Monocultura

Não está em causa, como digo, a afeição que muito de nós temos pelos nossos clubes de futebol. O que está em causa é ter passado a ser natural quatro deputados da nação comentarem em exclusivo durante uma hora a atualidade desportiva, num programa de jornalismo não-desportivo, como se a instituição parlamentar não nos devesse também um pouco de consideração. Quando era miúdo fui a um treino de captação no meu Benfica e ainda me lembro das duas vezes que toquei na bola. Infiltrava-me no estádio, com o meu primo, para ver jogos de borla. A paixão estendia-se ao hóquei em patins e às idas ao velho pavilhão da Luz. Continuo a gostar muito de futebol, e a zombar de críticas pseudo-intelectualizadas ao futebol. Mas há limites para tudo. Precisamente porque gosto muito de futebol, evito judiciosamente ver programas sobre futebol. É uma manha pessoal e intransmissível, não uma prescrição para o coletivo. Se há pessoas que querem ver gente a falar sobre futebol, e televisões que transmitem horas seguidas desses debates, posso viver com isso. O problema é quando a coisa extravasa, e foi isso que aconteceu na semana passada.

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Um novo velho debate

Hoje que os estados são de novo realidades mais fluidas, o velho debate está a voltar. E a fazer as inevitáveis divisões: além de esquerda e direita, libertário e autoritário, há que saber: localista ou cosmopolita? Há quem acrescente à tradicional divisão da política em esquerda e direita uma segunda divisão: libertário ou autoritário. Teríamos assim uma esquerda libertária e uma esquerda autoritária, bem como uma direita libertária e uma direita autoritária — tese que se verifica em muita gente que a gente conhece. Os últimos anos levam-nos a acrescentar uma terceira distinção: localista ou cosmopolita. O localista pode vir em várias versões: nacionalista ou nativista, xenófobo ou patriótico, regionalista ou municipalista. Umas são mais simpáticas, outras mais desagradáveis. O cosmopolita também pode vir em várias versões: internacionalista ou europeísta, federalista ou globalista, multiculturalista ou altermundialista. Esta divisão, que muitas vezes depende de questões de gosto ou temperamento, ainda não está muito estabilizada. Assim sendo, ela percorre várias famílias políticas: para dar um exemplo não muito corrente, há ecologistas mais localistas (principalmente preocupados com a preservação de redes locais de abastecimento, por exemplo) e outros mais cosmopolitas, preocupados com a construção de movimentos contra o aquecimento global.

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Em comum

“Não basta, contudo, falar de entendimentos. Para nos entendermos teremos, primeiro, de nos libertar. Essa é talvez a lição mais interessante das eleições em Espanha, embora tenha passado despercebida. Mais do que assinalarem a vitória de um ou de outro partido, as eleições em Espanha marcaram o aparecimento de novas formas de fazer política, através de candidaturas de convergência construídas num modelo participativo, com primárias abertas para a escolha de candidatos e democracia deliberativa para a redação do programa.” Hoje no Público a crónica Em comum  .

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Por um país descomplexado

Há milhares de ideias difíceis e caras para o país; descomplexá-lo deveria ser fácil e barato. Infelizmente é a mais improvável para as nossas elites institucionais e políticas, que herdaram o país muito cedo e ainda não se reformaram. Toda a gente pode listar muitas razões pelas quais Portugal é um país acolhedor. Ser descomplexado não é uma delas. O nosso debate ortográfico não é descomplexado em relação ao Brasil, o nosso debate político não é descomplexado em relação à União Europeia — e por aí fora. É raro encontrar um Portugal descomplexado. Por acaso entrevi esse país na semana passada. Fui chamado em cima da hora para substituir alguém num debate que tinha apenas duas regras: eu tinha meia hora para falar do meu tema e poderia ser interrompido a qualquer momento, por qualquer pessoa. Assim evitavam-se os três tipos de debate típico no nosso país: a) aquele em que toda a gente diz aquilo que toda a gente já sabe; b) aquele em que toda a gente fala do que não sabe mas “acha”; c) o debate interminável (note-se que, por causa da alínea ‘c’, todos os debates em Portugal têm tempo para cumprir sempre com a alínea ‘a’ e a alínea ‘b’). A plateia era maioritariamente jovem, mas não só. O debate tinha sido organizado por mais do que uma organização:

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Jogos com fronteiras

“Há cem anos esperou-se que por quase todos os imperadores serem primos a Europa pudesse ter uma paz rápida. Não sucedeu. Agora que já não há imperadores, seremos talvez ainda uma família quezilenta, barulhenta e desentendida, com duas guerras às portas de casa. Não há grandes teorias da História que se possam tirar daqui. Saímos da Eurovisão com a mesma conclusão que se tirou dos encontros de família: lá passou mais um ano.” Para ler a crónica de hoje no jornal Público, clique em Jogos com fronteiras. 

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O grande reformador

Ele fez o que fazem os grandes reformadores. O país deu um pulo, tanto na investigação científica de ponta como na disseminação da cultura científica. Do edifício que temos de construir, ele cavou alicerces, levantou paredes e traves mestras. Esse edifício, é verdade, está hoje em risco, mas há uma geração inteira para o defender. Era um debate na esplanada da faculdade, aí por volta de 1993, e Mariano Gago era um dos convidados. Na altura o movimento anti-propinas era forte entre os estudantes mas contava com pouca solidariedade entre as gerações mais velhas, as que tinham a idade que hoje têm aqueles estudantes que encheram a esplanada para ouvir o físico e professor, então já bem conhecido pelo seu Manifesto para a Ciência em Portugal. Mariano Gago foi generoso ao aceder àquele debate e polido a responder às perguntas, mas não facilitava — ou seja, não se moldava ao auditório. Nós estávamos sedentos de que nos dissessem o que queríamos ouvir; ele concordava conosco em parte, e na outra parte obrigava-nos a pensar. Não fazíamos ideia de que ali estava o que viria a ser o governante mais importante para a nossa geração. Quando Guterres o nomeou Ministro da Ciência foi uma boa surpresa. E depois foi a revolução, uma revolução ao retardador de cujos efeitos só nos daremos completamente conta daqui a umas décadas.

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O estado do desastre

Por isso a resolução da história é de novo política. Se o governo grego puder governar, com a progressiva acalmia no euro e com uma economia que bateu no fundo, pode ser que as coisas melhorem. Esse é o medo da direita europeia — e também de uma parte da esquerda, que aposta na impossibilidade de governar à esquerda dentro da União. É altura para um ponto de situação na questão euro-helénica. Os leitores talvez estejam lembrados de que há cerca de mês e meio, na sequência de um acordo obtido no eurogrupo sobre a questão grega, deixei aqui escrito que a crise do euro começava a acabar. Apesar de todas as cautelas — a mais importante das quais era que isso não significava o fim da crise económica e social na Europa, muito menos o fim da crise política na União, que é a mais grave — era uma profecia arriscada.

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Portugal contemporâneo

Milagre é que, no meio do preconceito que temos conosco mesmos, haja quem queira viver de outra forma. Viver o seu tempo, vivê-lo todo, à sua maneira e até ao fim. É isso que entrevemos e nos impressiona naqueles grandes que perdemos agora. Parece inatingível. À altura a que obra deles chega, talvez seja mesmo. Morreram Herberto Helder, Manoel de Oliveira e José da Silva Lopes, três “grandes”, como lhes chamam. Em que sentido? Certamente no sentido em que seriam grandes em qualquer lugar do mundo, e não só em comparação com o lugar em que nasceram (como demonstração aduzem-se as referências que sobre eles saíram na imprensa estrangeira). Eu gostaria de propor uma outra dimensão explicativa. A grandeza, se existe, significa — para estes grandes ou para qualquer outra pessoa — que se viveu plenamente o seu tempo, em vez de se ter vivido meramente no seu tempo. Uma diferença subtil, mas que está lá: não apenas adverbial entre “plenamente” e “meramente”, que não passa de uma aposição nossa, mas substancial entre viver “no” tempo e viver “o” tempo, que é toda uma outra forma de entender o tudo que nós temos.

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Eficácia ma non troppo

A eficácia ou a competência são apenas prezáveis num quadro de princípios, valores e ideais. Dizer que se é eficaz na construção de uma escola não é, claramente, a mesma coisa que ser eficaz na condução de um massacre. Quando os fascistas chegaram ao poder em Itália, em 1922, um dos primeiros sucessos que proclamaram ao mundo foi o de terem conseguido com que os comboios passassem a andar a horas. Provavelmente no ano seguinte, em Portugal, o poeta Fernando Pessoa escrevinhou num papel as seguintes frases: «A obra principal do fascismo é o aperfeiçoamento e organização do sistema ferroviário. Os comboios agora andam bem e chegam sempre à tabela. Por exemplo, você vive em Milão; seu pai vive em Roma. Os fascistas matam seu pai mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro.» Os crimes da esquerda e da direita foram também, em muitos dos casos, crimes contra a esquerda e a direita — perpetrados por quem proclamava superar as distinções políticas, partidárias ou de opinião dentro da nação, do estado ou da classe.

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Estratégia em vez de tática

O momento é de responsabilidade histórica, e bem identificado num manifesto recente no qual pontificam cinco historiadores — António Borges Coelho, Cláudio Torres, Fernando Rosas, Luís Reis Torgal e Manuel Loff, por ordem alfabética — alguns deles politicamente ligados, ou próximos, ao PCP e do BE. Neste manifesto as coisas são postas com a crueza que têm: “as eleições estarão perdidas para todas as esquerdas se, depois de três anos de Troika, o nosso povo tiver pela frente trinta anos de empobrecimento”. Esta é a quinta premissa, e decisiva: ou fazemos algo para interromper a deriva ou cada vez menos teremos um país onde valha a pena viver. As próximas eleições legislativas não são umas eleições quaisquer. Nelas está em risco o adquirido democrático e social do nosso país. Permitam-me relembrar os traços essenciais deste argumento, embora ele já venha sido defendido há muito nesta crónica. Em primeiro lugar, veremos certamente nos próximos meses

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