Trabalhar menos para produzir mais: rumo à semana de quatro dias

|Do arquivo Público 09.07.2021|  Por cada hora que trabalhamos em Portugal produzimos, em média, cerca de trinta euros. Nos Países Baixos, por cada hora que se trabalha — e trabalha-se bastante menos horas do que em Portugal, sendo até o país europeu onde mais se trabalha em part-time — produz-se quase o dobro, um pouco abaixo de sessenta euros. No Luxemburgo, por cada hora de trabalho produz-se mais de oitenta euros. Mesmo descontando o efeito do setor financeiro na economia daquele país, no Luxemburgo produz-se certamente bem mais do dobro por cada hora de trabalho do que se produz em Portugal, ou — o que é dizer o mesmo — basta trabalhar menos de metade para se produzir o mesmo que cá. De quem quer que isto seja culpa, uma coisa é certa: não é dos trabalhadores portugueses. É que no Luxemburgo provavelmente cerca de um quarto da força de trabalho é constituída por trabalhadores portugueses. O problema da baixa produtividade em Portugal é provavelmente devido a questões de organização de trabalho, de falta de incorporação de conhecimento e tecnologia, e de erros na alocação de capital público e privado no nosso país. Esses são erros que urge resolver, porque depois de algumas décadas em que a nossa produtividade aumentou entre o 25 de Abril e a entrada na CEE, e entre a entrada na CEE e o novo milénio, os ganhos de produtividade diminuíram. Os anos da troika, em particular, foram uma tragédia — fomos então ultrapassados pela Turquia, que durante décadas antes tinha estado um quarto abaixo da produtividade portuguesa. Os ganhos de produtividade — literalmente, trabalhar menos tempo para produzir mais — parecem um assunto abstrato mas são decisivos para o nosso futuro. Ganhos de produtividade significa salários mais altos, o que significa uma segurança social mais robusta e maior arrecadação de impostos, o que por sua vez significa a hipótese de serviços público de maior qualidade. Tudo isto por sua vez atrai e retém uma força de trabalho cada vez mais qualificada, o que pode resultar em novos ganhos de produtividade. Há aqui um círculo virtuoso a conquistar que pode transformar o nosso país para muito melhor na próxima década. Mas do ponto de vista pessoal, os ganhos de produtividade têm ainda mais significados. Significam liberdade para fazer outras coisas, um maior equilíbrio entre vida profissional e familiar, mais tempo para o lazer e a cultura, mais opções de qualificação e educação ao longo da vida — o que por sua vez reverte de novo a favor de mais capacidade para produzir mais trabalhando menos, ou menos tempo. Ninguém sabe exatamente a receita secreta para obter ganhos de produtividade, mas há ingredientes que são mais ou menos evidentes. Uma revolução tecnológica pode ajudar, mas essas quando acontecem não costumam ser restritas a um só país. Entre as coisas que o nosso país pode fazer para tentar voltar a ter ganhos de produtividade semelhantes aos que já teve no nosso passado estão uma reforma nas políticas do ensino superior — mudar o modelo de financiamento, rejuvenescer o corpo docente e internacionalizar ainda mais —, uma reforma da administração pública ou nas relações entre estado e cidadão, e uma reforma nas políticas de relação com o território, em particular a regionalização. E depois há uma hipótese intrigante e até certo ponto contra-intuitiva, ou talvez não: e se estudássemos a diminuição dos horários e dos dias de trabalho? Para algumas pessoas, isto é anátema: seria necessário primeiro produzir mais para depois trabalhar menos tempo — quando o nosso problema está precisamente na primeira parte dessa fórmula. Ora acontece que estudos sucessivos em diversos tipos de ambientes e escalas (em empresas, em administrações locais ou regionais, e em países inteiros) parecem apontar neste sentido: para ganhar tempo livre sem perda de salário as pessoas estão dispostas a fazer as mudanças necessárias para produzir o mesmo ou até mais. A experiência mais recente vem da Islândia, que de 2015 a 2019 teve um por cento da sua força de trabalho envolvida num estudo de larga escala (à proporção, é claro, de um país pequeno) para passar de quarenta para trinta e cinco horas de trabalho. Nesta experiência, iniciada pela câmara municipal de Reykjavík e pelo governo central islandês, uma grande parte dos trabalhadores escolheram passar a uma semana de quatro dias. Os resultados foram divulgados agora e são reveladores: na esmagadora maioria dos locais de trabalho, a produtividade manteve-se ou até aumentou. Imagine uma semana de quatro dias de trabalho e o que ela significaria: dois dias de fim-de-semana para estar com a família, e mais um dia livre para tratar daqueles assuntos pendentes, desligar, aprender, arrumar a papelada, visitar a avó que vive sozinha. A sua produtividade agradeceria; a economia do país também. Portugal, vamos pensar um pouco à islandesa? (Crónica publicada no jornal Público em 11 de agosto de 2021)

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Quando os refugiados não eram um problema irresolúvel

|Do arquivo Público 28.07.2021|  Há setenta anos, no dia de hoje, os refugiados não eram um problema irresolúvel. E hoje também não. Na verdade, sempre soubemos e sabemos ainda hoje como fazer para resolver o problema dos refugiados. Não há nenhuma dificuldade legal, técnica, infraestrutural ou de espaço que nos impeça de salvar tantos refugiados quanto possível, de cuidar deles enquanto não podem voltar às suas casas (como mais de noventa por cento desejam) ou de dar uma nova vida noutro lugar aos mais vulneráveis de entre eles. Os números daqueles que precisam de “reinstalação” num país terceiro são em geral baixos, na ordem das poucas centenas de milhar. Distribuídos pelos países que os podem receber, trata-se de uns poucos milhares a cada país. Para facilitar mais as coisas, há um acumular de conhecimento e saber fazer em organizações internacionais, como o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e não só, que nos permite processar os pedidos dos refugiados e gerir a sua reinstalação de forma ordeira, pacífica e integradora, negando o estatuto de refugiado a criminosos de guerra ou terroristas e preparando as pessoas para a vida na sua sociedade futura. Recapitulando: os refugiados não eram, não são e não está previsto que se venham a tornar, por si só, um problema irresolúvel. Nem hoje, nem ontem, nem há setenta anos. O que há, ou não há, é vontade política de resolver o problema dos refugiados. Essa é a grande diferença entre o dia de hoje e o dia de hoje há setenta anos — quando, a 28 de julho de 1951 foi assinada a Convenção de Genebra sobre o Estatuto das Pessoas Refugiadas. Há setenta anos, os países saídos da IIª Guerra Mundial sabiam que a melhor maneira de lidar com o drama dos refugiados — a melhor maneira para os refugiados e para os próprios países de acolhimento — era através da preparação, da organização e da solidariedade. Hoje, o problema é pior do que não haver vontade política — é haver uma vontade política de tornar o problema irresolúvel. Um exemplo serve para explicar o que quero dizer. Após a assinatura da Convenção, faz hoje então setenta anos, um dos primeiros países a precisar de ajuda foi a Hungria. Um país europeu como eram aqueles para os quais a Convenção foi pensada, após um tempo em que a grande maioria dos refugiados do mundo era da Europa, e a Europa era o continente que gerava mais refugiados e que de mais solidariedade internacional precisava. Em 1956 a Hungria foi invadida pelos tanques soviéticos e em poucas semanas havia duzentos mil refugiados húngaros para receber. O Conselho da Europa reuniu-se em Estrasburgo e, com a ajuda do ACNUR, o problema resolveu-se em praticamente uma sessão plenária da forma mais simples possível: os países definiram quotas e receberam os refugiados húngaros de acordo com essas quotas. Se bem me lembro, só três países se recusaram a definir quotas, mas não pelas razões que hoje conhecemos: a França, o Reino Unido e o Canadá declararam que receberiam tantos refugiados quanto necessário, ou seja, que não queriam quotas porque não teriam um teto máximo de reinstalações. Desde outubro de 1956 até ao fim desse ano praticamente todos os refugiados húngaros tinham uma nova casa. Que um dos países que mais cedo beneficiou das políticas de reinstalação de refugiados seja hoje um dos que mais fecha a porta a uma solução para o problema dos refugiados não surpreende ninguém, dado que todos sabemos do posicionamento ideológico do governo húngaro. Mas o que muita gente não sabe é que não se trata de apenas má-vontade em receber refugiados na Hungria — não há praticamente refugiados a quererem ir para a Hungria de todo o modo. Mais do que uma falta de vontade política “passiva”, o que o governo húngaro e outros como ele demonstram é uma vontade política “ativa” em que o problema dos refugiados se torne irresolúvel. Isso serve os seus propósitos políticos. Quanto mais irresolúvel, mais imagens de refugiados acumulados nas fronteiras, e mais possibilidades para governos autoritários congéneres, como o da Turquia, de usarem os refugiados como arma de arremesso político para conseguirem mais dinheiro. Se a Convenção de 1951 se aplicasse como quando foi assinada, não haveria este negócio de conveniência política. Enquanto escrevo estas linhas, recebo a notícia: mais de mil refugiados morreram afogados no Mediterrâneo este ano. Mil pessoas a dividir pelos estados-membros da UE, façam as contas, dá menos de quarenta pessoas por país. Mil pessoas que não precisariam de ter morrido. Mil pessoas que não precisariam de ter posto as suas vidas nas mãos de traficantes. Mil pais, mães, filhos de alguém que estariam agora a refazer as suas vidas se um papel assinado há setenta anos neste dia ainda fosse respeitado. Se isto não é o grande escândalo moral do nosso tempo, não sei que outra coisa lhe poderemos chamar. (Crónica publicada no jornal Público em 28 de julho de 2021)

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Afeganistão: esta vergonha também é nossa

|Do arquivo Público 16.08.2021|  Há 20 anos estive contra a Guerra do Afeganistão, não só porque os meus instintos sempre penderam mais para o anti-intervencionismo (com exceção de um perigo de genocídio iminente ou uma autorização de uso da força pelas Nações Unidas, que aqui não chegou a haver) mas também porque já então parecia megalómana a estratégia ocidental para o país, influenciada pelos teóricos neo-conservadores da “Guerra Global Contra o Terror” e alimentada por histórias de “construção nacional” à Japão e Alemanha depois da IIª Guerra Mundial que não tinham qualquer aplicação ou credibilidade no Afeganistão do século XXI. Não era uma posição fácil. Na altura, havia um vislumbre de justificação de auto-defesa por parte dos EUA (não mais do que um vislumbre, no entanto; o Afeganistão não atacou os EUA e quinze dos dezanove terroristas que o fizeram vinham da Arábia Saudita) e, sobretudo, o regime dos talibã era cruel, brutal e opressivo para lá do que era possível imaginar. Dizer que lá as violações de direitos humanos eram diárias é dizer pouco; o Afeganistão dos talibã, entre 1996 e 2001, era um buraco negro onde a própria ideia de direitos humanos só chegava para morrer. Os afegãos e sobretudo as afegãs, as suas minorias étnicas, a sua sociedade civil e todos os que não são fanáticos religiosos tiveram incomparavelmente mais liberdade, acesso à educação e apoio da comunidade internacional durante estes últimos vinte anos em que lá “estivemos”. A segunda pessoal do plural entre aspas no fim do último parágrafo é onde a porca torce o rabo. É que, independentemente da posição que cada um de nós teve sobre a guerra — contra, a favor, incerto ou indeciso — a verdade é que o nosso país se envolveu no Afeganistão. Através de Portugal, “nós” estivemos no Afeganistão. A ação da NATO e dos seus aliados foi caucionada por diversas maiorias parlamentares, governos de diferentes partidos, ao longo de muitos anos. E é por isso que dói mais ainda ver que até as previsões mais pessimistas para a guerra foram ultrapassadas. Juntando-lhe o ambiente político atual, o resultado da guerra não foi só destruir e descartar um país: depois de o fazer, vamos assistir agora à farsa da rejeição de refugiados — os refugiados que a guerra em que estivemos envolvidos e o abandono com que estamos conformados geraram e vão gerar mais ainda. Os refugiados que nos vão bater à porta, e muito em particular as refugiadas, são também responsabilidade dos nossos governos e do nosso país. É bom que não nos esqueçamos disso. Neste momento parece haver uma expectativa por parte das chancelarias ocidentais e dos governos da União Europeia de que os talibã se portem relativamente bem e que a vaga de refugiados que se espera para os próximos tempos não seja muito grande nem muito demorada. Contrariamente à crença xenófoba, a esmagadora maioria dos refugiados não quer “vir para cá”; preferem antes esperar num país vizinho que as coisas acalmem e depois regressar a casa. Mas não temos boas razões para crer que isso possa acontecer agora; os afegãos que temem pela vida observaram o colapso rápido do seu governo corrupto e aperceberam-se dos colossais erros de cálculo dos ocidentais em relação à velocidade com que os talibã chegariam a Cabul. Não vão ficar à espera de ver se as esperanças ocidentais no bom comportamento dos talibã se confirmam ou não. Provavelmente milhões de pessoas vão pôr-se à estrada, correndo riscos e fazendo milhares de quilómetros. Contarão com a ajuda do ditador Lukashenka, que tem promovido já a passagem de afegãos pelo território bielorrusso para os países bálticos, para assim embaraçar a UE. Na Turquia, o jornal pró-governamental Daily Sabah dizia já ontem que era preciso mais dinheiro da UE para pôr em marcha “um plano de ação emergencial sob supervisão da Turquia enquanto país de trânsito”. A mensagem é clara: ou há mais dinheiro ou haverá afegãos a chegar às ilhas gregas. Há uma forma de contornar o oportunismo dos Lukashenkas e Erdogans: é serem os europeus a convocar o Conselho de Segurança da ONU e pedir a assistência do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados no desenho de um projeto de reinstalação específico, com promessas de países por quotas. O Canadá já deu o primeiro passo, garantindo que receberia vinte mil refugiados. E nós? Mesmo que não se concretize uma vaga de refugiados de grandes dimensões, vai ser sempre preciso acudir às necessidades mais prementes. E estas agora são sem dúvida a das mulheres afegãs que deram tudo pelo seu país e acreditaram nas vãs promessas ocidentais de proteção: professoras, estudantes universitárias, jornalistas, ativistas, políticas. As nossas cidades, as nossas universidades, as nossas instituições têm de começar a mexer-se por elas. Foram os nossos países e os nossos governos que as puseram e deixaram nesta situação. A responsabilidade política é também nossa. (Crónica publicada no jornal Público em 16 de agosto de 2021)

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A promoção da cultura científica não é só uma política simpática — é uma urgência

|Do arquivo Público 11.08.2021|  Numa família que a minha família conhece, num país estrangeiro, um dos filhos deu já há anos em islamista radical. Há poucos meses, a novidade é que esse filho é agora fundamentalista anti-vacinas; nas manifestações a que vai e nos círculos onde recolhe desinformação, partilha agora a causa e os objetivos de islamofóbicos radicais. Uma teoria da conspiração nunca vem só, e provavelmente ele e os seus inimigos figadais são ainda capazes de partilhar elementos de anti-semitismo clássico, negacionismo das alterações climáticas e por aí afora. Crenças são crenças; uma das suas características mais perenes é ser praticamente impossível persuadir alguém a abandonar racionalmente uma crença que não adotou de forma racional ou, como dizia o filósofo David Hume, “não se consegue tirar racionalmente uma pessoa de uma crença na qual não entrou racionalmente”. A única forma é combater por antecipação: preparar as pessoas para exercerem o seu raciocínio e espírito crítico por si mesmas, de acordo com princípios lógicos, inferências prováveis e uma base de conhecimentos adquirida penosamente ao longo de séculos, sempre possível de revisão, mas a mais sólida e certa que temos. A isto chama-se normalmente “promover a cultura científica”. Em geral, ninguém se opõe à promoção da cultura científica, que costuma ser considerada uma política “simpática”. Mas nos tempos que correm, porém, promover a cultura científica é mais do que isso: é uma questão literalmente de vida ou de morte, urgente e decisiva. O exemplo do negacionismo anti-covid, ou anti-vacinas, é evidente e fácil de explicar. Quando há uma bolsa suficientemente grande de gente que não se vacina, todos ficamos em risco pelo possibilidade de aparecimento de novas variantes que aí encontram terreno fértil para se desenvolverem. Mas se é nesse momento apenas que temos de fazer a pedagogia das vacinas, então já chegámos tarde demais. A promoção da cultura científica não se dá bem quando é preciso vociferar; ela tem de ser feita com vagar, com paciência e serenidade durante décadas, desde o início da exploração consciente do mundo, de várias formas diferentes. E não tem havido políticas de promoção científica suficientemente amplas para isso tudo. O Covid-19 é uma urgência — e agora vemos a falta que a literacia científica faz às sociedades. Mas as alterações climáticas são uma urgência também — e um problema de uma magnitude acrescida a que não conseguiremos responder se também aí tivermos de estar agora a fazer o combate de retaguarda, pela confiança nos dados científicos, que deveria já estar ganho há muito tempo. E o impacto da Inteligência Artificial nas próximas décadas, ou da desinformação na rede, são mais outras de tantas urgências que não é possível resolver sem promoção da cultura científica. Infelizmente aí esbarramos noutro problema — o da própria visão estreita da cultura científica que tantas vezes prevalece no espaço público. Promover a cultura científica não significa só meter cientistas no governo, ou pôr políticos a transferirem as suas responsabilidades para a ciência, como quem diz “nós seguimos a ciência” e já está. Significa ter cada vez mais cidadãos capazes de entender o debate científico mesmo como não-especialistas, e até de participar em projetos da chamada “ciência cidadã” (por exemplo, de recolha de dados estatísticos sobre o ambiente, o clima, etc.). Promover a cultura não significa insuflar a arrogância de cientistas ou a insularidade da ciência — pelo contrário, significa lançar mais pontes entre as ciências e as humanidades, entre estas e as artes, entre todas elas e a cidadania. Isto é trabalho que demora décadas, que começa cedo na escola, que prossegue ao longo da vida de várias formas diferentes. Que nos habilita a fazer crítica de fontes, a saber debater de forma construtiva e serena, a pesar argumentos e a medir riscos. Um dos elementos de sedução do negacionismo está no facto de os negacionistas afirmarem que chegaram às suas verdades sozinhos. Pois bem, promover a cultura científica não pode significar dizer às pessoas para aceitarem acriticamente o que lhes dizem, mas antes de as habilitar a serem capazes de encontrar o seu caminho e de lhes dar as ferramentas de que todos hoje necessitamos para navegar uma realidade na qual a cultura científica é decisiva. Sem isso, nenhum dos nossos problemas presentes e do futuro próximo é resolúvel. (Crónica publicada no jornal Público em 11 de agosto de 2021)

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Os direitos das pessoas LGBT não são controversos

|Do arquivo Público 28.06.2021|  Há exatamente 52 anos neste dia a polícia nova-iorquina invadiu, como era habitual, um bar gay, lésbico e trans chamado Stonewall, localizado no bairro de Greenwich Village em Nova Iorque. A diferença naquela ocasião foi que os fregueses do bar, cansados de tanto assédio, decidiram resistir à violência policial. Nos dias e semanas seguintes a comunidade LGBT local auto-organizou-se em torno da exigência a poderem viver em segurança a sua sexualidade; passado um ano, decidiram comemorar o 28 de junho, dando assim início ao que é o Dia do Orgulho que se comemora hoje em todo o mundo pela 51ª vez. O caminho feito neste meio-século é nada menos do que extraordinário — e a estratégia da visibilidade teve nisso uma enorme importância. De comunidade proscrita que era possível assediar sem causar resistência, nem mesmo dos próprios, passou-se a um movimento capaz de se auto-defender, de se organizar e mobilizar por causas que naquela noite de 1969 ainda não imaginavam, desde o combate à pandemia de HIV-SIDA até à defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo. De pessoas obrigadas a encarar a sua própria sexualidade na vergonha e no medo, passou-se hoje (em muitos contextos, mas não em todos) a um orgulho, uma coragem e uma entreajuda que salvam vidas. De uma sexualidade estigmatizada e criminalizada (no nosso país, por incrível que isso possa parecer, até aos anos 1990) passou-se a uma naturalização da diferença e a um entendimento muito mais empático do direito de cada um viver em liberdade a sua sexualidade e deixar aos outros o mesmo direito. E de uma desvalorização da importância destas lutas, que até há pouco tempo ainda subsistia (ou ainda subsiste) mesmo entre quadrantes que têm por hábito considerar-se progressistas, passou-se finalmente a entender-se o caráter profundamente libertário, igualitário e democrático das suas demandas. Nos países onde tudo isto sucedeu — e há muitos onde continuamos na era da criminalização — não só a vida das pessoas LGBTQIA+ ficou incomparavelmente mais respirável como a nossas sociedades se tornaram melhores: mais inclusivas, mais respeitosas, mais capazes de entender os direitos de todos. Essas conquistas, nos lugares onde ocorreram, significam um progresso de séculos em poucas décadas, mas não caíram do céu. Devemos agradecer por elas a todos e todas os que fizeram essas lutas, e aos seus aliados. No cerne destas lutas, e da razão para elas terem progredido de forma comparativamente tão rápida, está um questão decisiva de igualdade. Desse ponto de vista, a expressão tantas vezes usada de “direitos LGBT” é enganadora. Porque aquilo que foi e continua a ser exigido não são direitos LGBT; são direitos humanos iguais aos de quaisquer outros seres humanos, também para as pessoas gays, lésbicas, bissexuais, trans e por aí afora. São direitos de não se ser perseguido pela sua preferência sexual — como qualquer pessoa. Direito de não sofrer violência verbal ou física, de não sentir estigmatização — como qualquer pessoa. Direito de viver a sua vida com a pessoa que se ama, de com ela casar e constituir família — enquanto adultos em mútuo consentimento, e em pleno respeito pela liberdade dos outros, como qualquer pessoa. Os direitos a que chama LGBT são direitos humanos, ponto. São direitos de pessoas LGBT, que são seres humanos com a mesma dignidade intrínseca de todos. São simplesmente direitos de pessoas a serem pessoas. Esta característica faz deles por vezes mal entendidos no contexto atual. São esse direitos uma questão política, ou não? A resposta é: claro que sim. Como quaisquer outros direitos humanos, são uma questão profundamente política. Que os direitos humanos são políticos não oferece dúvida; o que eles não devem ou mesmo não podem ser é controversos. Já ouço questionar: mas como não são controversos? Não é o reconhecimento desses direitos recente? Não implicou lutas como as descritas nos primeiros parágrafos? Não serão por isso mesmo controversos? E continuo a insistir que enquanto direitos humanos eles não são controversos — são aliás os mesmo que todos os humanos exigem rotineiramente para si mesmos, como o direito à liberdade de expressão ou o direito à vida familiar. O que alguns políticos querem é fazer dos direitos das pessoas LGBTQIA+ controversos por causa das pessoas que eles devem proteger. Esse é o projeto político de Orbán, de Bolsonaro e outros. Tornar direitos humanos controversos por causa das pessoas que eles devem proteger, e assim esvaziar o próprio conceito de direitos humanos. E é também por isso que não é possível neutralidade nesta luta. As pessoas que estão sob ataque na Hungria, equiparadas a criminosos e limitadas na sua liberdade de expressão, estão na linha da frente da defesa de direitos humanos que são património de todos. E todos devemos sair em sua defesa. (Crónica publicada no jornal Público em 28 de junho de 2021)

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A encruzilhada à nossa frente: neoimperialismo ou unidade europeia

Durante as últimas décadas, a propaganda de Putin tem tido um efeito considerável na política europeia e mesmo para lá dela. Trata-se de uma propaganda oportunista, principalmente ocupada em garantir vitórias táticas e desmoralizar os seus competidores. Como consequência, setores ideológicos diferentes alinharam-se com a propaganda de Putin por razões diferentes: alguns acharam que o anti-imperialismo americano era mais do que suficiente para serem aliados objetivos do pró-imperialismo russo e continuarem a chamar a si mesmos “anti-imperialistas”; outros, no outro extremo do espectro ideológico, viam Putin como o cavaleiro branco do nacionalismo e do reacionarismo global, defendendo os valores tradicionais contra o cosmopolitismo e as liberdades individuais contemporâneas; ao centro, não era necessária adesão ideológica para persuadir muitos políticos ao pragmatismo dos interesses económicos, em alguns casos pessoais — para quê convencer políticos e governantes quando muitas vezes basta comprá-los? Mas, apesar de ter discursos diferentes para cada tipo de grupo de interesses, assim cultivando aliados objetivos em famílias políticas distintas e até opostas, existiu sempre algo por detrás da propaganda de Putin que poderemos descrever como uma ideologia coesa, unificada e com objetivos claros. Os elementos essenciais dessa ideologia são os seguintes: o povo simples, seja ele russo ou de outros países, não tem maturidade suficiente para se governar a si mesmo e está sempre melhor quando vive debaixo da autoridade de um homem forte; no plano mundial, os países não são todos iguais, e alguns têm que viver sob a tutela de outros , por destino geográfico ou histórico; os homens fortes dos países fortes não precisam de divulgar a sua visão do mundo aos seus súbditos, que de qualquer forma não a compreenderiam — a propaganda basta. Mas se dissociarmos o fundo da forma da mensagem de Putin, logo veremos que não é difícil definir a sua ideologia: trata-se de um neoimperialismo reacionário, parecendo quase típico do século XIX ou da primeira metade do século XX mas adaptado às realidades tecnológicas e comunicacionais do século XXI. É preciso ser claro quanto às consequências de uma possível vitória do neoimperialismo no nosso tempo. Se Putin conseguir anexar a Ucrânia, as outras super-potências, mais tarde ou mais cedo, acomodar-se-iam à nova realidade. Cada uma delas teria a sua esfera de influência e os “assuntos pendentes” seriam tratados diretamente entre os seus homens fortes. Nesse mundo, realidades como a União Europeia (que Trump declarou explicitamente como “uma inimiga”) teriam que ser enfraquecidas e divididas, pois elas são a única maneira pela qual nações médias e pequenas que se poderiam organizar para, através da partilha voluntária de soberania, fazerem respeitar na prática a sua soberania e independência no mundo global. Este não é um mundo no qual cidadãos de países pequenos e médios na Europa, como é o nosso, tivessem palavra a dizer ou gostassem de viver. Mas existe um contraponto a esta visão do mundo. Estes momentos na história, na sua enorme complexidade, têm a vantagem de se nos apresentar com as encruzilhadas fundamentais bem claras. E a encruzilhada fundamental que temos à nossa frente é esta: neoimperialismo ou unidade europeia. Não há opções intermédias. Se o neoimperialismo ganhar, a Europa não terá qualquer autonomia estratégica para determinar o seu futuro — face a um Putin como face a um Xi Jinping ou um qualquer novo Trump que venha a ocupar a Casa Branca. Mas uma Europa unida será por si mesma uma derrota do neoimperialismo. Uma Europa que seja capaz de cuidar do seu destino coletivo terá de ter todas as conversas que tem vindo a adiar deste há décadas, sobre a capacidade de reconverter a sua economia para acabar com a dependência dos combustíveis fósseis ou de coordenar as suas políticas de defesa ou de aprofundar a sua integração para preparar possíveis novos alargamentos. Uma vez que não terá qualquer credibilidade para defender a democracia quando não se é uma democracia completa, a Europa terá de ser uma união política democrática, ou não será. Para isso, todos os seus estados-membros terão de ser estados de direito, porque o exemplo de Orban já demonstrou que os aprendizes de tirano estão sempre dispostos a ser cooptados pelas linhas de crédito dos seus mestres tiranos em qualquer parte do mundo. E tem de ser uma Europa que seja uma união de direitos fundamentais, os mesmos para cada um das suas centenas de milhões de cidadãos, independentemente de em que estado-membro se encontram. Uma Europa assim será capaz de dar prosperidade partilhada a todos os seus, responsabilidade ecológica ao planeta como um todo, um exemplo aos cidadãos de países pequenos e médios de todo o mundo, e será um bastião económico, social, cultural e político contra o neoimperialismo reacionário, autoritário e belicista, venha ele de onde vier. Uma Europa assim será, acima de tudo, uma Europa pela qual valerá a pena lutar, à qual muitos se desejarão juntar e que respeitará sempre as escolhas que cada país vier a fazer sobre se nela desejará ou não ficar. Porque, com toda a sua diversidade histórica e cultural, uma Europa unida e livre não pode ser senão inimiga do neoimperialismo. E quem for anti-imperialista não pode ser agora outra coisa senão inimigo da estratégia de Putin e capaz de lhe contrapor outra estratégia melhor: mais libertadora, mais respeitadora das muitas identidades de que somos feitos, mais prenhe de futuro e, portanto, mais capaz de mobilizar os seus muitos milhões com uma visão positiva digna do século XXI. O neoimperialismo já nos mostrou ao que vem: a guerra, o sofrimento e a morte. Saibamos agora ser capazes de encher de conteúdo, de esperança e de vida o projeto da unidade europeia. (Texto publicado no jornal Público em 1 de março de 2022): https://www.publico.pt/2022/03/01/opiniao/opiniao/encruzilhada-frente-neoimperialismo-unidade-europeia-1997052

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Afinal somos todos euro-optimistas

“(Nota: eis-me de regresso ao Público depois de ter sido candidato pelo LIVRE a estas eleições europeias, com um pouco mais de 60 mil votos duramente conquistados com apenas dez mil euros de campanha — 35 e 50 vezes menos dinheiro, já para não falar de cobertura televisiva, do que partidos com uma votação semelhante. Não me compete fazer de analista de mim mesmo. Direi apenas que estou contente com o resultado e com as perspectivas que ele abre para que possamos ter finalmente em Portugal, a partir de outubro, a esquerda verde pró-europeia e anti-austeritária que me dá esperança no resto da Europa. E continuarei a lutar por uma Democracia Europeia com a mesma convicção de sempre.)” A crónica completa aqui.

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Em Direto

 Perguntem-me e eu respondo. Agora, em direto na página do Facebook do LIVRE!

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Uma democracia, se a soubermos manter

|Do arquivo Público 24.04.2019|   A partir de hoje esta crónica fica suspensa por um mês até às eleições europeias, nas quais sou candidato a deputado ao Parlamento Europeu pelo LIVRE. Um contrato que tenho comigo mesmo ainda antes de ter com os leitores, porém, é evitar ao máximo que o valor que estas crónicas possam ter — para lá das concordâncias ou discordâncias com elas — possa alguma vez ser diminuído pelas circunstâncias da minha participação política ou filiação partidária. Espero sinceramente consegui-lo. Precisamente por isso vos devo, também, franqueza na hora de transmitir aquilo que fui aprendendo com esta atividade política sui generis de alguém que nunca pensou vir a ser candidato, deputado ou fundador de partido. E o que se aprende é bastante, e é por vezes inesperado. Aprende-se que aquilo que por vezes é ridicularizado nas campanhas eleitorais — a campanha na rua, as distribuições de panfletos, o estar acessível aos concidadãos (de que por vezes só fica a imagem do abraço e do beijinho) — pertence ao que a política tem de mais nobre. Não se pode querer tocar nas pessoas com as ideias se fugirmos ao contacto real, direto, com as pessoas. Mas aprende-se também, infelizmente, que a nossa democracia está mais frágil do que julgamos. Ao ir para estas eleições, essa é a minha principal preocupação. Não é visível à maior parte dos cidadãos que a política portuguesa foi constitucionalmente desenhada para ser proporcional e representativa — mas refeita na prática pelas direções dos partidos para ter consideráveis barreiras à entrada e obstáculos à representação. Esses obstáculos à representação estão, entre outros, na forma como é violado o princípio da liberdade de desempenho do mandato pelos deputados pela chamada “disciplina de voto”, ou nas contagens de votos no hemiciclo de deputados ausentes, considerados “em cabresto” como se tivessem forçosamente de votar como o resto do grupo parlamentar. As barreiras à entrada são menos conhecidas. Consideremos desde logo uma que, no entanto, está à vista de toda a gente: o país está cheio de cartazes panorâmicos caríssimos (os chamados “outdoors”) em campanhas permanentes de partidos, mas de uma magnitude tal que normalmente só grandes empresas como bancos, cervejeiras ou construtoras automóveis as conseguem ter. Isto é único em Portugal: os partidos terem milhares destes outdoors, e gastarem neles milhões de euros, que são obviamente uma barreira à entrada de novos partidos feitos de cidadãos que não sejam ricos nem poderosos ou não escondam interesses escusos. Nenhum outro país que eu conheça tem — ou precisa — desta caríssima poluição visual espalhada por todo o seu território. O Presidente da República já se pronunciou desfavoravelmente sobre este abuso e desperdício, sem qualquer impacto na realidade concreta: aos partidos não desagrada atribuírem-se dinheiro para saturar o espaço público. O problema é que a barreira à entrada que assim criam — tal como a que criaram ao alterar a lei de cobertura de campanhas eleitorais para seu benefício, cartelizando o acesso aos debates televisivos — acaba por ser tão exagerada que é praticamente impossível de ser superada por gente séria, mas revelar brechas que já estão a ser aproveitadas pelos políticos sem escrúpulos, com possível sucesso. Já há neste momento pelo menos um partido demagógico e populista de direita extrema que pré-anuncia um sideral orçamento de 500 milhões de euros nas eleições europeias, isto para lá da pré-campanha caríssima e altamente visível que fez enquanto ainda não era partido (e que por isso mesmo nunca será eficazmente fiscalizada pela entidade de contas do Tribunal Constitucional). Se a isso juntarmos o patrocínio quase indisfarçado a esse partido por parte de um sensacionalista canal de televisão por cabo, temos um Portugal armado o cenário para a irrupção de um projeto — pelo menos — de desonestidade política em forma de populismo. De onde vem o dinheiro que o financia? Como será controlado? Quais são os interesses por detrás do seu apadrinhamento televisivo? Isso saber-se-á mais tarde, se é que não se saberá tarde demais. Quem aqui me lê sabe que uma das minhas causas de sempre é a construção de uma democracia europeia. Enquanto a União Europeia for apenas um clube de democracias, mas não uma democracia completa, é cada vez menos possível que ela possa dar respostas à altura das crises que atravessamos — das alterações climáticas às desigualdades na globalização. Mas agora corremos o risco de as próprias democracias nacionais estarem cada vez mais sujeitas à sua manipulação por políticos sem escrúpulos, à interferência por interesses escondidos (inclusivé de potências externas), à cooptação por projetos de poder incofessados. E que Portugal não esteja imune a esses fenómenos é uma das minhas principais preocupações nesta véspera do 25 de Abril. Aplica-se o que disse Benjamin Franklin quando lhe perguntaram qual era o regime dos EUA: “uma República, se a souberem manter”. O nosso regime é o estado de direito democrático. Mas ele não se mantém sozinho: precisa que cada um de nós se empenhe na sua salvaguarda. É isso que tentarei fazer à minha escala. Até lá, obrigado pela vossa atenção. (Crónica publicada no jornal Público em 24 de abril de 2019)

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Se Portugal joga para o empate, perde

|Do arquivo Público 19.04.2019| A discussão em torno do estudo sobre a sustentabilidade da Segurança Social dirigido por Amílcar Moreira para a Fundação Francisco Manuel dos Santos pode ser talvez resumida por uma metáfora futebolística: trata-se de uma discussão entre quem acha que devemos jogar para o empate e quem acha que devemos jogar para perder por poucos. A razão para isto está no perímetro da discussão, ou seja: devemos discutir só a Segurança Social ou devemos discuti-la no contexto das dinâmicas mais gerais da economia e da sociedade portuguesa? Como o próprio Amílcar Moreira reconhece, é impossível conhecer com certeza o futuro da Segurança Social sem saber como se vai comportar a economia portuguesa e, em particular, as variáveis que para esta questão mais importam: o crescimento da produtividade e o (possivelmente correspondente) aumento dos salários, além da evolução demográfica do país (natalidade+imigração). Qualquer discussão sobre o futuro da Segurança Social acaba assim por ser uma discussão “encaixada” num cenário. A partir daí podemos optar por discutir “dentro da caixa” ou “fora da caixa”. Discutir “dentro da caixa” significa fazer aquilo que fizeram os autores do estudo: escolher um cenário central (no caso, a partir das previsões da Comissão Europeia para Portugal) e discutir a Segurança Social dentro dele. Discutir “fora da caixa” significa discutir como se alteram as dinâmicas da economia e da sociedade portuguesa. Ambas as estratégias são legítimas e necessárias. Mais: o que é natural no tipo de estudo que foi pedido a Amílcar Moreira e aos seus colegas é a discussão “dentro da caixa”. Um estudo sobre a Segurança Social não é um estudo sobre a economia e a sociedade portuguesa em geral. Mas isso não impede — antes pelo contrário, deveria estimular — que o resto do debate público se faça também “fora da caixa”. É aliás, o próprio Amílcar Moreira que nos dá uma pista nesse sentido quando admite (em entrevista ontem ao Público) que “obviamente não tínhamos hipótese de simular todas as medidas possíveis para melhorar a sustentabilidade do sistema”, dando entre outros exemplos a possibilidade de aumentar “as qualificações da população para melhorar a produtividade”. Medidas como esta estavam fora do perímetro do seu estudo, mas não podem estar fora da nossa discussão pública sobre o futuro de Portugal. Se formos honestos, há que reconhecer que o debate sobre como aumenta a produtividade não é fácil de fazer, como confessam por vezes os próprios economistas. Mas o aumento das qualificações é precisamente um dos campos onde Portugal tem muito caminho a fazer. Não há nada a perder, e muito a ganhar, em investir numa reforma profunda do ensino superior em Portugal, no sentido de generalizar o acesso a ele por parte da população portuguesa em todos os momentos da sua vida ativa, e mesmo para lá dela. Ou seja, pode ser que o aumento das qualificações não resulte automaticamente no crescimento da produtividade, que por sua vez teria um reflexo positivo nos salários e consequentemente na sustentabilidade da Segurança Social. Mas isso não quer dizer que tenha sido mau tentar esse caminho. Por sua vez, essa discussão deve inserir-se na redefinição de uma estratégia para Portugal a que me referi em crónicas passadas. Durante muito tempo, a meta-síntese da estratégia portuguesa foi a convergência com a média da União Europeia. Não só perdemos a convergência nas últimas décadas como descobrimos que a convergência por si só pode não ser suficiente para segurar em Portugal os trabalhadores mais qualificados e os jovens que emigram na chamada “fuga de cérebros”. Isso significa que talvez Portugal tenha de optar por uma meta diferente, passando a ter por objetivo algo de muito mais ambicioso do que a convergência: ser uma sociedade de conhecimento inclusiva e de economia mais especializada, uma sociedade altamente desenvolvida que não deixe ninguém para trás — algo que só é possível discutir no médio e no longo prazo, mas que pode ser verdadeiramente mobilizador para os portugueses. Se começarmos por aí, todas as outras peças — incluindo as da Segurança Social — começam a encaixar. A experiência de outros países, com modelos muito diferenciados dos escandinavos aos bálticos e à Irlanda, indica-nos que é possível fazer esta discussão e levá-la a bom porto. A discussão sobre a Segurança Social é apenas mais um elemento que prova como Portugal precisa de mudar de estratégia. Ou precisa, pelo menos, de ter uma estratégia.  (Crónica publicada no jornal Público em 19 de abril de 2019)

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