Pisou na bola

Explicar a política brasileira é mais complicado do que descrever-lhe a geografia. O número de partidos é incontável; a definição ideológica é umas vezes vagas e outras volátil. O Brasil é composto por 27 “unidades federais”, 26 das quais são estados; a 27ª é o Distrito Federal, um retângulo que foi criado no estado de Goiás, não muito longe da fronteira com Minas Gerais: Brasília. Agora rápido: quem ganhou as eleições em Brasília, Dilma ou Serra? Nenhum deles. Ganhou Marina Silva, candidata do Partido Verde. Foi, aliás, a única unidade federal em que ela ganhou (os estados foram ganhos por José Serra ou, sobretudo, por Dilma Roussef). Ora, Brasília destaca-se do resto do país por ser recente e “artificial”; mas também o resume, por ter recebido gente de todas as suas regiões. Juntando essas duas características, Brasília é um laboratório do Brasil. A vitória de Marina Silva em Brasília é a primeira expressão de desgaste com aquilo que — numa crónica do mês passado — eu descrevia como sendo a tendência inquietante do PT para a arrogância intelectual. Marina Silva era até há pouco tempo militante do mesmo partido de Lula, e representa para muitos dos seus correligionários um passado mais plural e menos burocrático do PT. As pessoas que conheço que votaram na candidata do PV, ou que pensaram fazê-lo, são apoiantes de Lula — ou até funcionários no seu governo — que desejavam forçar uma segunda volta nas eleições. E conseguiram-no. Dilma Rousseff ficou a cerca de três por cento da vitória na primeira volta. Marina Silva, com quase vinte por cento a nível nacional, ficou com a chave das eleições na mão. Explicar a política brasileira é mais complicado do que descrever-lhe a geografia. O número de partidos é incontável; a definição ideológica é umas vezes vagas e outras volátil. Os partidos essenciais são quatro.

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A tragédia desejada

“É preciso insistir que este orçamento não é só errado; é trágico.” É estranho dizê-lo, mas se o orçamento (previsto) fosse apenas injusto, nós já nem daríamos por isso. O nosso país é injusto há muito tempo; nos últimos anos só pontualmente e parcialmente contrariou essa tendência. Mas é preciso dizer que este orçamento não é só injusto; é errado. É perturbante pensá-lo, mas se este orçamento fosse apenas errado talvez nos limitássemos a encolher os ombros. Este país tem vivido com mais políticas erradas do que certas. E por vezes o errado é a única coisa que existe. Mas é preciso insistir que este orçamento não é só errado; é trágico. E por aí adiante. Essa tragédia vai ser feita de muitas micro-tragédias: quem tem um mínimo de noção de como vive em Portugal a maioria das pessoas só pode ficar arrepiado com o que aí vem. Isto não é só injusto, errado e trágico. Isto vai ficar muito pior. E mesmo isso não é o pior.

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Outonal

Passos Coelho não quis fazer cair o governo num momento que era de responsabilização mínima e ganho máximo para ele, e agora arriscaria fazê-lo num momento que é de responsabilização máxima e resultados mínimos ou até negativos? Não faz sentido. E, como não faz sentido, eu diria que não vai acontecer. Durante o Verão, Pedro Passos Coelho começou a parecer-se com o tipo que ganhou o euromilhões mas não teve tempo para levantar o prémio. Semanas ou meses antes, com um empurrãozinho do caso PT/TVI, o poder ter-lhe-ia caído no colo. As sondagens eram boas, Pedro Passos Coelho teria chegado a primeiro-ministro se as eleições tivessem sido antecipadas naquela altura. Mas ele preferiu esperar que o governo “caísse de maduro”, no que aliás tinha o acordo da maioria dos comentadores da sua área política, ou preferiu “cozer o governo em lume brando”, como dizem os sabichões destas coisas, ou ainda, noutra frase também muito usada nestas ocasiões, “decidiu que não era o seu momento”. Passos recuou quando era possível fazer cair o governo por causa de um caso político de interferência nos media, de grande ou plausível gravidade para a maioria do eleitorado, desligado da crise do euro, e que acima de tudo parecia ser responsabilidade exclusiva do primeiro-ministro. Pessoalmente, Passos Coelho tinha tudo a ganhar e pouco a perder, mas não teve aquele instinto matador que um político talentoso supostamente tem de ter. Só não precisaria de ter ficado em pânico depois. Passado alguns meses,

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Drama e paradoxo

Na noite agora fria de Quito, caminhando devagarinho por causa do ar rarefeito, o paradoxo é não haver drama. Quito, Equador. — “Horribles volcanes”, concluiu Simón Bolívar quando aqui esteve pela primeira vez, e acrescentou: “auguro que este país será inundado de fuego”. Esta capital de um país em estado de emergência após um quase golpe de estado encontra-se a 2800 metros de altitude no meio da “avenida dos vulcões”. O Rucu Pichincha e o Guagua Pichincha — ou “Pichincha velho” e “Pichincha bebé”, o qual entrou em erupção há poucos anos — erguem-se em pleno município. O impressionante Cotopaxi, nitidíssimo, de neves perpétuas, nem parece que está a setenta quilómetros de distância. Os habitantes de Quito são inexcedivelmente amáveis; exprimem-se num castelhano muito claro e distinto, articulando todas as consoantes — isto é, excepto os que falam quechua ou outra das dez línguas locais — ampliado com divertidos equatorianismos. O país — que é amazónico, andino e oceânico — está entalado entre o Peru — “ladrones”, que pela guerra conquistaram uma parte da Amazónia ao Equador — e a Colômbia — “colomiches”, que de Bogotá chegaram a governar a Real Audiencia de Quito, antepassado do estado. Mais longe está a Venezuela — “venecos” que servem de contrapeso aos “colomiches” e agora Hugo Chávez de esteio ao presidente Rafael Correa. Mais longe ainda, o Brasil, neutral o bastante nas brigas entre hispanos para que o Equador tenha lá assinado no Rio — em 1942 — e em Brasília — em 1999 — os seus tratados de paz com o Peru. No século XIX o Equador era provavelmente o mais conservador e católico destes países. No século XX sofreu o choque dos seus ciclos económicos — cacau, banana, petróleo — cada qual com as suas oligarquias, golpes e contragolpes. Mais de um terço da população é pobre. “Ni chicha ni limonada?”.

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Bolsas RT

Caros leitores, Informamos que o período de candidatura para as Bolsas RT encerrou no dia 01 de Outubro. Gostaríamos de agradecer a todos pelo apoio e desejar desde já boa sorte aos candidatos. Os resultados serão divulgados na primeira quinzena de Novembro. Com nossos melhores cumprimentos, Equipa  RT.

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100 anos e um dia

Sem querer ser preciosista, esse é exatamente o sentido da República: sermos governados por gente imperfeita. Parece que a Iª República cometeu o grande pecado de ser uma balbúrdia, — mas por oposição a quê? Pelos vistos, deve haver quem ache que o resto do mundo era, naquele primeiro quartel do século XX, uma espécie de pacífico jardim. Não era; desde ocupantes de cargos eleitos a cabeças coroadas, do primeiro-ministro de Espanha ao arquiduque da Áustria, houve homicídios para todos os gostos naquela época. Não excederam, contudo, a morte massificada da gente comum; entre os anos de 1914-1918 — não tinha a nossa República quatro anos — houve simplesmente uma Guerra Mundial, neste continente e nas suas colónias. Quando essa Grande Guerra e a sua estúpida e inútil mortandade acabou, tinham acabado também vastos impérios: o dos Czares, varrido por duas revoluções e desmembrado; o Austro-Húngaro, despedaçado; e pouco tempo depois o Império Otomano. No culminar desse processo, fez-se o ensaio geral aos genocídios que seriam levados às maiores consequências nos meados do século XX europeu. A República Portuguesa lá aguentou, mas entre a Iª e a IIª Guerra Mundial nasceram o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, e regimes seus aparentados — como a ditadura nacional em Portugal — um pouco por toda a Europa. Desfez-se o sonho da Sociedade das Nações. Como eloquentemente diz a historiadora Zara Steiner, esta foi a época em que — por quase todo o mundo e sobretudo na Europa — “as luzes falharam”. Perante isto, — ou melhor, esquecendo isto — há gente que faz da leitura da Iª República uma única lenga-lenga sobre como os líderes políticos portugueses da época eram defeituosos. Pois eram.

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Olá, depressão

Cada vez mais acho que a resposta correta à pergunta “o que é uma depressão?” é: esperem para ver. O que é uma depressão? Várias respostas. Pode considerar-se que se trata de uma forma prolongada e particularmente intratável de recessão (que por sua vez costuma definir-se como “dois — ou mais —  trimestres de crescimento negativo”). Pode chamar-se depressão a um período prolongado de crescimento muito abaixo (talvez dez por cento ou mais?) das linhas de tendência. Uma descrição metafórica que me agrada (não chega bem a ser uma definição) diria que uma economia deprimida é como uma pessoa deprimida: não usa todas as forças que tem disponíveis (o desemprego alto e prolongado é uma das características principais da depressão) de forma a agravar a sua situação inicial. Mas cada vez mais acho que a resposta correta à pergunta “o que é uma depressão?” é: esperem para ver. Não tinha de ser assim. Aliás, nada disto tinha de ser assim.

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O diabo está, nos detalhes

Que preferiríamos nós? Que o português fosse falado impecavelmente por 50 mil estrangeiros ou apenas compreensivelmente por 50 milhões? Não se pode deixar escapar isto. Há muito tempo que não tinha oportunidade de defender o primeiro-ministro. Agora tenho. Infelizmente, não é por nada que ele tenha feito. Também não é por nada que ele tenha dito. É antes pela maneira como o disse. E disse-o mal. José Sócrates foi, já se sabe, dar uma palestra sobre energias renováveis à Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Exprimiu-se lá num inglês alquebrado, que ele próprio descreveu no começo da sua fala, como “mau inglês”. O vídeo da palestra, que está disponível na internet e foi difundido pelas televisões, expôs Sócrates à impiedade dos seus críticos. Pacheco Pereira opinou neste jornal sobre o assunto; no seu blogue iniciou um post da seguinte maneira: “A mediocridade de Sócrates quando tem que defrontar o exterior sem guião, é visível com todo o seu esplendor na conferência universitária em Columbia”. O blogue 31 da sarrafada, da direita por uma vez voluntariamente humorística, fez uma compilação em vídeo das “calinadas” de Sócrates, legendando-as com cuidados extremosos de professora do Instituto Britânico. O clip revoou imediatamente pela internet e, na opinião de muita gente, expôs Sócrates ao ridículo. Não percebo porquê.

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Estado dentro do estado

Pode haver, isso sim, sociedades com graus de segurança razoáveis — desde que alicerçadas precisamente no respeito dos direitos fundamentais. Quando uma ideia nasce torta, dificilmente se endireita. Mas enquanto ninguém dá por isso, podemos construir um edifício em cima dela. A ideia de que vos quero falar parece sensata; já a ouvi pronunciada dezenas ou centenas de vezes por ministros, comissários europeus, altos-funcionários da administração dos EUA e académicos vários: “temos de achar um meio termo entre os direitos fundamentais e a segurança dos cidadãos”. Eles parecem sempre todos muito responsáveis quando dizem isto; mas isso não os livra de estar errados. A imagem por detrás desta frase é a de que há um sistema de vasos comunicantes entre A (os direitos, liberdades e garantias) e B (a segurança). Se tirarmos um bocadinho de um lado, — assim vai implícito —, ganharemos um bocadinho do outro. Como todos queremos segurança em concreto e em imediato, aceitamos conceder liberdade que naquele momento é apenas abstrata e adiada. Em primeiro lugar, isto não é verdade.

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Princípios/valores

Entende-se que “princípios” é mais libertário e “valores” mais autoritário; esta palavra mais conservadora e aquela mais progressista. Vá lá, abrindo o jogo, sou mais parcial pela palavra “princípios” do que pela palavra “valores”. Na linguagem de todos os dias, escolhemos as palavras apenas pela casca. Queremos só chegar à palavra seguinte, e que elas juntas façam por nós qualquer coisa: pedir o café, aceitar um favor, manifestar uma emoção. Aquela palavra ou outra faria o mesmo serviço; nada mais lhes pedimos. Se desejamos que nos entreguem um documento ou encham o tanque de gasolina, tanto se nos dá que seja a Ana ou o Sérgio a fazê-lo. Mas sabemos que, atrás daquele balcão, a Ana ou o Sérgio têm uma vida interior para lá da tarefa que desempenham, e porventura tão ou mais rica do que a nossa. Da mesma forma, as palavras existem para lá da crosta. Têm densidade, peso, temperamento. Fizeram outras coisas na vida antes de chegarem àquela frase. Às vezes mudaram de ideias: queriam dizer uma coisa antes e outra agora. E a maior parte das ideias são metafóricas; ao escavar um pouco (lá está) e ir mais fundo nelas (veem?) tentamos alcançar-lhes o cerne (outra metáfora, embora esquecida: significa resina, seiva ou, em algumas línguas, caroço). Um exemplo. Dizemos “princípios” e “valores” como se as duas palavras servissem para a mesma coisa. Fulana é uma mulher de princípios. Sicrano é um homem de valores. Por instinto, achamo-las equivalentes e até substituíveis.

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