|Do arquivo Público 28.07.2021| Há setenta anos, no dia de hoje, os refugiados não eram um problema irresolúvel. E hoje também não. Na verdade, sempre soubemos e sabemos ainda hoje como fazer para resolver o problema dos refugiados. Não há nenhuma dificuldade legal, técnica, infraestrutural ou de espaço que nos impeça de salvar tantos refugiados quanto possível, de cuidar deles enquanto não podem voltar às suas casas (como mais de noventa por cento desejam) ou de dar uma nova vida noutro lugar aos mais vulneráveis de entre eles. Os números daqueles que precisam de “reinstalação” num país terceiro são em geral baixos, na ordem das poucas centenas de milhar. Distribuídos pelos países que os podem receber, trata-se de uns poucos milhares a cada país. Para facilitar mais as coisas, há um acumular de conhecimento e saber fazer em organizações internacionais, como o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e não só, que nos permite processar os pedidos dos refugiados e gerir a sua reinstalação de forma ordeira, pacífica e integradora, negando o estatuto de refugiado a criminosos de guerra ou terroristas e preparando as pessoas para a vida na sua sociedade futura. Recapitulando: os refugiados não eram, não são e não está previsto que se venham a tornar, por si só, um problema irresolúvel. Nem hoje, nem ontem, nem há setenta anos.
O que há, ou não há, é vontade política de resolver o problema dos refugiados. Essa é a grande diferença entre o dia de hoje e o dia de hoje há setenta anos — quando, a 28 de julho de 1951 foi assinada a Convenção de Genebra sobre o Estatuto das Pessoas Refugiadas. Há setenta anos, os países saídos da IIª Guerra Mundial sabiam que a melhor maneira de lidar com o drama dos refugiados — a melhor maneira para os refugiados e para os próprios países de acolhimento — era através da preparação, da organização e da solidariedade. Hoje, o problema é pior do que não haver vontade política — é haver uma vontade política de tornar o problema irresolúvel.
Um exemplo serve para explicar o que quero dizer. Após a assinatura da Convenção, faz hoje então setenta anos, um dos primeiros países a precisar de ajuda foi a Hungria. Um país europeu como eram aqueles para os quais a Convenção foi pensada, após um tempo em que a grande maioria dos refugiados do mundo era da Europa, e a Europa era o continente que gerava mais refugiados e que de mais solidariedade internacional precisava. Em 1956 a Hungria foi invadida pelos tanques soviéticos e em poucas semanas havia duzentos mil refugiados húngaros para receber. O Conselho da Europa reuniu-se em Estrasburgo e, com a ajuda do ACNUR, o problema resolveu-se em praticamente uma sessão plenária da forma mais simples possível: os países definiram quotas e receberam os refugiados húngaros de acordo com essas quotas. Se bem me lembro, só três países se recusaram a definir quotas, mas não pelas razões que hoje conhecemos: a França, o Reino Unido e o Canadá declararam que receberiam tantos refugiados quanto necessário, ou seja, que não queriam quotas porque não teriam um teto máximo de reinstalações. Desde outubro de 1956 até ao fim desse ano praticamente todos os refugiados húngaros tinham uma nova casa.
Que um dos países que mais cedo beneficiou das políticas de reinstalação de refugiados seja hoje um dos que mais fecha a porta a uma solução para o problema dos refugiados não surpreende ninguém, dado que todos sabemos do posicionamento ideológico do governo húngaro. Mas o que muita gente não sabe é que não se trata de apenas má-vontade em receber refugiados na Hungria — não há praticamente refugiados a quererem ir para a Hungria de todo o modo. Mais do que uma falta de vontade política “passiva”, o que o governo húngaro e outros como ele demonstram é uma vontade política “ativa” em que o problema dos refugiados se torne irresolúvel. Isso serve os seus propósitos políticos. Quanto mais irresolúvel, mais imagens de refugiados acumulados nas fronteiras, e mais possibilidades para governos autoritários congéneres, como o da Turquia, de usarem os refugiados como arma de arremesso político para conseguirem mais dinheiro. Se a Convenção de 1951 se aplicasse como quando foi assinada, não haveria este negócio de conveniência política.
Enquanto escrevo estas linhas, recebo a notícia: mais de mil refugiados morreram afogados no Mediterrâneo este ano. Mil pessoas a dividir pelos estados-membros da UE, façam as contas, dá menos de quarenta pessoas por país. Mil pessoas que não precisariam de ter morrido. Mil pessoas que não precisariam de ter posto as suas vidas nas mãos de traficantes. Mil pais, mães, filhos de alguém que estariam agora a refazer as suas vidas se um papel assinado há setenta anos neste dia ainda fosse respeitado.
Se isto não é o grande escândalo moral do nosso tempo, não sei que outra coisa lhe poderemos chamar.