É pois essencial, para todos os que assim acreditem, demonstrar publicamente que o problema do país não está na Constituição, nem no Tribunal Constitucional. É um apelo necessário: em época de crise, os tribunais podem ser das poucas instituições que conseguem compensar o fundamentalismo austeritário com uma defesa segura e constante da democracia e dos direitos humanos.

Segue-se uma história insólita, mas real. Há 24 horas, mais ou menos, recebi um funcionário da representação permanente de um país da Europa do Norte para tratar de um assunto relacionado com liberdades e estado de direito na União Europeia. No fim pediu para introduzir um assunto novo na nossa reunião, e começou a falar sobre a preocupação do seu país com a Constituição e o Tribunal Constitucional português.

Fiquei boquiaberto por dentro. Após duas ou três perguntas, fiz questão de lhe explicar que o que lhe tinham dito era mentira. A Constituição portuguesa não é “socialista”. O Tribunal Constitucional não é um “legislador negativo”. A Constituição pode ser extensa mas as sentenças do Tribunal basearam-se em princípios básicos, constantes de qualquer constituição. Reformas em Portugal que respeitem o estado de direito são sempre possíveis.

Finalmente, disse-lhe: o consenso sobre a Constituição portuguesa é o mais amplo de qualquer assunto no país, à exceção da seleção nacional, do bacalhau, e da mãezinha. Em termos políticos, não conheço outro maior. Contei-lhe do encontro dedefesa da Constituição que terá lugar amanhã na Aula Magna de Lisboa e expliquei como os seus promotores iam de umaponta da esquerda à outra da direita. Creio que entendeu — e espero que comunique aos seus superiores — que a pressão sobre a Constituição portuguesa só pode dar ricochete.

O que tenho pena de não ter chegado a dizer foi isto: a única minoria ativista em Portugal não é a do Tribunal Constitucional. É a de alguns fundamentalistas no governo, que não têm sequer a maioria dos seus partidos consigo, e que provavelmente lhe encomendaram o sermão. Neste ponto, isto já não pode ser coincidência. Portugal padece do bizarro caso de um governo que faz campanha no exterior contra a sua Constituição, atribuindo-lhe a impossibilidade de reformar o país.

***

Tal campanha, no entanto, não se destina apenas a mascarar a incompetência do governo. Ela encontra eco entre aqueles, aqui ou fora, que consideram que os direitos sociais são, de forma automática e incriminatória, “socialismo”. Depois de décadas em que estes direitos se viram crescentemente reconhecidos por constituições de todo o mundo, há uma vaga reacionária que aspira a revogar esse adquirido (frequentemente com ajuda de instituições como o FMI, na América Latina dos anos 80, na Europa de Leste dos anos 90, e agora conosco).

O mais pernicioso é o argumento de que, no fundo, os tribunais constitucionais interferem com o processo democrático, ao oporem-se por vezes a medidas de governos eleitos. Este argumento esquece quão frágil é a soberania de governos em momento de necessidade. E ignora quanto a maioria da população espera proteção por parte dos seus tribunais.

É pois essencial, para todos os que assim acreditem, demonstrar publicamente que o problema do país não está na Constituição, nem no Tribunal Constitucional. É um apelo necessário: em época de crise, os tribunais podem ser das poucas instituições que conseguem compensar o fundamentalismo austeritário com uma defesa segura e constante da democracia e dos direitos humanos.

Digamo-lo sonoramente, para que nos ouçam dentro e fora de fronteiras.

(Crónica publicada no jornal Público em 20 de Novembro de 2013)

2 thoughts to “Uma defesa essencial

  • Carlos

    “Digamo-lo sonoramente, para que nos ouçam dentro e fora de fronteiras.”
    Também sonoramente, temos que dizer onde é que se vai buscar o dinheiro. Se não é com o saque onde é mais fácil, então como é que é?
    Se a nacionalização da banca é ou não uma inevitabilidade…
    Se a saída do euro vai ser melhor ou pior…
    Se incomodar os detentores dos capitais, que são os que têm condições para investir na dinamização da economia, é caminho…
    Se dizer às pessoas que têm que ser os próprios a criar o seu posto de trabalho, e não só o seu, as assusta e afasta o seu voto…
    Quando se pretender apresentar uma proposta temos que dizer algo, sonoramente, sobre questões como estas. Se não o fazemos andamos em redor do essencial, remexendo no que é acessório sem resultados visíveis. Sem orientação, nem esperança.
    É claro que é necessário incomodar alguém. Aqueles que têm estado interessados na orientação que as coisas têm tido. Vai ter que ser. Mais ou menos tarde, mas vai ser inevitável.
    Carlos
    2013-11-28

  • Miguel

    Caro Rui, a constituição diz claramente: “…e de abrir caminho para uma sociedade socialista…”.

    – Fala ainda do dever do estado em assegurar o direito à habitação.
    – Pleno emprego (!)
    – Direito a educação e saúde
    – “Subordinação do poder económico ao poder político democrático”
    – intromissão do estado em sectores chave da economia
    – segurança social
    – proibido despedimentos sem justa causa

    Eu até apoio a maioria dos pontos, nomeadamente segurança social, educação e saúde gratuita, mas não deixam de ser socialistas.

    Mas quer saber quais são os maiores problemas da constituição? A falta de independência dos poderes. Os juízes do TC, CSM e Procuradoria são nomeados(quase todos) pela AR. Porque não começar uma revolução ao alegar a inconstitucionalidade da falta de separação de poderes? O bloco central (PSD PS) que tanto critica é apoiado pela procuradoria e TC, que não são independentes. É impossível pôr um político de topo em tribunal! Garanto-lhe que se fosse formado em direito e estivesse reformado sem nada para fazer fazia disso hobby.

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