Durante as últimas décadas, a propaganda de Putin tem tido um efeito considerável na política europeia e mesmo para lá dela. Trata-se de uma propaganda oportunista, principalmente ocupada em garantir vitórias táticas e desmoralizar os seus competidores. Como consequência, setores ideológicos diferentes alinharam-se com a propaganda de Putin por razões diferentes: alguns acharam que o anti-imperialismo americano era mais do que suficiente para serem aliados objetivos do pró-imperialismo russo e continuarem a chamar a si mesmos “anti-imperialistas”; outros, no outro extremo do espectro ideológico, viam Putin como o cavaleiro branco do nacionalismo e do reacionarismo global, defendendo os valores tradicionais contra o cosmopolitismo e as liberdades individuais contemporâneas; ao centro, não era necessária adesão ideológica para persuadir muitos políticos ao pragmatismo dos interesses económicos, em alguns casos pessoais — para quê convencer políticos e governantes quando muitas vezes basta comprá-los? Mas, apesar de ter discursos diferentes para cada tipo de grupo de interesses, assim cultivando aliados objetivos em famílias políticas distintas e até opostas, existiu sempre algo por detrás da propaganda de Putin que poderemos descrever como uma ideologia coesa, unificada e com objetivos claros.

Os elementos essenciais dessa ideologia são os seguintes: o povo simples, seja ele russo ou de outros países, não tem maturidade suficiente para se governar a si mesmo e está sempre melhor quando vive debaixo da autoridade de um homem forte; no plano mundial, os países não são todos iguais, e alguns têm que viver sob a tutela de outros , por destino geográfico ou histórico; os homens fortes dos países fortes não precisam de divulgar a sua visão do mundo aos seus súbditos, que de qualquer forma não a compreenderiam — a propaganda basta. Mas se dissociarmos o fundo da forma da mensagem de Putin, logo veremos que não é difícil definir a sua ideologia: trata-se de um neoimperialismo reacionário, parecendo quase típico do século XIX ou da primeira metade do século XX mas adaptado às realidades tecnológicas e comunicacionais do século XXI.

É preciso ser claro quanto às consequências de uma possível vitória do neoimperialismo no nosso tempo. Se Putin conseguir anexar a Ucrânia, as outras super-potências, mais tarde ou mais cedo, acomodar-se-iam à nova realidade. Cada uma delas teria a sua esfera de influência e os “assuntos pendentes” seriam tratados diretamente entre os seus homens fortes. Nesse mundo, realidades como a União Europeia (que Trump declarou explicitamente como “uma inimiga”) teriam que ser enfraquecidas e divididas, pois elas são a única maneira pela qual nações médias e pequenas que se poderiam organizar para, através da partilha voluntária de soberania, fazerem respeitar na prática a sua soberania e independência no mundo global. Este não é um mundo no qual cidadãos de países pequenos e médios na Europa, como é o nosso, tivessem palavra a dizer ou gostassem de viver.

Mas existe um contraponto a esta visão do mundo.

Estes momentos na história, na sua enorme complexidade, têm a vantagem de se nos apresentar com as encruzilhadas fundamentais bem claras. E a encruzilhada fundamental que temos à nossa frente é esta: neoimperialismo ou unidade europeia. Não há opções intermédias. Se o neoimperialismo ganhar, a Europa não terá qualquer autonomia estratégica para determinar o seu futuro — face a um Putin como face a um Xi Jinping ou um qualquer novo Trump que venha a ocupar a Casa Branca. Mas uma Europa unida será por si mesma uma derrota do neoimperialismo.

Uma Europa que seja capaz de cuidar do seu destino coletivo terá de ter todas as conversas que tem vindo a adiar deste há décadas, sobre a capacidade de reconverter a sua economia para acabar com a dependência dos combustíveis fósseis ou de coordenar as suas políticas de defesa ou de aprofundar a sua integração para preparar possíveis novos alargamentos. Uma vez que não terá qualquer credibilidade para defender a democracia quando não se é uma democracia completa, a Europa terá de ser uma união política democrática, ou não será. Para isso, todos os seus estados-membros terão de ser estados de direito, porque o exemplo de Orban já demonstrou que os aprendizes de tirano estão sempre dispostos a ser cooptados pelas linhas de crédito dos seus mestres tiranos em qualquer parte do mundo. E tem de ser uma Europa que seja uma união de direitos fundamentais, os mesmos para cada um das suas centenas de milhões de cidadãos, independentemente de em que estado-membro se encontram.

Uma Europa assim será capaz de dar prosperidade partilhada a todos os seus, responsabilidade ecológica ao planeta como um todo, um exemplo aos cidadãos de países pequenos e médios de todo o mundo, e será um bastião económico, social, cultural e político contra o neoimperialismo reacionário, autoritário e belicista, venha ele de onde vier. Uma Europa assim será, acima de tudo, uma Europa pela qual valerá a pena lutar, à qual muitos se desejarão juntar e que respeitará sempre as escolhas que cada país vier a fazer sobre se nela desejará ou não ficar. Porque, com toda a sua diversidade histórica e cultural, uma Europa unida e livre não pode ser senão inimiga do neoimperialismo. E quem for anti-imperialista não pode ser agora outra coisa senão inimigo da estratégia de Putin e capaz de lhe contrapor outra estratégia melhor: mais libertadora, mais respeitadora das muitas identidades de que somos feitos, mais prenhe de futuro e, portanto, mais capaz de mobilizar os seus muitos milhões com uma visão positiva digna do século XXI.

O neoimperialismo já nos mostrou ao que vem: a guerra, o sofrimento e a morte. Saibamos agora ser capazes de encher de conteúdo, de esperança e de vida o projeto da unidade europeia.

(Texto publicado no jornal Público em 1 de março de 2022): https://www.publico.pt/2022/03/01/opiniao/opiniao/encruzilhada-frente-neoimperialismo-unidade-europeia-1997052

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