Tempos assustadores

Ter uma estratégia em Bruxelas, que fosse de agir e não de reagir. Se houve tal estratégia, ninguém no governo de Portugal se deu ao trabalho de informar. Isto aconteceu em apenas uma semana. Em Portugal temos um governo de bloco central. Na Europa temos um governo económico. Em ambos os casos são governos de facto e não de jure. E agora, a ironia. Em Portugal, o governo de bloco central não manda, porque quem manda é Bruxelas. E em Bruxelas, o governo económico – aliás, antidemocrático e antifederal – também não manda, porque se limita a reagir “aos mercados”. Estas duas notícias ainda há uns meses mudariam tudo. Agora são de uma absurda irrelevância. Tempos fascinantes. Que crise é esta, em que todos ralham e todos parecem ter razão? É uma crise para os adversários da desregulação, e outra para os adversários do endividamento. Uma crise para os keynesianos e outra para os antikeynesianos. É uma crise feita de várias crises juntas. O seu nome é instabilidade. O melhor economista da instabilidade que conhecemos era o americano Hyman Minsky, falecido em 1996, que se opunha em simultâneo à desregulação, à dívida, e à retração do governo. Na sua obra maior, publicada nos anos 70 e chamada Estabilizando uma economia instável, ele deixa algumas notas interessantes: Primeira:

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Cerejeira em flor

O Papa veio a Portugal em pleno ano do centenário da República. À nossa democracia que o recebeu com tanta pompa atirou uma citação da ditadura como uma pedra de mão escondida. Ligo a SIC para ver a transmissão da visita do papa. Sou imediatamente distraído por uma música pseudo-sacra de órgão como som de fundo enquanto a pivot lê as notícias. Mudo para a RTP. A mesma estapafúrdia ideia, mas agora com uma música de coro entre o gregoriano e o new-age. Os repórteres em direto ora descrevem a mecânica do “papamóvel” ora tentam improvisações teológicas mal-amanhadas. Pedro Santana Lopes, em entrevista, perora sobre a “alta craveira intelectual” de Bento XVI. Santana Lopes! Os jogadores do Benfica (do Benfica!) foram entregar uma águia e uma camisola da equipa de futebol ao Papa. Foi pena faltar um fadinho. E alguém lembra que a “sacristia improvisada” da “santa missa” foi no Ministério das Finanças (na situação endividada em que estamos, ninguém pode levar-nos a mal por tentarmos um milagre). Eu não posso ter sonhado isto tudo. Será que já não há nada sagrado?

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Duas facadas na República

O que fez a “justiça” foi pegar numa coisa que parece corrupção, se comporta como corrupção, fede e tresanda como corrupção – e dizer que está tudo bem. Se houvesse alguma coisa engraçada para dizer sobre dois episódios recentes da vida portuguesa, eu juro que tentaria lembrar-me dela. Eu tentei, aliás; seria agradável ter alguma espécie de alívio cómico no meio do que prometia ser uma crónica amarga. Mas quanto mais me forçava a pensar no que escrever, mais angustiado fiquei. Agora desejo apenas terminar e enviar o texto. O primeiro episódio é a absolvição de Domingos Névoa no “caso Bragaparques”. Como se lembram os leitores, Domingos Névoa foi a primeira pessoa apanhada em flagrante a tentar comprar um político para que este mudasse a sua posição num negócio de imobiliário muito vultuoso. Os factos foram provados pela investigação e comprovados pelos tribunais. Num primeiro passo, a “justiça” multou-o num montante ridículo, muito abaixo do que ele esteve disposto a pagar ao vereador em causa, José Sá Fernandes, e uma fração insignificante daquilo que Domingos Névoa teria a ganhar com o negócio. Num segundo passo, a “justiça” multou Ricardo Sá Fernandes, irmão do vereador e denunciante do caso, por ter chamado “corrupto” a Domingos Névoa, imagine-se: chamar-lhe aquilo que fora provado que ele era. Mas isso era antes do desfecho: num terceiro passo, a “justiça” ilibou Domingos Névoa por considerar que ele não tinha comprado o vereador certo. Que dizer sobre isto? Que a “justiça” juntou a injúria ao insulto, e

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Vamos todos chorar?

Durão Barroso, em quem deveríamos todos votar por dever patriótico, não tem aparecido, isto enquanto o seu país vai pelo cano. Washington. – Kissinger pediu uma vez que lhe encontrassem qual era o número de telefone que ele deveria usar se precisasse de ligar para a Europa. O antigo secretário de Estado americano era um homem famoso e esta foi provavelmente a sua frase mais famosa. Ficou na cabeça dos europeus durante décadas. Finalmente, saíram-se com uma resposta, contida no Tratado de Lisboa. É ela… Quatro números de telefone. Pelo menos. Barroso, Van Rompuy, Ashton e a presidência espanhola. Daqui a uns meses será a presidência belga, se até lá este país tiver voltado a ter governo (agora não tem e a última vez que isto aconteceu ficou assim sete meses – a propósito: um país sem governo, deficit alto e uma dívida pública acima dos 100% do PIB, maior do que a nossa, não terá direito a ser despromovido nas agências de notação ou será que possui atestado de bom comportamento por razões geográficas?). Os americanos podem também experimentar ligar a Angela Merkel, mas ela não atende o telefone. Até às eleições numa província alemã, a Europa e o Mundo que se lixem. Que lindo serviço.

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Como acabar com a crise da crise grega

Os especuladores fazem aquilo que se lhes deixa fazer. E não foram eles que apontaram uma arma à Europa e nos obrigaram a fazer uma moeda única sem solidariedade. Considere um artigo de quando o euro estava em alta. Dizia ele que a moeda europeia corria um risco apreciável de desaparecer nos anos seguintes: bastaria que uma das suas economias mais frágeis e ameaçadas tivesse de abandonar a moeda. Na altura, seria fácil menosprezar esse artigo – se bem me lembro no Wall Street Journal – como agoirento e implicativo. Hoje seria menos fácil negar-lhe um certo sentido. Ora vejamos a Califórnia, estado americano muito populoso e produtivo, por si só uma das grandes economias do mundo. A propósito: também está falido. Mas isso não tem um efeito enorme no dólar. Já a hipotética falência da Grécia, que representa meros três por cento do PIB europeu, pode chegar para: 1) transformar a hipotética falência da Grécia em real falência; 2) espalhar o contágio a outros países da zona euro, entre os quais Portugal, que também não é a Califórnia; 3) causar a amputação ou o fim do euro; 4) obrigar ao maior recuo de sempre do projeto europeu. Mas há uma maneira de sair desta crise em dois passos. É ela os líderes europeus dizerem, com a solenidade suficiente, o seguinte: “Não há economias periféricas nem centrais na zona euro; um ataque a um país da zona euro é um ataque ao euro enquanto todo; e não haverá nenhuma falência na eurolândia porque nós não o permitiremos; teria de falir a zona euro inteira, e isto só aconteceria a dois passos do apocalipse financeiro global, ou seja, não vai acontecer. Muito obrigado por terem ouvido.” E o segundo passo?

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Carta aos carteiros

Se a ideia de privatizar é poupar uns euros no défice, trata-se de uma péssima ideia. E em troca desse disparate teremos um mau serviço quando tínhamos bons correios. Se eu pudesse dar um conselho aos nossos governantes, presentes e futuros, sobre os correios portugueses, esse conselho seria: se é para estragar, nem sequer pensem em mexer-lhes. Não é por acaso que, em estudos feitos há alguns anos, os correios apareciam como uma das instituições em que os portugueses mais confiavam. A razão era simples: funcionavam. A prova pude fazê-la mudando de país. Na Bélgica, onde passo uma grande parte do meu tempo, o serviço prestado pelos correios é manifestamente inferior ao serviço equivalente em Portugal. E isso é também manifestamente irritante: num tempo dominado pela Internet, a importância de ter correios fiáveis aumentou, não diminuiu – desde logo, por causa do comércio postal, mas também do envio de senhas de utilizador por carta. Aqui na Bélgica as encomendas às vezes chegam, outras vezes chegam tarde, outras vezes não chegam. Será isto porque os correios belgas foram privatizados a 49,9%? Se a honestidade intelectual nos manda admitir que algumas privatizações possam fazer sentido, isso significa também reconhecer que outras não fazem sentido nenhum. E, sobretudo, deve levar-nos a olhar para os dados empíricos: afinal, que diabo, há outros países que tentaram o mesmo antes de nós. Que tal perguntar? Tanto quanto consigo saber, a resposta é

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Na ementa da lula-vampiro

Tenho más notícias: a próxima refeição da lula-vampiro gigante é um pequeno país chamado Portugal. “A primeira coisa que precisam de saber sobre o banco Goldman Sachs é que ele está em todo o lado. É uma gigantesca lula-vampiro enrolada na cara da humanidade, com o seu tubo de sucção alimentar incansavelmente fossando em busca de tudo o que lhe cheire a dinheiro.” Um dos meus pequenos orgulhos enquanto leitor é ter descoberto o autor (e ex-basquetebolista) Matt Taibbi há cinco anos, bem antes de ele ser famoso por algumas das metáforas mais invulgares e memoráveis que a imprensa escrita já viu. Nos últimos dias vi ser utilizada várias vezes a sua descrição do banco Goldman Sachs, que reproduzo acima, para descrever as últimas descobertas sobre as práticas predatórias (e possivelmente fraudulentas) deste banco. Segundo agora se sabe, o banco escondia o risco de investimento em alguns dos seus produtos financeiros (os CDO) por detrás de uma estrutura propositadamente confusa. Este obscurecimento é aquilo a que o economista Erik Gerding chamou de “complexidade intratável”, e é comum a vários dos produtos financeiros da crise. A hipótese de fraude é que o Goldman Sachs talvez utilizasse o mesmo esquema para esconder o favorecimento de certos clientes. O banco tem dado duas respostas a estas acusações. A primeira: toda a gente fazia o mesmo! A segunda: mas nós éramos transparentes! A réplica à primeira resposta poderia ser:

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Momento epictetiano.

O que mais fascina todos aqueles que não estão bloqueados em aeroportos é a radical incerteza de tudo isto. Epicteto era escravo, era aleijado, vivia no tempo do imperador Nero e gostava de escutar as lições do filósofo estóico Musónio. Quando um dia ganhou a liberdade decidiu abrir uma escola filosófica que funcionasse “como um lugar de cura para almas doentes”. A primeira das suas lições, que foram fielmente transcritas por um discípulo chamado Arriano, era sempre sobre o tema: “as coisas que podemos controlar e as coisas que não podemos controlar”. Epicteto sustentava que o sofrimento advinha de tentarmos controlar coisas que não podemos controlar. Para ele, as coisas que não podemos controlar são em geral as externas, ou seja, aquelas que nos acontecem a nós. As coisas que podemos controlar, a bem dizer, são apenas as que temos dentro da cabeça, ou seja, as nossas ideias e atitudes. Claro que o mundo se alterou muito desde que Epicteto viveu, e a humanidade mudou também o seu bocado. A técnica permitiu-nos que controlássemos muitas mais das coisas “externas” que Epicteto achava que eram incontroláveis, e daí procedeu uma certa arrogância que ganhámos em relação à natureza. Mas entra em cena um vulcão islandês de nome impossível de recordar e, de repente, eis-nos num momento epictetiano.Não há tecnologia, meus caros, que nos permita ir lá ao vulcão e pôr-lhe em cima uma tampa. A única coisa que nos resta controlar é a nossa ansiedade, enquanto não sabemos se os aviões podem ou não levantar voo. (Enquanto escrevo, dezenas de eurodeputados enviam mensagens ao secretariado do parlamento para tentar saber se teremos ou não sessão mensal em Estrasburgo, que deveria começar amanhã. Se a tivermos, será certo que a assembleia estará fortemente distorcida pela arbitrariedade geográfica, e dominada por deputados da Alemanha, da França, e alguns daqueles que como eu decidiram ficar o fim-de-semana em Bruxelas. Alguém imagina o que sucederá se um parlamento cheio de alemães mas sem gregos votar o que quer que seja sobre a crise grega?) O que mais fascina todos aqueles que não estão bloqueados em aeroportos é a radical incerteza de tudo isto. A erupção vulcânica e a sua nuvem de cinza podem durar mais um dia, ou uma semana. Ou um mês. Ou um ano. Não se sabe. Pode regressar mais tarde, ou não. O vento pode mudar, ou também não. A erupção pode desencadear outras erupções em vulcões vizinhos. E daí, talvez não. Caso a situação se mantivesse, é certo que as consequências para a aviação comercial seriam enormes. Para as mentes mais imaginativas e nostálgicas, é uma boa ocasião para lembrar o tempo em que se ia da Europa para a América em transatlântico ou dirigível. Outros ainda recordam as propostas de diminuir o aquecimento global lançando para a atmosfera grandes quantidades de enxofre. E se a erupção continuasse? Nesse caso teríamos o equivalente ao famoso ano de 1816, conhecido por ter sido “o ano em não houve verão” (a nossa corte não deu por isso porque estava no Rio de Janeiro). Quanto a este último pedaço de fantasia, os cientistas que falaram sobre o assunto já nos disseram que não é possível: 2010 não será o novo 1816. Mas será sempre 2010. Com coisas que não podemos controlar e coisas que podemos controlar. Enquanto durar, apreciemos o nosso momento epictetiano.

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Escreva o final

Nunca vi isto: o primeiro-ministro é refugiado, o presidente é um refugiado, todos os deputados o são. Smara. – Oficialmente, estou em território da Argélia, mas aqui não se vê uma única bandeira deste país, nem se fala com ninguém que se diga argelino. A cidade mais próxima, Tinduf, é sim uma cidade argelina; mas para lá irem as pessoas à minha volta precisam de mostrar um documento especial de trânsito (apenas elas: nós não estamos obrigados a isso). Onde estou então? No deserto; longo e único como só nós o vemos.Quem aqui mora tem para ele vários nomes em árabe, ou então usam palavras herdadas das línguas berberes para designar e distinguir o deserto plano do deserto das colinas, o terreno compacto e ocre das dunas de areia. A tarefa é mais complicada ainda pelo facto de que, a quinhentos quilómetros daqui, há outro lugar chamado Smara. Se fosse possível lá ir, que não é, pelo menos não em linha reta. Eu explico.

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Como as nuvens.

É como uma nuvem, a História: gigantesca e cheia de delicadeza. Uma coisa grande que parece mudar lentamente; mas distraímo-nos e já está inteiramente diferente. Não faltam na história situações fortuitas, ou próximo disso, de consequências irreversíveis. Vistas de perto, não seriam incomparáveis com o acidente que, no passado sábado, decapitou a república polaca, começando pelo seu Presidente, chefias militares e alguns dos principais políticos. Um estudante tenta matar o herdeiro do trono austríaco enquanto ele visita Sarajevo, a 28 de junho de 1914. Não consegue à primeira, desencontra-se da caravana, reencontra-a quase por acaso, dispara o seu revólver. O arquiduque Francisco Fernando morre, a sua mulher também. Pouco depois, começa uma guerra mundial. Roma está a arder em Maio de 64 d.C., sabe-se lá porquê, terá sido um forno de pão aceso ou o próprio imperador ou um animal a provocar acidentalmente o fogo? Nero culpa os cristãos e persegue-os impiedosamente, contribuindo a prazo para aumentar a coesão, e a força, da então ainda pequena seita. Estes são os exemplos clássicos. Poderíamos acrescentar:

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