A salto

Primeiro, veio a crise financeira, e a divisão da Europa em países credores e países endividados. Depois, a crise económica e social, a emigração, e a divisão dos imigrantes entre os desejados (os “cérebros”) e os indesejados. E agora chegou a crise da representação democrática. Há que reconhecê-lo: em muitos dos nossos países, a política está doente. Mamadou Ba, um refugiado guineense na Grécia, e como tal perseguido pelos neonazis do partido Aurora Dourada, pediu ajuda à Bélgica, e a Bélgica apreciou positivamente o seu caso, concedendo-lhe o estatuto de asilado.Que importância tem isto? Muita.

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Brincar com a democracia

É ridícula a ideia de que um dos candidatos que foram a eleições tenha menos legitimidade do que um desconhecido escolhido às escondidas dos cidadãos — qualquer que seja o argumento utilizado. Está virada do avesso a política portuguesa. Para uma parte dos partidos que reclamam eleições antecipadas (a exceção é o PCP) nada interessa menos do que eleições antecipadas agora. Sendo assim, vão continuando a pedi-las, mas cruzando os dedos para que o desejo não se realize. Quanto ao governo, que sempre disse querer chegar ao fim do mandato, deu agora uma grande pressão a Pedro Passos Coelho e Paulo Portas para declarar uma crise política e ir a eleições numa situação que lhes permita continuar no governo. Ainda mais do que o costume, os principais atores políticos passam uma parte do tempo dizendo o contrário do que desejam.A novidade é os riscos políticos que eles estão dispostos a correr. Pedro Passos Coelho faz um ataque frontal ao Tribunal Constitucional e estimula a sua maioria parlamentar a fazer o mesmo, atropelando o princípio da separação de poderes. Como num mau filme, o programa da troika, cujo fim foi celebrado com pompa e champanhe no dia 17 de maio, ainda sobrevive: a 12ª avaliação ainda não está fechada, a última tranche não pode chegar, e o governo pretende usar esse factos para amplificar a sua crise com o Tribunal Constitucional. E por detrás de tudo isto há, é claro, a situação de indefinição no maior partido da oposição, que serve de tentação aos partidos do governo.Bem, se procuravam uma boa maneira de desacreditar o sistema político-partidário, encontraram-na. Se querem apresentar-se a eleições deixando patente aos portugueses que os seus governantes não passam de uns tipos manhosos, o caminho é este. Se tudo vale — uma guerra entre órgãos de soberania, o atropelo ao estado de direito, o descrédito dos partidos — a resposta não pode certamente ser bonita. Entretanto, em Londres e Berlim

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A história não cessa

Há duas maneiras de lidar com a pressão cidadã por mais democracia. Uma é fechar os olhos ou menosprezá-la, considerando-a uma mera expressão de experimentalismo ou uma intromissão irritante na esfera dos auto-consagrados políticos experientes. Outra é entendê-la e fazer de forma a que ela se materialize preservando todos os outros valores do estado de direito e do sistema de direitos fundamentais. Graças a uma espécie de decisão coletiva tomada em Portugal no dia 1 de dezembro de 1640 — que, fiel ao seu estilo, o atual governo aboliu como feriado — nós portugueses não temos de nos preocupar com a encruzilhada em que a abdicação do rei Juan Carlos deixou os espanhóis: sucessão ou referendo? monarquia ou república?Não é isso que impede, porém, de compartilhar o entusiasmo com que os nossos vizinhos vivem estes dias. Há uns vinte anos, isto seria impensável: qualquer espanhol nos diria que a monarquia fazia parte do compromisso histórico que permitira o estabelecimento da democracia em Espanha e que era, por isso, intocável.O que sucedeu?

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E agora?

Nada disto é fácil, mas quanto mais tarde começarmos menos hipótese teremos de dar resposta a um país que está sequioso de alternativa. Um compromisso de progresso pelo país e pela Europa será um passo decisivo para constituir a frente progressista — social e política — que o levará a cabo. As eleições europeias deixaram claras três coisas. A primeira, que os cidadãos desejaram punir a governação atual e a sua estratégia acrítica perante as políticas europeias. A segunda, que os mesmos cidadãos não conseguiram endossar ainda uma alternativa clara que permita substituir a atual governação por uma alternativa plausível de progresso, justiça social e democracia europeia. A terceira, que há um notório cansaço com uma política feita nas cúpulas partidárias, distante dos cidadãos.

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Escolhas decisivas

À esquerda, em particular, cabe a missão crucial de se juntar para apresentar um caminho alternativo real para o país. Nos próximos dias começa a escrever-se uma página decisiva da história da União Europeia: ou o próximo presidente da Comissão será um dos candidatos apresentados aos europeus nas eleições para o Parlamento Europeu, ou será como até agora o resultado de negociações entre os governos, nos bastidores do Conselho. Como é tomada esta decisão — e por quem — é crucial para saber-se se a União Europeia terá ou não hipóteses de vir a ser uma democracia. O candidato ou candidata a presidente da Comissão Europeia é, segundo os tratados, indigitado pelo Conselho após interpretação dos resultados eleitorais. Mas não poderá entrar em funções sem o voto positivo dos parlamentares europeus. É portanto preciso que o novo parlamento europeu tenha a força necessária para ganhar este braço-de-ferro com o Conselho, a saber: que nunca aceitará um presidente da Comissão que não tenha sido candidato a esse cargo nestas eleições.

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A ditadura do mesmo

Portugal, hoje, é a ditadura do mesmo: os mesmos debates, os mesmos círculos, as mesmas opiniões e os mesmos partidos, fazendo as coisas sempre da mesma maneira, e coreografando as mesmas controvérsias com as mesmas palavras e o mesmo vazio de significado. Escrevo minutos depois de ter visto o primeiro debate entre os candidatos a presidente da Comissão Europeia. Um debate histórico. Falou-se de tudo o que é essencial para o nosso futuro: desemprego, eurobonds, troika, juventude, energia, Ucrânia, imigração, envelhecimento, pensões e salários. Pela primeira vez desde que o mundo é mundo, quatro candidatos ao executivo de uma União de países explicaram como pretendem governar se forem eleitos. E, no entanto, escrevo estas linhas com raiva. Porquê?

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O que está em jogo

O que está em jogo hoje é o mesmo: lutar pela democracia europeia agora, para não ter de lutar pela civilização daqui a pouco. Esta coluna ficará suspensa até à realização das próximas eleições europeias, pelo que a crónica de hoje e a de quarta serão as últimas até lá. Pensei então que deveria fazer um resumo do que está em jogo na Europa, hoje, e em Portugal, depois de amanhã, enquanto me despeço temporariamente. Quando digo “o que está em jogo” não é nas eleições; é no nosso tempo histórico. Independentemente da evolução económica e financeira, estamos a aproximar-nos da rutura política. Os últimos anos foram muito angustiantes, e continuam a sê-lo, porque raras vezes o debate público foi tão inadequado perante os desafios de um tempo histórico. Os termos dos argumentos estão mal postos: a questão não é “mais Europa” contra “menos Europa”, não é federalismo contra soberanismo, não é sequer sair do euro contra ficar nele.

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Do gelo às formigas

É difícil não ceder à tentação de pensar que, enquanto escrevia Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez não estivesse possuído de toda a sabedoria do mundo. Gabriel García Márquez escreveu vários livros excelentes — dos que li, O amor nos tempos de cólera, a novela Crónica de uma morte anunciada — e um livro incomparável, Cem anos de solidão. Sem esse livro, ele seria um grande escritor. Com esse livro, foi o autor de um dos melhores romances do século XX, talvez o melhor de todo o pós-guerra. A tal ponto que a pergunta é se ainda é possível escrever um romance daqueles.Para quem leu esse livro do gelo até às formigas (e quem o fez sabe do que falo) o que nele há de único é uma surpreendente segurança de linguagem desde as primeiras linhas. Como se o romance se encaminhasse para ser aquilo, e não pudesse ser outra coisa: a invenção de um mundo novo, palavra após palavra.

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Impulso jornalístico

Quando um jornalista pede desculpa por fazer jornalismo, está tudo dito. Deu-se ontem, na entrevista de José Gomes Ferreira a Pedro Passos Coelho, um momento de verdade suprema. Durante toda a tarde, em antecipação de uma conversa entre um enamorado pela austeridade e um apaixonado pela austeridade, tinham chovido propostas de perguntas de um a outro: “porque não foi mais longe?”, era a mais fácil de prever. E claro que apareceu.A realidade, porém, não só ultrapassou a imaginação como a atropelou e fugiu. No único momento em que José Gomes Ferreira se lembrou de insistir numa pergunta, Pedro Passos Coelho franziu o sobrolho e levou o jornalista a escusar-se: “desculpe, foi um impulso jornalístico”.Quando um jornalista pede desculpa por fazer jornalismo, está tudo dito. Um dia este governo conseguirá que os juízes peçam desculpa por fazer justiça, os pensionistas por estarem vivos e os desempregados por ainda não terem emigrado.De resto, foram vários os “impulsos jornalísticos” que foram suprimidos durante a entrevista. Da dívida e da sua reestruturação, nada se disse. As europeias foram mencionadas, como de costume, como uma mera paragem do autocarro político. Ideias para o futuro de Portugal na União Europeia, zero; para qualquer futuro que não passe pela austeridade, menos do que zero.

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As 59 palavras que mudaram Portugal

Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui! Salgueiro Maia, em Santarém, há quarenta anos.

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