Se são os políticos dos estados-membros, reunidos numa instância comunitária, que mandam implementar políticas contrárias aos objetivos da União, falham na obrigação de proteger os cidadãos de previsões inerentemente incertas.

Muito material novo desde que escrevi na semana passada sobre a incerta legalidade da troika. Só nos últimos dia contei: uma crónica do jurista José Assis (Público de sábado); uma interessante entrevista de Isabel Arriaga e Cunha à eurodeputada Elisa Ferreira (Público de domingo) e uma entrevista ao presidente da Associação de Industriais do Calçado, Fortunato Frederico, no Expresso de sábado. Pelo meio, tive oportunidade de debater com Amadeu Altafaj, porta-voz do comissário para os assuntos económicos, Olli Rehn. Com cada um podemos ilustrar uma faceta específica deste assunto em aberto.

José Assis debruça-se sobre a questão substancial de saber como podem instituições da União aplicar ou mandar aplicar políticas que vão diretamente contra objetivos da mesma União, como o “pleno emprego” e a coesão. Acrescentando que, seacaso essas medidas tiverem origem numa interpretação diversa dos tratados, essa interpretação deveria ser aplicada de forma igual em todos os estados-membros, o que não é manifestamente o caso. Ou seja, Assis levanta uma pergunta extra, também importante, sobre um possível desrespeito do princípio da igualdade dos estados-membros perante os tratados.

Elisa Ferreira foi desde o início, na comissão do Parlamento Europeu para os assuntos económicos (ECON), uma das proponentes mais ativas do inquérito parlamentar que se levantou às atividades da troika. Este inquérito tem tido até agora um enfoque mais técnico, investigando em particular as sucessivas falhas nas previsões económicas das instituições datroika.

Frederico Fortunato colocou uma questão que é de poder: se a troika for ilegal (ou não for inteiramente legal) porque temos de aceitar as suas condições? A resposta é: os países aceitam porque precisam do dinheiro. E essa é uma resposta simples, mas as suas implicações não o são de todo.

***

Para desenvolver, nada melhor do que o porta-voz da comissão, Amadeu Altafaj, cuja tese é a de que a troika é apenas um conjunto de técnicos que recolhem dados e os enviam ao eurogrupo, onde estão os ministros das finanças dos países do euro. São estes que, depois de consultados os seus governos ou parlamentos, aprovam ou não as próximas tranches financeiras aos países em crise. A troika, no fundo, parece que nunca existiu.

Esqueçamos por um momento que esta descrição corresponde pouco ao pânico que se experimenta nos países sob programa a cada nova avaliação da troika. O endosso de responsabilidades para o eurogrupo não melhora, apenas piora, as coisas. Se são os políticos dos estados-membros, reunidos numa instância comunitária, que mandam implementar políticas contrárias aos objetivos da União, falham na obrigação de proteger os cidadãos de previsões inerentemente incertas (antes as aplicando com uma fé cega) e, finalmente, baseiam as suas relações mais na força bruta da necessidade do que nos tratados que enquadram as suas obrigações recíprocas, estão então encontrados os culpados da mais gritante e reiterada injustiça social de que são alvo populações inteiras desde a unificação europeia.

Mas essa injustiça terá de ser corrigida. As políticas dos últimos anos provocaram um desastre social imenso. É altura de virar o jogo e obrigar os donos da troika a explicar o que andaram a fazer.

2 thoughts to “E se a troika for ilegal? (2)

  • Carlos

    Viva,

    Este é um ponto importante. E em tudo similar ao protesto dos signatários do Charter 77. Ambas as instituições prosseguem políticas contrárias aos compromissos estabelecidos.

    Por outro lado, se, como refere, as decisões são baseadas na força bruta, é bom recordar aquilo que Thomas Paine escreveu em “Common Sense”: se for permitido numa estrutura governativa – aqui no seu sentido mais lato possível – a existência de uma potência mais forte que os demais, esta acabará por governar; e apesar de outros poderem bloquear ou servirem de contrapoder, os seus esforços serão contraproducentes; no fim os interesses daquela acabarão sempre por triunfar.

    Ora, o triunfo dos interesses da parte mais forte será entendido, mais cedo ou mais tarde, pelos restantes como uma opressão. A sua manutenção na união tornar-se-á numa obrigatoriedade – a opção menos má. Estes deixarão de se percepcionar como participantes livres, apenas como participantes numa farsa. Por sua vez, a outra parte olhará com desprezo os mais fracos: um peso morto sem um pingo de gratidão.

    O que me assusta, olhando para a Europa, é confirmar-se a frase de John Milton: “Never can true reconcilement grow, where wounds of deadly hate have pierced so deep.”

    Abraço,

    Carlos

  • Carlos

    Eu sou o Carlos que em 12 de Novembro de 2013 comentou o artigo “Porque estamos bloqueados?”.
    Depois de ler o contributo de Carlos de 21 de Novembro, senti a necessidade de manifestar a minha fraca preocupação com a eventual ilegalidade da tróica.
    Decerto não alcanço a relevância da questão, mas não vejo grande utilidade prática nessa discussão jurídica, nem situo o problema como pertinente no quadro das prioridades, concordando que todos essas situações devem ser, obviamente, denunciadas e levadas por diante até onde for possível.
    O comentário do meu homónimo Carlos, que eu compreendia decerto melhor se fosse conhecedor dos títulos e autores que cita e se soubesse traduzir a citação que inclui em língua inglesa, parece explicar o que acontece quando se verifica “a existência de uma potência mais forte que os demais…” sem dar continuidade à questão da observância de legalidades, que quando chega o momento são escamoteadas, como se faz com a Constituição da República Portuguesa, digo eu.
    A ideia central das minhas prioridades já ficou escrita em 12 de Novº. As questões de fundo só se resolvem com mais democracia, organização e trabalho. O caminho terá que ser seguido apesar do estado e das instâncias europeias. Não desprezando a acção política deixo ao estado apenas o seu papel, não alinhando com a esperança que os avanços decisivos se devam aguardar do alto, do estado ou da Europa.
    É preciso uma organização que, dando o exemplo da prática da democracia interna, promova e dinamize a organização autónoma de homens livres, dinâmicos e generosos, para além dos contornos da sua própria estrutura organizativa e do seu próprio ideário.
    Abraço,
    Carlos

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