O Papa veio a Portugal em pleno ano do centenário da República. À nossa democracia que o recebeu com tanta pompa atirou uma citação da ditadura como uma pedra de mão escondida.

Cardeal Cerejeira e Salazar (1º e 3º a contar da esquerda) Inauguração da exposição do Mundo Português (Lisboa 23.06.1940) Foto: Mário Novais

Ligo a SIC para ver a transmissão da visita do papa. Sou imediatamente distraído por uma música pseudo-sacra de órgão como som de fundo enquanto a pivot lê as notícias. Mudo para a RTP. A mesma estapafúrdia ideia, mas agora com uma música de coro entre o gregoriano e o new-age. Os repórteres em direto ora descrevem a mecânica do “papamóvel” ora tentam improvisações teológicas mal-amanhadas. Pedro Santana Lopes, em entrevista, perora sobre a “alta craveira intelectual” de Bento XVI. Santana Lopes! Os jogadores do Benfica (do Benfica!) foram entregar uma águia e uma camisola da equipa de futebol ao Papa. Foi pena faltar um fadinho. E alguém lembra que a “sacristia improvisada” da “santa missa” foi no Ministério das Finanças (na situação endividada em que estamos, ninguém pode levar-nos a mal por tentarmos um milagre).

Eu não posso ter sonhado isto tudo. Será que já não há nada sagrado?

Falando sério, minha gente – mesmo para um ateu (já nem digo para um benfiquista), desde que minimamente interessado pela história e evolução do catolicismo, tudo isto é muito perturbante. O puro avacalhamento televisivo da solenidade religiosa é, bem o sei, involuntário. É profanação bem intencionada. Nem os jornalistas portugueses, nem os jogadores do Benfica são, bem o sei, sublimes teólogos. Mas o que isto quer dizer é que, por muita conversa nostálgica que se faça, a distância entre a sociedade contemporânea e a igreja católica é já tão grande que a primeira não consegue aproximar-se da segunda sem a trivializar irreparavelmente.

Mas a inversa consegue ser ainda pior.

Logo no seu primeiro discurso em solo nacional, o único português que Joseph Ratzinger resolveu citar foi nem mais nem menos do que Manuel Cerejeira, o cardeal do salazarismo. Para não deixar dúvidas, referiu-se-lhe até como de “veneranda memória”.

Vai ser interessante ver os neoconservadores portugueses tentarem apanhar esta bola. Desvalorizar a citação não é possível, para quem sempre disse que nada é deixado ao acaso nos textos do “Papa intelectual”. Mas também não dá para dizer que a citação, trivial e quase gratuita naquele contexto, fosse a porta para uma interpretação necessária ou intelectualmente estimulante. Ou Ratzinger quis citar um português, e na sua ignorância sobre o país, não se lembrou de Santo António ou do Padre Vieira (não serão de veneranda memória?) ou então Ratzinger sabe muito bem o que quis com a citação a Cerejeira.

Nesse caso, o Papa terá vindo a Portugal em pleno ano do centenário da República para iniciar a visita sob o signo da “veneranda memória” de quem pôs a igreja católica em sintonia com a ditadura. À nossa democracia que o recebeu com tanta pompa atirou uma citação da ditadura como uma pedra de mão escondida.

Isto significa que a distância entre esta igreja católica de Ratzinger (a de Ratzinger, não o catolicismo generoso, tolerante e pluralista que também existe) e a sociedade contemporânea é já tão grande que a primeira não pode relacionar-se com a segunda sem lhe mostrar a sua agressiva incompreensão. O que vale é que a sociedade contemporânea, entre a abundância da escolha e a leveza das interpretações, não liga e segue em frente.

2 thoughts to “Cerejeira em flor

  • NS

    Já nada é sagrado, é isso mesmo. Então esta gente do meu Benfica vai dar uma camisola a esses senhor com o nome Bento?! Mas já não há memória?! Bento, o grande Bento, esse mesmo nascido na Golegã, símbolo sagrado do meu Benfica, já não diz nada a esta gente que está à frente deste Benfica? Para mim, Bento só há um, o nosso e mais nenhum, e acho profundamente de mau gosto que se dê assim a sua camisola, com o seu nome gravado e tudo, a quem nunca fez nada pelo Benfica. É uma conduta desrespeitosa e acintosa da nossa memória. Não merecíamos. Bento, sobretudo, não o merecia.

  • Nuno Resende

    Bem, e discordando com mais um texto seu, pelo menos ajudou as palavras de Bento XVI ajudaram a recordar que o período entre 1933 e 1974 também foi de República. Mesmo apesar das Comemorações apenas se reportarem à I República o que faz desta estranha celebração, não um centenário, um «brevenário». Tal a incerteza e a incongruência da definição de República consoante os ideólogos e os historiadores, é melhor nem atirar com um valor e chamar-lhe brevenário se não passaremos demasiado tempo a esbulhar estes 100 anos de ditaduras e outros revezes.

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