Uma flecha no coração da Europa

|Do arquivo Público 15.03.2019| “Não pode haver democracia europeia porque não existe identidade europeia”, repetiram incessantemente alguns intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos. A solidariedade entre os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade onde partilhamos uma história, uma cultura e um destino nacionais. Pois bem, desafio quem quer que tenha visto as imagens da Igreja da Notre-Dame ardendo em Paris a responder se o que sentiu não foi uma perda da sua própria identidade. Porque a Notre-Dame, a Île de la Cité em que ela se situa, e todo o perímetro que em tempos foi da Paris medieval, são bem mais do que apenas francesas. Elas fazem parte da história europeia. Melhor dizendo: a história europeia fez-se ali. Incluindo a portuguesa: nas primeiras décadas de 1500 até um homem nascido na minha aldeia por ali andou: Diogo de Gouveia, o moço, sobrinho de outro Diogo de Gouveia a quem chamaram de “grande reacionário”, e de um André de Gouveia a quem chamaram grande humanista. Nessa altura, o Colégio de Santa Bárbara, na Sorbonne, era uma colmeia de laboriosos estudantes vindos de todo o continente — e por várias vezes os reitores e estudantes mais ilustres foram portugueses. Ali nasceram os jesuítas como nascem tantas coisas na Europa: com um encontro entre estudantes fora de casa, numa cidade estrangeira. Antes disso por ali tinha passado Erasmo de Roterdão, no tempo em que não se fazia o programa Erasmus mas se podia visitar o Erasmo propriamente dito, para discutir as novas teorias de Martinho Lutero ou João Calvino, ou as novas terras reais e imaginárias de que falavam Damião de Góis ou Tomás Moro. Toda essa gente passou pela sombra da Notre-Dame, sempre a mesma e sempre diferente ao longo dos séculos. Boa parte das suas gárgulas mais famosas e fotografadas são reconstituições neo-medievais do século XIX. As suas rosáceas são do século XIII. Os seus vitrais não são apenas medievais, mas também do século XVIII e até contemporâneos. A Notre-Dame resume em si grande parte da história deste continente. Por isso o momento do colapso da espiral da catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o momento em que uma flecha atingiu o coração da Europa. Poderíamos ir mais longe. Ainda há pouco tempo sentimos o mesmo quando ardeu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil. Perdeu-se património brasileiro, mas perdeu-se memória e identidade que era também nossa. E era também nossa não só por sermos portugueses; era nossa porque se perderam registos da humanidade que não se voltarão mais a encontrar. As modas intelectuais passam, regressam, e desaparecem. A tempo acharemos o nacionalismo do século XXI tão ridículo como o do século XX. Já nos esquecemos aliás que a teoria da moda há meros quinze anos era a da “Guerra das Civilizações”, que influenciou em grande parte a decisão de dar início à Guerra do Iraque, e segundo a qual seriam os grandes blocos culturais e não as nações a determinar o curso da história no novo milénio. Aquilo de que estas teorias do tribalismo a diversas escalas se esquecem é que existe só uma humanidade e que em cada parte da humanidade residem potencialmente as ideias da humanidade inteira. Quando os talibans destruíram os Budas de Bamyan, no Afeganistão, ou o ISIS tentou demolir Palmira, na Síria, o que aconteceu não foi uma civilização a atacar outra. O que aconteceu foi um ataque à memória de toda a civilização humana. Porque os Budas de Bamyan não deixam de ser tão nossos quanto a Notre-Dame o é — e aliás porque a linha que os une, passando pela Rota da Seda, por sábios muçulmanos da Ásia Central como Al Farabi, por judeus de Toledo que ensinaram árabe aos tradutores das traduções de Aristóteles, e pelo Tomás de Aquino que foi ensinado no Quartier Latin, é menos difícil de desenhar do que aquilo que se pensa. Como disse um sábio que também andou pela sombra da Notre-Dame, François Fénelon, ali pela viragem do século XVII para o XVIII: qualquer ser humano é infinitamente mais beneficiado pelos contributos que lhe chegaram da humanidade inteira do que por aqueles que lhe foram legados pela sua pátria. E esse é verdade para todas as pátrias, em todos os tempos, em todo o mundo. Por isso todos nós devemos à Notre-Dame boa parte da nossa identidade europeia e de cidadãos do mundo. Quando a Notre-Dame se reerguer, como decerto acontecerá, ela reerguer-se-á para a toda a humanidade. (Publicado no jornal Público em 15 de abril de 2019)

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E um pouco menos de pessimismo?

|Do arquivo Público 15.04.2019| Há duas maneiras de noticiar as eleições finlandesas de ontem. A primeira é dizer quem ganhou: o Partido Social-Democrata, de centro-esquerda, ficou em primeiro lugar e deve poder formar governo. A segunda é salientar que o partido Finlandeses, de extrema-direita nacional-populista e herdeiro do antigo partido Verdadeiros Finlandeses, ficou em segundo lugar a poucas décimas apenas dos sociais-democratas. Conforme o jornal ou o jornalista, haverá tendência para optar pela notícia mais seca e sucinta, que é a primeira, ou para intensificar o pânico em que se vive desde 2016, sempre à espera da próxima vitória da extrema-direita algures no mundo. Curiosamente, nenhuma das formas atrás descritas nos informa muito. Quanto à primeira, ela tem apesar de tudo o mérito de nos dizer que um voto no Conselho Europeu vai mudar de cor política, dos liberais para os socialistas. Quanto à segunda, ela tem o demérito de nos ocultar as tendências mais estruturais do voto, não só na Finlândia, mas em muitas sociedades europeias.Porquê? O que falta então? Falta saber os números. O que é impressionante é que, ficasse quem ficasse em primeiro lugar, nenhum partido na Finlândia poderia sonhar com ter o apoio de mais de um quinto do eleitorado. Na verdade, há cinco-partidos-cinco que têm resultados entre os dez e os vinte por cento. Juntos, eles formam uma paleta quase completa do espectro político (e cultural) de uma sociedade complexa: entre esses cincos partidos estão os sociais-democratas (17,8% – números provisórios), a extrema-direita (17,6%), a direita conservadora (16,7%), os liberais (14,1%) e os Verdes (11,3%), a que se poderia ainda acrescentar a esquerda radical, que não anda longe dos dois dígitos, com 8,3%.Isto significa que a tradicional dicotomia esquerda-direita se mantém, ao contrário do que muitos previam aqui há uns anos. Mas significa também que ela se desdobra e combina com outros eixos sócio-culturais: para além do também tradicional libertário-autoritário temos o nacionalista-cosmopolita. Quando todos esses eixos se intersectam, a política fica dividida não em duas metades nem quatro quadrantes, mas seis ou mais áreas políticas. Pode ser-se de esquerda libertária e cosmopolita, ou de direita autoritária e nacionalista, mas há várias outras permutações também. O que se passa na Finlândia não é, portanto, fora do normal. O mesmo ocorre nos Países Baixos, ou na Alemanha, ou até na Espanha que se começa a habituar ao penta-partidismo. Em muitos destes países a tão propalada subida da extrema-direita tem de ser vista neste contexto: são sim partidos que sobem, ao mesmo tempo que os partidos clássicos do centro-esquerda e do centro-direita descem, mas no caso destes países a extrema-direita não ultrapassa um quinto do eleitorado e só chega ao poder quando a direita tradicional lhe dá a mão.Desta realidade procede uma segunda conclusão: a de que toda a política atual é política de alianças. Ao contrário do que sucedia há umas décadas, é hoje impossível governar sozinho como social-democrata ou democrata-cristão, e é indesejável governar a dois, em “grande coligação” entre o centro-esquerda e o centro-direita, o que só esvazia a alternativa da política e dá azo ao crescimento dos extremismos. O que se pode passar na Finlândia — e é positivo — é os sociais-democratas liderarem uma coligação com os Verdes e a esquerda radical, precisando talvez ainda do apoio de um partido liberal. Se assim for, a diferença em relação à “geringonça” portuguesa residirá no maior grau de formalização de uma tal solução governativa, com a ocupação de cargos ministeriais por parte dos partidos aliados.E aí chegamos a uma terceira conclusão que veremos em poucos jornais no mundo. É que na verdade quem mais cresce na Finlândia não são os vitoriosos sociais-democratas, nem a extrema-direita, mas sim o partido de quem não se fala: os Verdes. E este não é caso único. São os Verdes que mais crescem na Alemanha também, a ponto de não ser completamente impossível que o sucessor da Chanceler Merkel venha a ser um (ou uma) chanceler ecologista. E porquê? Porque os Verdes europeus não hesitaram nunca na defesa dos valores cosmopolitas, pró-imigração e europeístas. Quando outros recuaram com medo da extrema-direita ou, pior ainda, com a extrema-direita tentaram encontrar-se a meio do caminho, os Verdes fizeram uma escolha arriscada: não procurar no curto prazo converter o eleitorado da extrema-direita mas sim conquistar um novo eleitorado para o futuro. A resposta está em que mais uma vez os jovens votaram massivamente nos Verdes finlandeses e um número considerável deles quer ver uma mulher política verde a ocupar a Presidência da República do país.Não espero ver este tipo de análises a fazer manchetes nos próximos tempos na imprensa internacional. Mas a verdade é que enquanto anda tudo a correr atrás dos sucessos da extrema-direita em anos passados (Brexit, Trump, Bolsonaro) há um caminho que se abre para a esquerda, os progressistas e os ecologistas que não se esqueceram dos seus valores e não abandonaram o cosmopolitismo e o projeto europeu. (Crónica publicada no jornal Público em 15 de abril de 2019)

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Onde estão as mulheres nos direitos humanos?

(Imagem: Hansa Mehta)  |Do arquivo Público 21.01.2019| Na última crónica descrevi como a Conferência de Paris de 1919, que negociou os tratados de paz após a Iª Guerra Mundial, era praticamente apenas composta por homens. Algumas mulheres foram finalmente admitidas a partir da 12ª reunião do comité para a criação da Sociedade das Nações mas, ainda assim, com participação limitada a debates sobre questões femininas ou das crianças. Passados alguns meses, um Congresso Internacional das Mulheres reuniu em Zurique e teve a clarividência que faltou aos homens da Conferência de Paris, condenando em termos claros as condições punitivas do Tratado de Versalhes. Dois anos mais tarde, numa nova reunião em Viena, as mulheres da Liga Internacional das Mulheres pela Paz e a Liberdade declararam que “os Tratados de Paz contêm neles as sementes de novas guerras” e pronunciaram-se por uma revisão dos tratados que fizesse do desarmamento e da reconciliação a sua prioridade. Infelizmente, não foram ouvidas. A seguir à IIª Guerra Mundial houve ao menos algumas mulheres delegadas à criação das Nações Unidas. E as que lá estiveram fizeram a diferença. A mais célebre é, sem dúvida, Eleanor Roosevelt, que dirigiu os trabalhos da Comissão encarregada de redigir a Declaração Universal de Direitos Humanos, e que tomou a responsabilidade de uma decisão política crucial: preferir um documento mais amplo e ambicioso, ainda que apenas com valor moral, à inevitabilidade de se ficar com um conteúdo muito mais limitado — ou à possibilidade de não o ver aprovado — se se insistisse em tornar o documento legalmente vinculativo. É menos célebre, infelizmente, a delegada da Índia, Hansa Mehta, uma pedagoga e política nascida em 1897 que já fizera parte do comité de redação da constituição indiana. Não sendo uma redatora direta do primeiro esboço da Declaração, foi ela que conseguiu em fase de emendas ver aprovada a redação oficial original do Artigo Iº da Declaração Universal: onde estava “todos os homens são criados iguais” (no esboço da versão inglesa) passou a ler-se como hoje, na tradução oficial portuguesa, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Foi também por ação de Hansa Mehta que a Declaração Universal dos Direitos Humanos se chama assim, e não dos Direitos do Homem (como ficou na versão francesa, por insistência do delegado da França, René Cassin). Estas duas alterações resolviam uma questão histórica de quase dois séculos: quando a Revolução Francesa aprovou a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, o feminismo moderno nasceu com as obras da francesa Olympe de Gouges e da inglesa Mary Wollstonecraft, ambas criticando os revolucionários por omitirem os direitos das mulheres e assim contribuírem para a preservação da desigualdade entre homens e mulheres. Uma terceira mulher essencial para a história dos direitos humanos, e das próprias Nações Unidas, foi a única delegada de língua portuguesa à criação da ONU, a zoóloga brasileira Bertha Lutz. Foi ela que conseguiu, contra muitas dificuldades e incompreensões, que a Carta das Nações Unidas incorporasse a igualdade entre homens e mulheres como um objetivo fundamental da nova organização internacional, dos seus estados-membros e, num sentido lato e moral, da humanidade como um todo. Vem a isto a propósito de uma notícia de quinta-feira passada. Num comunicado, o Conselho de Ministros anunciou nesse ter sido “aprovada a resolução que adota a expressão universalista «Direitos Humanos» por parte do Governo e de todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos seus poderes de direção, superintendência e tutela” em “substituição da expressão «Direitos do Homem»… como um passo no combate à desigualdade entre homens e mulheres”. Imediatamente nos comentários a essa notícia houve quem atribuísse essa alteração a uma inovação do famigerado “politicamente correto”. Para quem conhece a história que aqui esbocei, a reação só pode ser outra: só agora? Para ser franco, há anos que estava convencido que “direitos humanos” era a expressão oficial em português. Não só politicamente correta. Historicamente correta. E, o que é mais importante, filosoficamente correta. Acima de tudo, “direitos humanos” não é uma inovação, porque está no sentido original da declaração. E lembrar esta história permite-nos registar a participação decisiva de mulheres como Eleanor Roosevelt, Hansa Mehta e Bertha Lutz no “momento cosmopolita” (como lhe chama a filósofa Seyla Benhabib) da criação da ONU e da redação da Declaração Universal de Direitos Humanos. Estas histórias são pouco conhecidas. Os estados celebram em geral os seus ídolos e heróis, que são os ídolos e heróis da nação. Sobra pouco espaço para lembrar vidas exemplares ao serviço da humanidade. Ora, a história da redação da Declaração Universal já há muito que deveria ter entrado nos currículos das escolas de todo o mundo. Assim talvez se evitasse menosprezar como “politicamente correto” aquilo que simplesmente se escolhe ignorar. (Crónica publicada no jornal Público em 21 de janeiro de 2019)

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Eles não eram mais estúpidos do que nós

|Do arquivo Público 18.01.2019| O filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger tem uma expressão de que gosto muito: diz ele que na atual situação em que a humanidade se encontra é necessário “termos a imaginação do pós-guerra, antes de haver guerra”. Quer ele com isso relembrar que momentos como o do pós-IIª Guerra Mundial trouxeram consigo um grande furor criativo: nos meros cinco anos que passaram depois do fim da IIª Guerra Mundial nasceram as Nações Unidas como organização política internacional (as Nações Unidas já eram, antes, a aliança militar que venceu a guerra); foi redigida e proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda que apenas como documento moral; nasceram convenções regionais de direitos humanos, essas sim com tribunais próprios e mecanismos de implementação (a Inter-americana, primeiro, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, depois); no nosso continente nasceu o Conselho da Europa e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que viria a ser a União Europeia. Como é evidente, se fôssemos agora tentar reinventar tudo isto, os compromissos a que os nossos políticos atuais chegariam ficariam certamente muito aquém daqueles que foram logrados no final dos anos 1940. A destruição que a guerra trouxera aguçara as mentes; todos sabiam aquilo que estava em jogo; todos aliás, temiam uma nova Guerra Mundial nos dez anos seguintes ou assim (e tiveram-na, mas em modo Guerra Fria). Por isso aquela geração de homens e mulheres já bastante velhos — Eleanor Roosevelt, Churchill, Adenauer, Monnet, PC Chang, Charles Malik —, no fundo os sobreviventes da Iª e da IIª Guerra Mundial, correram como loucos para cumprir com o máximo possível dos sonhos de paz perpétua que desde os filósofos do Renascimento e do Iluminismo tinham sido sonhados. Pelo fracasso pagar-se-ia um preço altíssimo; em consequência, não se podia fracassar.

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Estranha forma de assumir controlo

|Do arquivo Público  15.01.2019| Há um conto de George Orwell, com o título “Abatendo um Elefante”, que descreve o Brexit bem melhor do que qualquer reportagem ou ensaio atual. Nesse conto, que se baseia num episódio da sua vida real enquanto agente da polícia imperial britânica na então Birmânia, Orwell (cujo verdadeiro nome era Eric Arthur Blair) é chamado a abater um elefante que a população em geral afirma estar descontrolado. Quando finalmente chega perto do elefante, ele já está calmo e longe de qualquer aldeia, pelo que matar aquele magnífico animal é cruel e desnecessário. Mesmo assim, o narrador e protagonista do conto dispara sobre o elefante, e acaba por matá-lo. Porquê? “Para evitar fazer figura de tolo”, diz ele no fim do conto. George Orwell explica que foi aí que entendeu a natureza do imperialismo europeu, e em particular do britânico. Por mais fúteis, cruéis ou desnecessários que se revelem os seus atos, o agente do imperialismo tinha de os levar até ao fim “para evitar fazer figura de tolo”. O Brexit mais não tem sido, desde o seu início, do que uma ressaca pós-imperial inglesa (digo inglesa, sim, e não britânica — ver-se-á à frente porquê). Não que não haja razões para criticar a União Europeia, ou mesmo razões para dela querer sair. A questão é que para saber sair da União Europeia é preciso conhecê-la muito bem, e conhecer muito bem para onde se vai, e a elite brexiteira do Reino Unido nunca se esforçou por cumprir com nenhum desses desideratos. Começa o mito do Brexit pela ideia de que “é preciso regressar ao estado-nação”. O problema, ao contrário do que se poderia pensar, não está na parte do estado-nação, mas na parte do “regressar”. Alguma vez o Reino Unido foi um estado-nação? Antes de entrar na União Europeia, o Reino Unido era a cabeça de um império — após o Desastre do Suez, em 1956, os anos até 1973 em que De Gaulle manteve, com o veto da França, o Reino Unido fora da Comunidade Económica Europeia, foram de um lento mas irreversível declínio para a economia britânica, já sem império, e ainda sem Europa. Depois de querer sair da União Europeia, o Reino Unido descobriu com espanto que não era uma nação, mas três ou quatro, e que a Escócia não seguirá o resto do Reino Unido para uma saída desordenada da UE, e que a Irlanda do Norte tem uma fronteira com a República da Irlanda e uma garantia firmada no direito internacional de poder realizar um referendo de reunificação das Irlandas a qualquer momento em que não só Belfast, mas também Dublin, assim decidirem. Continua o mito do Brexit pela ideia de que, desamarrado da Europa, o Reino Unido pode cumprir com um “destino global”. Mas esse destino global tem um problema: depende da soberania dos outros. Ao chegar à Índia com ideias de no futuro com esse país pode negociar um acordo comercial, Theresa May ouviu uma evidência: a Índia só aceitará negociar se o Reino Unido abrir as portas à imigração indiana, ideia que os brexiteiros detestam. Do suposto aliado Trump os britânicos ouviram uma mensagem clara: os EUA estão interessados num acordo de livre-comércio com o Reino Unido, se na prática o Sistema Nacional de Saúde britânico funcionar numa lógica de privatização — ah, e é preciso aceitar as galinhas lavadas com lixívia que a agricultura dos EUA exporta. A realidade pode custar muito, mas no domínio regulatório só há três potências globais: os EUA, a UE e a China. Negociando em bloco, a UE tem uma força considerável. Separadamente, só há dois tipos de países europeus: os pequenos, e os que ainda não perceberam que são pequenos. Como escrevi aqui ainda antes do referendo do Brexit, há duas da UE saídas para o Reino Unido: ou Noruega ou nada. No primeiro caso, o Reino Unido é um país satélite da UE. No segundo caso, será um país satélite dos EUA. Sim, é uma realidade brutal. Mas esta é uma situação que não carece de eufemismos. Termina o mito do Brexit na ideia de que o Brexit consiste, como dizia o slogan do tempo do referendo, em “assumir o controlo”. Se é assim, estranha forma de assumir o controlo. A derrota de Theresa May no parlamento britânico já não cabe sequer na escala normal das derrotas políticas. Theresa May não perdeu por alguns votos, nem por algumas dezenas de votos. Theresa May perdeu por centenas de votos, um resultado que não se verificava há séculos, ou que nunca se verificou mesmo. Mas o pior é que de todos os modelos de Brexit possíveis parece não haver maioria para nenhum, tal como provavelmente não haverá para um novo referendo. Esperem, isso não é o pior: o pior é que mesmo neste cenário a moção de censura dos trabalhistas ao governo de May é capaz de ser derrotada, e May ficará no governo sem política de governo, tendo sido derrotada por gigantesca margem na única coisa que fez durante dois anos. Se isto é tomar controlo, vou ali e já venho. Esta teria sido uma interessante experiência sobre disfunção política — o que acontece quando se promete o impossível às pessoas, e as pessoas votam naturalmente a favor do que lhes foi prometido — se não houve pessoas reais com as vidas em suspenso por causa do que se está a passar. No início, foi prometido aos britânicos não só mais controlo e mais dinheiro, mas também manter o mesmo acesso ao mercado da UE, como se os outros não tivessem também soberania. Menos liberdade de circulação para os europeus no Reino Unido, mas a mesma liberdade de sempre para os britânicos no continente. Agora, quando se vê que nada disso pode ser verdade, continua-se o Brexit pelas razões que Orwell identificou: para não se fazer figura de tolo. A ressaca pós-imperial inglesa continua a impedir alguns de ver que a figura de tolo já está feita. Mas a UE deve

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O aterrador curto-prazismo da política portuguesa

|Do arquivo Público 14.01.2019| Eu tinha outro título para este crónica, e aliás bem melhor: “Oh Rio não te queixes”. Tinha-o guardado há meses, por causa da coincidência entre o estribilho da canção d’A Aldeia da Roupa Branca e a inevitabilidade de um dia vermos Rui Rio e a queixar-se de um desafio à liderança do PSD. O que era inevitável aconteceu, Luís Montenegro desafiou Rui Rio na sexta-feira, Rui Rio respondeu a Luís Montenegro no sábado, e eis-me a desperdiçar um título de crónica perfeitamente válido. E porquê? Não pelo que foi dito pelos putativos líderes, mas pelo que não foi dito. Um falou de como o PSD não está a fazer boa oposição ao PS e assim se arriscar a perder as próximas eleições. Outro queixou-se, como previsto, do excesso de oposição que o PSD faz a si mesmo e de como assim se arrisca a perder as próximas eleições. No fundo, é isto. Dois dos políticos mais experientes do maior partido de oposição concentram em si as atenções do país para meia hora de intervenções em direto e o que sai é uma lavagem de roupa suja — “Ai rio não te queixes / ai que o sabão não mata” — sobre quem é mais mole ou mais oportunista. No fundo, um mero biombo para a questão de saber quem tem mais hipótese de compor as próximas listas de candidatos e as filas de espera para os lugares na administração. E a pergunta é: que pode um português normal, já nem digo um que não seja militante do PSD, mas apenas um cidadão que não pertença aos círculos mais próximos dos putativos líderes, extrair de ambos os discursos que seja minimamente relevante para o futuro do país? Nada. A política portuguesa já é, em geral, dominada pelo curto prazo. Em ano eleitoral, ela é-o mais ainda. O que o PSD e os seus correligionários desavindos conseguem é comprimir ainda mais o calendário, aproveitando para enfiar antes das eleições europeias — nas quais normalmente já não se consegue falar de Europa — uma disputa feita à medida para as televisões e as rádios noticiosas, que depois resultará num concurso de personalidades que esgotará os meses que nos faltam até às legislativas. Ora, até parece que Portugal não acabou de sair de uma crise profunda que foi por sua vez antecedida por uma década perdida. Se o final do século XX foi a era em que Portugal se desligou do seu império para poder iniciar um ciclo europeu que permitisse a consolidação de um regime pluralista — descolonizar, para poder democratizar e desenvolver — o início do século XXI está a ser a era em que não sabemos o que fazer depois disso. Os primeiros 25 anos após o 25 de Abril foram suavizados pela entrada de fundos europeus e por um cenário internacional favorável às novas democracias. Os segundos 25 anos, que estão agora a acabar, foram inconclusivos num momento em que não nos podemos dar a esse luxo. Resolvemos um problema em 2015: o da incomunicabilidade histórica da esquerda que impedia o nascimento de algo como a geringonça. Mas a geringonça tem sido mais remendo do que remédio. E chegamos agora a um ano eleitoral crucial sem saber o que têm os políticos para propôr como futuro ao país: sermos um agradável quintal das traseiras onde os outros vêm às vezes comprar casas? cortar nos custos unitários do trabalho até competir com os países que sucederem à Ásia? desistir de encontrar um lugar na Europa e na globalização? ou tentar atingir um grau mais elevado de desenvolvimento e sustentabilidade para o nosso modelo político, económico e social? se sim, como? Não tenhamos a ingenuidade de pensar que há uma resposta única para cada uma destas perguntas, ou que o lugar onde elas devem ser respondidas é numa qualquer sala acolchoada. O lugar destas perguntas e das suas possíveis respostas é no espaço público e no confronto político e eleitoral. Mas, a avaliar pela disputa no PSD, vamos passar os próximos tempos a evitar falar de qualquer coisa que não seja do último ano e do próximo ano. E ninguém em sã consciência dirá que nos outros partidos as coisas são muito melhores. Para quem está bem instalado ou já desistiu isto é ótimo, porque só confirma todos os lugares-comuns que têm sobre o país. Para todos os outros, se pensarmos nisso por uns segundos, é aterrador. (Crónica publicada no jornal Público em de janeiro de 2019)

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Prioridade ao ensino superior: porquê, como, para quê

|Do arquivo Público 11.01.2019| Globalização, europeízação, automação, crise de representação democrática, baixa produtividade, pouca especialização, desordenamento territorial, crise ecológica, baixos salários, desterritorialização do emprego, e poderíamos continuar — não há nenhum desafio que Portugal enfrente hoje no qual não seja crucial aumentar em muito, e muito rápido, e muito exigentemente, as qualificações da nossa população. E isso passa muito em particular pelo ensino superior, que na verdade nunca foi prioridade política ou orçamental no nosso país. Só metade dos nossos jovens vão para o ensino superior, e um país pequeno e semi-periférico numa grande economia aberta jamais conseguirá vencer os seus atrasos assim. Os políticos dos anos 1990 e 2000 encontraram um atalho para lidar com a universidade (por facilidade e poupança de caracteres incluirei aqui neste termo o ensino politécnico e todos os tipos de ensino superior): as propinas. As propinas nunca foram mais do que uma forma de desresponsabilização: as universidades são chatas, os reitores pedem dinheiro e os alunos protestam, então que tal introduzir nas universidades um princípio de utilizador-pagador? O problema é que o utilizador do sistema universitário, num país desenvolvido, somos todos nós — mesmo os que não lá andam. Nós precisamos de mais “doutores” e não de menos, e precisamos de encontrar formas de encorajar os jovens (e os não-jovens) a entrar na universidade (e a voltar quando necessário). É isso que a Alemanha decidiu há uns anos, introduzindo a gratuitidade total do sistema universitário federal e estadual como objetivo político e forma de a economia alemã aumentar a sua competitividade. Se não tomarmos a mesma decisão, ficaremos para trás.

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As propinas falharam, fizeram vítimas e prejudicaram o país. E agora?

|Do arquivo Público 09.01.2019| No início de 1993, ainda durante as emissões experimentais do segundo canal de televisão privado de Portugal — a TVI, então ligada à igreja — realizou-se o que penso ter sido o primeiro debate da estação. Entre os participantes do debate encontrava-se um ex-político, ex-jornalista e professor de direito então a reiniciar uma carreira como comentador de atualidade: Marcelo Rebelo de Sousa. O tema do debate era o aumento das propinas no ensino superior público. Os outros participantes eram, se a memória não me falha, os professores Luís Valadares Tavares e Diogo Lucena. De forma genérica, esses três convidados eram a favor dos planos de Cavaco Silva para que as propinas no ensino superior deixassem de ter um valor simbólico. Para defender a posição contrária ao aumento foi convidado um estudante universitário que só teve — ou, devo dizer, tive, pois era eu — de atravessar a Avenida de Berna para comparecer (os estúdios da TVI eram então junto à Igreja de Fátima, mesmo em frente à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova). Mais de 25 anos depois, Marcelo Rebelo de Sousa, agora Presidente da República, declarou anteontem na Convenção Nacional do Ensino Superior que concorda hoje “totalmente” com o fim das propinas: “um passo muito importante no domínio do financiamento do ensino superior… Porque isso significa dar um passo para terminar o que é um drama, que é o número elevadíssimo de alunos que terminam o ensino secundário e não têm dinheiro para o ensino superior, porque as famílias não têm condições, portanto, têm de trabalhar, não podem permitir-se aceder ao ensino superior”. É uma evolução crucial, que se saúda. Mais de 25 anos depois, não há motivos de regozijo quando se reconhece que afinal os estudantes que então se opuseram ao aumento das propinas (perante a incompreensão de grande parte do comentariado “adulto”) tinham razão.

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Não convidar um criminoso nazi é “politicamente correto”? Assino já.

|Do arquivo Público 07.01.2019|  No interesse de dissipar quaisquer dúvidas, começo por perguntar: pode chamar-se “nazi” a um tipo que tem uma suástica tatuada no braço, faz saudações nazis e se apresentou à imprensa como “discípulo de Hitler”? É que assim evitamos aquela discussão preciosista sobre o que é ou não um fascista. Um nazi é um nazi, certo? Seria até ocioso perguntar se podemos chamar criminoso a um tipo que foi condenado por ter liderado e participado em vários crimes de agressões racistas, ameaças, coação e ofensas corporais — incluindo um do qual resultou o assassinato do português Alcindo Monteiro, motivado exclusivamente pela cor da pele da vítima. Isto significa que tudo o que está escrito no título desta crónica é verdade, no que se refere ao caso do nazi criminoso que a TVI convidou para um programa da manhã na semana passada, apresentando-o como “autor de umas declarações polémicas” e convidando-o a responder à pergunta “se precisamos de um novo Salazar”. Mas caso eu dispusesse de mais espaço para o título, ele ainda poderia ser mais longo: “não convidar um criminoso nazi e racista para fazer a apologia dos seus crimes e incentivar ao ódio racial, com o objetivo de levar outros a praticar crimes semelhantes” é uma questão de liberdade de expressão ou de “politicamente correto”? É que uma rápida pesquisa pelo historial da pessoa em causa provaria também que esse título mais extenso seria igualmente verdadeiro. O sujeito em causa é nazi criminoso, e é alguém que faz a apologia dos seus crimes, mentindo sobre eles para capciosamente os apresentar como auto-defesa, de forma a incentivar o ódio racial e levar outros a cometer o tipo de crimes que o levaram à cadeia. Fundou e liderou uma organização criminosa caracterizada, como as investigações policiais determinaram, pela obrigatoriedade da prática de crimes de sangue. Nada leva a supor que o seu modus operandi se tenha modificado. E é com este enquadramento que a resposta à pergunta acima não pode ser senão nos seguintes termos: este é tanto um caso de liberdade de expressão como abrir-se um restaurante onde se ocultam cacos de vidro na sopa seria um caso de liberdade de estabelecimento comercial. Ou seja, não é de todo. É por isso que aqueles que pretendem enquadrar as reações de quem criticou a TVI como sendo de incómodo

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Destruam a democracia e depois queixem-se

|Do arquivo Público 04.01.2019| Há dias em que um cronista só se pode lembrar da música dos Rádio Macau: “eu não sei se hei-de fugir / ou morder o anzol”. A maior parte das vezes, fujo. Fugir significa escrever sobre as coisas realmente importantes. A chegada da China ao lado escondido da lua e o que isso indicia de uma nova corrida entre superpotências no espaço. Os vinte anos do euro e como a moeda da UE, mesmo feita pela metade, continua a desafiar as expectativas sobre a sua sobrevivência. O novo Congresso dos EUA e as pistas que ele traz para uma nova política progressista. “Morder o anzol” seria escrever sobre o que não importa — sobre os iscos que todos os dias nos são lançados exclusivamente para chamar a atenção, ganhar audiências e abrir a porta a gente desesperada por dinheiro e poder. “Morder o anzol” seria escrever sobre uma estação de televisão, a TVI, que no desespero da concorrência por audiências leva a estúdio um reiterado criminoso racista para lhe perguntar se “precisamos de um novo Salazar”. “Morder o anzol” é coisa que só se justifica quando por detrás dos golpes publicitários, sejam eles de aspirantes a políticos ou de vendilhões do jornalismo, está em risco um valor mais alto: a democracia e a sua sustentabilidade. Em situações normais, o perigo seria, ao denunciar, acabar por dar ainda mais divulgação a quem não a merece. Mas já não estamos numa situação normal. A degradação do espaço público que este tipo de oportunismos tem provocado já teve consequências funestas — na Europa, no Brasil, nos EUA, um pouco por todo o mundo. O perigo agora é não denunciar e deixar banalizar estes comportamentos. Sim, eles conseguem fazer-nos morder o anzol. Mas a denúncia é uma obrigação de defesa da democracia. O que a TVI fez ontem, ao convidar o criminoso racista Mário Machado para um programa da manhã e apresentá-lo como mero “autor de declarações polémicas” foi uma grave violação dos princípios que sustentam uma relação de confiança com os espectadores e, por conseguinte, da própria integridade do espaço público. Mário Machado não é um “autor de declarações polémicas”. É um dos líderes de um movimento que tem no seu historial variadíssimas agressões racistas e vários outros crimes de coação, ameaças, ofensas corporais e posse de armas ilegal. Foi um dos participantes mais ativos nos ataques racistas do 10 de junho de 1995, que resultaram na morte de um cidadão português, Alcindo Monteiro, por ter pele mais escura. Mário Machado participou diretamente em várias outras agressões nessa mesma noite, iniciando-as com um taco de basebol e deixando pelo menos duas vítimas inconscientes (num dos casos, ele e os seus comparsas gritavam “mata, é preto!”). Apresentá-lo como um mero opinador em temas políticos é mais do que uma falha deontológica. Significa mais do que branquear um ato criminoso. É mais e muito pior do que isso: é elevar um criminoso racista a uma posição de respeitabilidade sem qualquer contextualização ou informação ao público, e com isso contribuir para um caldo de cultura que vai provocar mais vítimas. Se o canal apresentasse um veneno como se fosse uma bebida natural consideraríamos certamente que havia uma responsabilidade moral no caso de essa decisão resultar indiretamente no envenenamento de alguém. Como pode a TVI eximir-se de responsabilidade moral ao apresentar um criminoso racista como alguém que vale a pena ouvir sobre se precisamos de um novo ditador em Portugal? Antes que apareçam os argumentos mal amanhados do costume, isto não tem nada a ver com a liberdade de expressão do senhor em causa. Ele tem, como tem qualquer outro dos mais de dez milhões de portugueses (incluindo alguns criminosos condenados como ele), direito a dizer os disparates que quiser. Mas milhões de portugueses não têm automaticamente direito a dizer os seus disparates num dos programas de maior audiência do país. Muito menos têm criminosos como Mário Machado o direito de serem branqueados ao vivo como “autores de declarações polémicas”— porque isso não é um direito dele, mas uma violação de um direito nosso. E esses direitos nossos — o direito a uma informação fidedigna, o direito a não sermos enganados ao vivo — estão na base de uma esfera pública íntegra, que está na base da própria democracia. Isto que a TVI faz e outras estações como ela vêm fazendo crescentemente é

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