Tela ou janela?

O que não muda contudo, é o velho debate sobre se a tecnologia nos faz melhores ou piores. Por mais voltas que dê, esse debate corre o risco de ignorar uma coisa: o que deve em primeiro lugar fazer-nos melhores (esperemos) ou piores é uma coisa muito simples: nós mesmos. Um novo livro chamado “A sociedade dos ecrãs”, coordenado pelo sociólogo Gustavo Cardoso à frente de uma equipa multidisciplinar, problematiza com alguma novidade as consequências das novas tecnologias na nossa vida, da economia à política, da cultura à sociabilidade. Tive a sorte de estar no lançamento, com José Magalhães e José Pacheco Pereira, e de voltar a alguns temas que me interessam como cidadão, e tenho impressão que sobretudo como historiador. Desde a Antiguidade que há tecno-otimistas e tecno-pessimistas. Mesmo nas tecnologias que nos parecem mais admiráveis. Sócrates (o antigo) criticou a invenção da escrita: dizia ele que era possível desmentir um mentiroso que fala, mas nenhum interrogatório conseguirá mudar um escrito mentiroso, pois o texto que lá está, lá fica (“onde entra lixo só sai lixo”). Ou melhor, “dizia” Sócrates, porque, fiel aos seus princípios, ele não escreveu nada. Quem escreveu e pôs as palavras na sua boca foi Platão, o que leva à questão: e se a transcrição foi mentirosa? Nem um Sócrates moderno, não forçosamente desse nome, conseguiria desmentir um escrito de Platão.

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Entre dois mundos

Quanto à geração que há vinte anos viveu aquele momento, não sei se é hoje mais compreendida, até por si mesma.  É altamente formada mas ainda precária, desempregada, emigrada. Assistiu ao início do desfazer de uma ideia do bem público. Foi apanhada entre dois mundos. Há vinte anos, feitos ontem, deu-se um momento de formação coletiva para algumas centenas de pessoas em frente à Assembleia da República. Eis a memória que tenho dele. Estávamos numa das manifestações contra o aumento das propinas no ensino superior público. Não éramos muitos, mas estávamos dispostos a ficar. Depois de um primeiro momento de tensão com a polícia, um cordão de agentes impedia o acesso à escadaria do parlamento. Passámos horas no largo fronteiro a São Bento, às vezes gritando palavras de ordem, outras vez tentando fazer rir os polícias, a ver se a máscara da autoridade se lhes desfazia. E, ao fim da tarde, num momento de calma e sem provocação, a polícia carregou contra nós a uma só vez, provavelmente com ordens superiores para limpar a praça. Corremos para onde foi possível; perdi-me do meu grupo de amigos e fui parar, não sei bem como, ao jardim do Quelhas. No chão estava deitada uma rapariga, contraída, sem conseguir respirar. Uma amiga dela tentava ajudá-la, outra gritava perguntando porque as tinham agredido à bastonada. Não creio que algum polícia as ouvisse. Elas estavam apenas incrédulas, como estávamos todos. O momento da carga policial desiludiu-nos enquanto geração. Por que razão éramos tratados assim?

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Uma defesa essencial

É pois essencial, para todos os que assim acreditem, demonstrar publicamente que o problema do país não está na Constituição, nem no Tribunal Constitucional. É um apelo necessário: em época de crise, os tribunais podem ser das poucas instituições que conseguem compensar o fundamentalismo austeritário com uma defesa segura e constante da democracia e dos direitos humanos. Segue-se uma história insólita, mas real. Há 24 horas, mais ou menos, recebi um funcionário da representação permanente de um país da Europa do Norte para tratar de um assunto relacionado com liberdades e estado de direito na União Europeia. No fim pediu para introduzir um assunto novo na nossa reunião, e começou a falar sobre a preocupação do seu país com a Constituição e o Tribunal Constitucional português. Fiquei boquiaberto por dentro. Após duas ou três perguntas, fiz questão de lhe explicar que o que lhe tinham dito era mentira. A Constituição portuguesa não é “socialista”. O Tribunal Constitucional não é um “legislador negativo”. A Constituição pode ser extensa mas as sentenças do Tribunal basearam-se em princípios básicos, constantes de qualquer constituição. Reformas em Portugal que respeitem o estado de direito são sempre possíveis.

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A longa depressão

Nem o euro colapsa, nem a Europa se reforma. Continuamos apenas numa longa agonia. A imagem que acompanha esta crónica apareceu no blogue do economista Paul Krugman e representa uma comparação entre a quebra na produção industrial nos anos 30 e na atual crise. De caminho, permite responder a uma pergunta: estamos pior ou “melhor” (menos pior) do que na Grande Depressão? A resposta é: nem uma coisa nem outra, estamos mais ou menos igualmente mal. E há mais tempo. Na Europa durante a Grande Depressão, a produção industrial caiu muito de uma vez só, durante cerca de dois anos. Mas depois melhorou de forma contínua. Na nossa crise de agora, o início foi ainda pior. Como o gráfico mostra, a produção industrial caiu de um penhasco abaixo no primeiro ano da crise, a seguir ao quase-colapso financeiro de setembro de 2008. Mas as coisas melhoraram muito a seguir, e bem mais cedo do que na Grande Depressão. Não por acaso, foi na fase em que os governos da União Europeia enveredaram por políticas “keynesianas”, ou seja, quando se iniciaram grandes programas de investimento público para compensar a contração económica. A partir de 2011, porém, a recuperação parou. Os países mais fracos bateram na parede dos juros dívida e não puderam gastar mais. Os países mais fortes não deixaram que a União prolongasse as políticas keynesianas nos países onde elas tiveram de ser interrompidas. E a recuperação parou.

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E se a troika for ilegal? (2)

Se são os políticos dos estados-membros, reunidos numa instância comunitária, que mandam implementar políticas contrárias aos objetivos da União, falham na obrigação de proteger os cidadãos de previsões inerentemente incertas. Muito material novo desde que escrevi na semana passada sobre a incerta legalidade da troika. Só nos últimos dia contei: uma crónica do jurista José Assis (Público de sábado); uma interessante entrevista de Isabel Arriaga e Cunha à eurodeputada Elisa Ferreira (Público de domingo) e uma entrevista ao presidente da Associação de Industriais do Calçado, Fortunato Frederico, no Expresso de sábado. Pelo meio, tive oportunidade de debater com Amadeu Altafaj, porta-voz do comissário para os assuntos económicos, Olli Rehn. Com cada um podemos ilustrar uma faceta específica deste assunto em aberto.

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Às 11 do 11 do 11

No fim da IIª Guerra Mundial, Keynes lutou estrenuamente para que os países devedores pudessem suspender pagamentos a países que tenham excedentes. Os primeiros teriam um alívio num momento em que os outros não precisam imediatamente do dinheiro. Uma medida simples que funcionaria a contento de todos, e que ainda hoje permitiria a um país como Portugal respirar fundo para poder recuperar sem, no fundo, prejudicar ninguém. Se por acaso está a ler este jornal às onze da manhã, talvez não seja despropositado dedicar um minuto à reflexão de que há 95 anos cessou finalmente uma das mortandades mais estúpidas e inúteis (de entre todas as mortandades estúpidas e inúteis) da história da humanidade. Na madrugada do dia onze de novembro de 1918, numa carruagem de comboio, foi finalmente assinado o armistício entre as partes beligerantes da Iª Guerra Mundial. O acordo estipulava que as armas se calariam às onze horas da manhã do mesmo dia, o que de facto aconteceu. Só depois dessa hora as populações foram avisadas de que tinha acabado a guerra que as martirizava desde há pouco mais de quatro anos. O momento ficou na memória coletiva como “as 11 do 11 do 11” — as onze horas do dia 11 de novembro. E até há quem lhe acrescente ao conto um ponto de imaginação, dizendo que a paz chegou onze minutos depois, para dar o dia 11/11, às 11:11.

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E se a troika for ilegal?

Pode dizer-se que tudo é possível sob o poder mais forte, mas isso só é verdade quando o mais fraco consente. Peguemos no tratado da União Europeia, artigo 3, sobre os objetivos da União. O que vemos? Que entre os objetivos da União se encontra (além do mercado único, um espaço de livre-circulação e uma moeda comum) o pleno emprego e o progresso social, a promoção da justiça e da proteção sociais, a coesão económica, social e territorial e — prepare-se — a solidariedade entre os estados-membros. A questão é: isto é para levar a sério? A resposta é: sim. Estes objetivos servem de guias para as instituições da União e, em particular, para a Comissão Europeia, que tem obrigações especiais que a fazem ser conhecida como a “guardiã dos Tratados”. Mas não só: também o Banco Central Europeu, segundo o artigo 282, deve dar “apoio às políticas económicas gerais na União para contribuir para a realização dos objectivos desta”. Uma instituição ou agência da União não pode ter, para mais de forma continuada, uma ação contrária aos objetivos desta. E aqui chegamos ao ponto crucial.

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O guião, é lixo

Aconteceu um coisa interessante na semana passada. Paulo Portas apresentou o guião da reforma do estado e as primeiras reações foram as que seriam se o documento fosse sério — de oposição ou de concordância mas, no parlamento e nas televisões, levando o documento a sério. E enquanto isso acontecia, centenas ou milhares de cidadãos descarregavam o documento na rede e viam aquilo que os porta-vozes e os comentadores televisivos não tinham tido oportunidade de ver, nem tempo de ler. E o que viram e leram foi isto: estávamos perante o mais indigente documento jamais produzido pelo governo português. Uma coisa mal-parida que envergonha qualquer país civilizado. Quem tivesse uma experiência de dar aulas ou avaliar alunos em exames orais poderia ter desconfiado. Era nítido, ao ouvir Paulo Portas apresentar o famigerado guião, que ele reunia em si todos os tiques de um aluno completamente em branco no momento do exame: contemporiza, enche chouriço, diz uma coisa indiscutível, avisa que vai entrar no assunto, contemporiza, volta ao princípio, olha para o relógio, diz que não quer maçar ninguém com exemplos, etc. Ora, o documento em si não destoou dessa impressão, parecendo também o produto de uma sessão de escrita automática numa noitada movida a café, sem preparação nem pesquisa, e sem tempo para rever o resultado.

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Documentário Ulisses

Programa para o fim de semana: tire uma hora e pouco para ver o documentário Ulisses com amigos e família. Uma viagem pelos países a que chamaram PIGS, com o destino de resolver a crise e salvar a Europa. E podem partilhar! http://www.projetoulisses.net/p/documentario.html

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ULISSES documentário – Mudar a Europa a partir do Sul

A crise dividiu a Europa ao meio e inventou uma categoria de países a que chamaram um nome de animal: os PIIGS. Este documentário, que a revista Visão começa a divulgar a partir de amanhã, parte do episódio da Odisseia em que Ulisses teve de salvar os seus marinheiros que também tinham sido transformados em porcos pela feiticeira Circe. Daqui segue para uma viagem pelos “países Ulisses” (Grécia, Itália, Espanha e Portugal) para explicar como um projeto de recuperação económica assente na valorização das pessoas, do conhecimento e do território poderia permitir vencer a crise e salvar a Europa. “Ulisses”, realizado por Sílvia Pereira e produzido pela jovem e excelente equipa da Farol de Ideias, no Porto, explica-nos quais poderão ser os novos caminhos de valorização dos países da crise e como o contributo deles será indispensável para o projeto europeu. Com Projeto Ulisses.

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