogspot.com/2010_03_01_archive.html

  • Marta Bellini

    É de fato, em ano eleitoral a gente de cá, se diverte, chora, faz piadas… e sobrevive.

  • Cfe

    Sempre que afirmam ser o governo Lula “o melhor” ou “um dos melhores” eu pergunto e peço que enumerem seus feitos para entender o porque de tal consideração.
    É que os propalados feitos advem de dois fatores: I) o equilíbrio financeiro das contas públicas e moeda II)a ancoragem do setor exportador nas matérias primas por via do aumento do consumo chinês.

    Ora, levando em conta que o primeiro foi fundamentado no governo FHC, com a oposição severa do PT e o segundo não é de responsabilidade de nenhum brasileiro continuo a espero das grandes realizações deste governo que mais não é do que um governo de gestão, com um líder com ótima capacidade de comunicação.

    Cumprimentos,

    PS1: a criação da obrigação de levar os filhos a escola em troca duma bolsa foi de autoria do governo FHC no “bolsa-escola” que neste governo foi fundida com outros 3 programas federais e deu origem ao Bolsa-família.
    PS2: a diminuição efetiva dos índices de evasão escolar deu-se ainda durante o governo FH, na gestão do Ministro da Ed. Paulo Renato;
    PS3: durante o governo Lula o peso de produtos manufaturados e de tecnologia diminuiu no conjunto das exportações brasileiras;
    PS4: a votação expressiva da candidata do governo Lula nas zonas pobres de interior deve-se muito mais ao aliado de peso, o PMDB, que controla essas zonas, do que ao reconhecimento de boas políticas de administração.

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