Entende-se que “princípios” é mais libertário e “valores” mais autoritário; esta palavra mais conservadora e aquela mais progressista. Vá lá, abrindo o jogo, sou mais parcial pela palavra “princípios” do que pela palavra “valores”.

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Na linguagem de todos os dias, escolhemos as palavras apenas pela casca. Queremos só chegar à palavra seguinte, e que elas juntas façam por nós qualquer coisa: pedir o café, aceitar um favor, manifestar uma emoção. Aquela palavra ou outra faria o mesmo serviço; nada mais lhes pedimos.

Se desejamos que nos entreguem um documento ou encham o tanque de gasolina, tanto se nos dá que seja a Ana ou o Sérgio a fazê-lo. Mas sabemos que, atrás daquele balcão, a Ana ou o Sérgio têm uma vida interior para lá da tarefa que desempenham, e porventura tão ou mais rica do que a nossa.

Da mesma forma, as palavras existem para lá da crosta. Têm densidade, peso, temperamento. Fizeram outras coisas na vida antes de chegarem àquela frase. Às vezes mudaram de ideias: queriam dizer uma coisa antes e outra agora. E a maior parte das ideias são metafóricas; ao escavar um pouco (lá está) e ir mais fundo nelas (veem?) tentamos alcançar-lhes o cerne (outra metáfora, embora esquecida: significa resina, seiva ou, em algumas línguas, caroço).

Um exemplo. Dizemos “princípios” e “valores” como se as duas palavras servissem para a mesma coisa. Fulana é uma mulher de princípios. Sicrano é um homem de valores. Por instinto, achamo-las equivalentes e até substituíveis.

Mas “princípios” e “valores” transportam consigo metáforas muito diferentes (não querendo ser picuínhas, “metáfora” quer já dizer “transporte”: é o que os gregos escrevem nos camiões de mudanças).

“Valores” dá a ideia de algo que se tem guardado contra a usura do tempo. As pessoas dizem que querem “transmitir os valores aos filhos”, um pouco como se fosse a herança. Deve aceitar-se que os valores sejam eternos, como as jóias, e que como elas fiquem guardadas no cofre para que não lhes aconteça alguma coisa. Os valores não podem ser adulterados, ou melhor, recusamos que o sejam; há na ideia de valor uma resistência à mudança, um temor do novo, um anseio de pureza.

“Princípios” é, em si, uma ideia mais aberta. É um começo de história. Levamos os nossos princípios, mas não sabemos como vamos acabar. “Princípios” é uma metáfora narrativa, dinâmica; “valores” é uma metáfora expositiva, estática. Uma pessoa submete-se à exigência dos valores, sacrifica-se a eles; uma pessoa de princípios não aceita que os fins justifiquem os meios. E por aí adiante.

Do que fica dito, entende-se que “princípios” é mais libertário e “valores” mais autoritário; esta palavra mais conservadora e aquela mais progressista. Vá lá, abrindo o jogo, sou mais parcial pela palavra “princípios” do que pela palavra “valores”. As pessoas dos “valores” desconfiam disto: acham que as outras são demasiado adaptáveis às circunstâncias e incapazes de compromisso. As pessoas dos “princípios” acham que as pessoas dos “valores” são mais dogmáticas e no fundo inseguras: falta-lhes a confiança de estar à altura das circunstâncias.

Há três provas, porém, de que somos todos mais parecidos do que pensamos. A primeira: todos recusaríamos alguém só com princípios e nenhuns valores, ou vice-versa. A segunda: há coisas essenciais que não cabem nestas categorias: o amor é um princípio ou um valor? A terceira: na maior parte das vezes, usamos as palavras pela casca. É o que nos vale. Em princípio.

6 thoughts to “Princípios/valores

  • luis Moreira

    Gosta de teatro?As outras sessões têm o preço de 12,50 € . Quem reservar os bilhetes e disser que é (colaborador ou leitor) do Estrolabio paga apenas 10 €.

  • Augusto Küttner

    Muito interessante, esta cronica, principios/valores!!
    Tudo tão não aplicado!!!!!

  • jose luis

    no

  • bul bosa

    pois as palavras não existem para lá da crosta

    são virtuais fazem-se mundos das palavras faz-se das palavras um mundo

    as palavras apertam-se, umas contra outras a favor

    esmagam-se comprimem-se

    caem em catadupa pelos vossos blogues

    logo virtualmente têm densidade e peso,

    umas chegam primeiro que outras

    umas afundam-se outras flutuam

    há quem veja nelas raiva, temperos e temperamentos

    há quem nada veja nelas são zonas mais escuras em áreas mais claras

    ou vice-versa

    fizeram outras coisas na vida (virtual das palavras) antes de chegarem àquela frase.
    pois devem ter vida uma vez que todas as palavras morrem

    Às vezes, parece-nos que mudam de ideias: pois não mudam as ideias é que existem nas mentes de quem as lê
    queriam dizer a Quixote fábulas de tempos gloriosos, queriam dizer a Sancho promessas de loucura e poder

    E a maior parte das Palavras são metamórficas mudam de forma nas nossas mentes e mudam as mentes das nossas formas

    ao escavar um pouco e ir mais fundo nelas (veem?) tentamos alcançar-lhes o cerne o âmago o Cerne pode ser diminuitivo de cernunnos(outra metáfora…a palavra ser …
    ser um deus o seu nome numa palavra

    Logo “princípios” e “valores são simples conjuntos de símbolos cada povo cada era lhes dará um significado

  • Ana Luísa

    Pois é… o Amor….

    É por haver Amor que não há justiça (um valor), nem igualdade (um princípio) na parábola do filho pródigo da Bíblia… Não é justo que o irmão trabalhador, industrioso, que multiplicou a riqueza paterna seja tratado do mesmo modo que o seu irmão faltoso, falido e nada preocupado em honrar o patronímico… É injusto e discriminatório… Mas é-o porque há Amor, Amor de pai, e o Amor está para além dos valores… e dos princípios…

    É por isso também que não há lealdade (um valor) nem boa-fé (um princípio) na maior insanidade feminina da história do cinema: quando Livia Serpieri – a condessa do maravilhoso “Senso” de Visconti – entrega o dinheiro arriscadamente recolhido pelos “partisans” da luta pela independência da Itália ao seu fogoso mas mal-intencionado amante austríaco, ela é não é leal… E, além disso, viola a confiança dos que fizeram dela fiel depositária de uma parte do seu sonho de autodeterminação política… É desonesta e leviana… Mas é-o porque há Amor… Será?…

    Ou haverá só a ilusão dele, a sua “casca”, exaltada pelo abandono sexual prévio ao jovem tenente Mahler…?

    Assim, a casca, a casca, a casca é fundamental… revela o estado do fruto.

    Primeiro Post Scriptum:

    1) É por isso que quando VPV emprega, na habitual página do Público, o termo “populaça” para se referir a todos “nós”, “pessoas” – banais, é certo – que acreditam na promessa de igualdade ínsita na construção do Estado social, está a revelar o “fruto” que se esconde por detrás da escolha da palavra “populaça”: um fruto podre… ou vá… se calhar simplesmente cariado… no pressuposto da sua auto-exclusão – será por sobranceira superioridade? – da tal “populaça”;

    2) O mesmo se diga “mutatis mutandis” de algumas tiradas de Pedro Mexia que melhor quadrariam à Caras do que ao Público. Quando PM escreve que “Grace Kelly era uma princesa por vocação, não uma dessas plebeias que dão mau nome às monarquias…” revela toda uma certa “weltanschauung” (visão-do-mundo) nestas “plebeias que dão mau nome”, como se as casas reais não fizessem, aliás, mais do que o suficiente por isso… (Ou mesmo, quando pretendendo escrever um ensaio pós-moderno acerca das expulsões da comunidade cigana pelo execrável Sarkozy, PM refere que “gosta de o ver de mão dada com aquela mulher alta e misteriosa”… caberá perguntar que parte da “allure” de “Carla” ainda é misteriosa para alguém que não esteja sujeito a uma censura da Internet de tipo ahmadinejadiano… ?).

    Quem diria que o artigo 13º da nossa Lei Fundamental elenca como primeiríssimo fundamento proibido de discriminação entre os seres humanos não a raça, não a religião, não a ideologia, não o género, nem a preferência sexual… mas antes, a “ascendência”….?
    Terá esta escolha da nossa Assembleia Constituinte – a escolha de fazer encimar pela “origem social” o longo e triste rol de razões para “dividir a humanidade” – sido feita pela “casca”?

    Segundo Post-Scriputum:

    Dito tudo isto, parece-me que também prefiro a porosidade dos princípios à reificação dos valores…

  • Pedro Maria

    Que belo blog!
    Textos muito bem escritos estes e profundos, o que não é vulgar na internet.
    Gostei imenso do seu texto, Rui. Mas este desta “Ana Luísa” também é muito bom. Parece que temos uma discípula do Bénard da Costa. Também fiquei chocado com a “populaça” desse Pulido Valente.
    Parabéns e continuem.

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