Portugal é um problema político

Há quem ache que Portugal é um problema económico: se fôssemos mais ricos, seríamos mais cultos e informados e desenvolvidos. Há quem ache que Portugal é um problema administrativo: se as pessoas parassem de falar, falar, falar — e simplesmente arrumassem a casa — pois bem, a casa ficaria arrumada. Na semana passada assistimos à viragem pós-moderna da direita portuguesa: de repente, toda a gente era pela “ironia” de Manuela Ferreira Leite. Mas de forma pouco irónica — ou muito irónica? — esta interpretação vinha decretada com maus modos. Manuela Ferreira Leite “sugeriu a suspensão irónica da democracia, ponto final!” — e não se atrevam a duvidar. O filósofo Paulo Tunhas, no DN, resolveu filosoficamente a questão: quem ousasse comentar as interrogações de Ferreira Leite revelava simplesmente “estupidez”, e essa era a opinião mais “caridosa” que ele conseguia ter sobre tais pessoas. Temendo, pois, a caridade de Paulo Tunhas, não comentarei as decarações mais recentes de Manuela Ferreira Leite.

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Outlier: reconstrução de memória

Estou neste momento em trânsito e sem grandes hipóteses de dar uma resposta decente a este artigo de Pedro Magalhães (também aqui), a propósito da revisita que faço hoje a um documento da SEDES (de Julho passado) em que se escrevia sobre a “sombra das eleições”. O Pedro Magalhães não gostou da minha interpretação e, sob tíltulo de “Dissonância Cognitiva”, escreve assim: «Vem isto a propósito de um artigo de Rui Tavares hoje no Público (e dentro de dias, aqui). Nele, criticando a “falta de coragem democrática” com um dos principais problemas políticos de Portugal, recorre a um artigo que tinha escrito há meses sobre uma tomada de posição da SEDES, que Rui Tavares interpretou (e interpreta) como fazendo parte de uma “funesta tradição de gente que desconfia das eleições [ou da democracia]).” É muito curiosa esta leitura. A tomada de posição da SEDES, para aqueles que se recordam, analisava três áreas da governação: legislação laboral, saúde e educação. Depois de documentar várias medidas em cada uma dessas áreas que os signatários achavam dignas de aplauso, o documento mencionava sinais recentes e concretos de que o governo se preparava para mudar de políticas nalgumas dessas áreas para direcções mais incertas, e relacionava essa inflexão com a aproximação das eleições. E criticava essa inflexão, sugerindo inclusivamente que, ao contrário da interpretação habitual, a popularidade do governo poderia sofrer mais com essa inflexão do que com o caminho já percorrido: “exactamente no momento em que o Governo inicia uma aparente suspensão do processo das reformas, a opinião pública parece voltar-se contra ele. Coincidência ou causalidade, nunca saberemos, mas os sacrifícios feitos por todos não podem, nem devem, ser desperdiçados.” A leitura feita por Rui Tavares e muitos outros nessa altura – e, pelos vistos, ainda hoje – foi a de que tudo isto exprimia desconfiança em relação aos eleitores e à democracia. Mas foram raros os que fizeram a leitura que, à luz do que o documento realmente diz, seria a mais correcta: precisamente a leitura oposta.» Qual é a “leitura mais correcta” de um texto colectivo? Bem, os textos ainda têm uma hierarquia e aquilo que é mais importante neles é enfatizado pela localização dos argumentos e pelo ênfase que se lhes dá. Um texto que, na primeira coisa que diz, teme pelas consequências “visíveis” da “aproximação das eleições” dirige-se num certo sentido. Se a seguir diz que o governo faz “reformas que exigiram coragem política” nos primeiros anos e “dá agora sinais de preocupação com o calendário eleitoral em detrimento da administração do País”, dirige-se ainda mais nesse sentido, o de que as eleições e as reformas são antagónicas. Na altura escrevi que não se entendia se a SEDES estava disposta a levar este raciocínio até às últimas consequências, e que não parecia estar, porque o próprio pensamento da SEDES era deficiente de forma em relação a este assunto. Infelizmente, parecia ser uma extensão desse lugar comum de que as reformas são importantíssimas e a eleições atrapalham as reformas, o que não quer dizer (e repeti-o duas vezes) que chegue a ser um pensamento anti-democrático (e insisti “pelo contrário”) quer apenas dizer que é um pensamento pouco sofisticado sobre a democracia. O Pedro Magalhães vem agora chamar a atenção para um outro excerto do documento, que aparece numa fase de preparação para o remate, como uma espécie de aparte. Como veremos, é condicional e deliberadamente inconclusivo: «Não deixa de ser verdade que exactamente no momento em que o Governo inicia uma aparente suspensão do processo das reformas, a opinião pública parece voltar-se contra ele. Coincidência ou causalidade, nunca saberemos, mas os sacrifícios feitos por todos não podem, nem devem, ser desperdiçados.» É também um excerto caracteristicamente inteligente: traz a marca de Pedro Magalhães, que foi um dos signatários do documento. Por isso me dirijo agora a ti, caro Pedro. Pedro: vais desculpar-me, mas um excerto discreto no texto, que começa por um “não deixa de ser verdade”, hesita numa “aparente suspensão” e chega a um “nunca saberemos”, para terminar num momento de wishful thinking não é, não chega a ser, não tem direito a que agora o venhas a erigir em “leitura correcta do documento”. Podes dizer que esse excerto tenta (talvez, nunca viremos a saber, aparentemente) moderar o democepticismo do resto. É verdade, e aqui vem a parte mais interessante. A frase que citas como a leitura mais correcta é na verdade apenas um qualificativo do parágrafo anterior, que é o que abre a conclusão e usa a célebre expressão “a sombra das eleições”. Confirma-se na conclusão que a direcção que o texto trazia desde a primeira frase: a de que as eleições atrapalham as reformas. O texto começa por esta noção, reafirma-a na conclusão com uma metáfora intragável para quem tenha o mínimo de respeito pelo voto e pelas eleições (concordarás comigo?), e depois houve quem tentasse moderá-la com o desejo (se bem entendo) de que talvez a perda de popularidade se deva a moderação das reformas (mas enfim, nunca saberemos). É uma ideia interessante, mas a que o próprio documento nunca fez justiça nem deu força. Infelizmente para nós, o democepticismo de base nunca foi moderado por Campos e Cunha ou pela própria SEDES quando o documento foi emitido. O meu artigo em que comento o documento da SEDES extensamente (repostarei aqui mais tarde) é de Julho e nessa altura nem tu, nem Campos e Cunha, nem ninguém, se deu ao trabalho de repescar uma discreta e bem intencionada mas dubitativa frase para explicar que o documento não punha a sombra das eleições no inferno (talvez, nunca saberemos, no purgatório). Eu compreendo que quisesses que o documento da SEDES tivesse sido lido de outra forma. Seis meses depois não é demasiado tarde para tentar. Mas a SEDES não o escreveu de outra forma e nunca o contextualizou de outra forma (apenas tu agora o fizeste, num texto que revela mais de desejo do que interpretação fria do texto). Campos e Cunha participou em pelo menos um

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Domingo no Porto

Estarei na Comunidade de Leitores da almedina do Arrábidashopping, domingo às 17:00, para discutir o meu livro O Arquitecto.

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Nó de problemas, nó de soluções

  A cidade transforma qualquer coligação de minorias em gente que está junta no mesmo barco. Escrevi várias vezes que Obama ganhou as eleições com uma coligação de minorias (dos negros aos latinos aos jovens e aos brancos com formação universitária) que se tornou uma maioria plural. Mas há outra forma de olhar para o mesmo universo de pessoas e concluir têm uma coisa importante em comum: a maioria vive em cidades.   Isto não tem nada de surpreendente. Uma vez que a maior parte da população humana vive agora em cidades, não se pode pensar em ganhar eleições sem ganhar uma grande proporção destes votos.   Surpreendente é ver como o discurso político se dedica pouco aos problemas urbanos

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Desenho de informação

Teremos de rever e ampliar uma das grandes exigências políticas da sociedade civil nos últimos anos. Temos de concluir que a transparência não basta. Se for comprar uma máquina de lavar, o mais certo é encontrar junto ao aparelho um gráfico com notas simples, de A a G, obrigatórios segundo os regulamentos da União Europeia. Os electrodomésticos classe A são os mais eficientes na utilização de energia. Ninguém é obrigado a comprar o elecrodoméstico mais ecológico. Mas uma vez que é fácil saber de qual se trata, a maior parte das pessoas acaba por fazer uma escolha virtuosa. A União Europeia chama-lhe “certificação”. Eu chamo-lhe “desenho de informação”. Vamos supor que, para escolher a sua máquina de lavar, cada pessoa tinha de ler centenas de páginas sobre as peças utilizadas, conhecer a composição química dos materiais, etc.

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Fragmentos de uma multidão

Antes de passar à espécie de reportagem/ensaio que saiu no Público com este título, uma história que talvez tenha algum interesse.   Nas celebrações do Grant Park fiz esta foto. Reparem no rapaz de cabelo curto, no centro à direita. Quando mostrei a imagem a uma amiga, ela deu um pulo na cadeira, porque se tratava de um colega de universidade dela, apanhado ali por acaso no meio da multidão.   Passado alguns dias, já em Lisboa, recebi esta outra foto. Foi encontrada na máquina fotográfica do amigo da minha amiga, o tal que eu tinha fotografado por acaso. No centro da foto, descaído para a esquerda, estou eu. Ele e a namorada (que foi quem fez a foto) vieram de Tel Aviv, eu de Lisboa. Aparecemos nas fotos uns dos outros. Três pessoas entre talvez centenas de milhares delas. E agora o artigo. ***

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A maldição dos intelectuais

  Os intelectuais podem ser inteligentes mas isso não garante que sejam espertos. A lição que muitos teimam em não aprender é a seguinte: “nunca, mas mesmo nunca, bajular uma categoria de pessoas para aceder ao poder com elas e depois tentar influenciá-las”.   De cada vez que vejo Valentim Loureiro ou Luís Filipe Menezes insultar um “senhor de barbas” que conhecemos pelo nome de Pacheco Pereira, a minha memória viaja até ao fim do cavaquismo e projecta uma cena em que Pacheco Pereira foi o único orador a conseguir acalmar (e ser aclamado por) um congresso do PSD. O que aconteceu entretanto? A maldição dos intelectuais.   Nos idos de 1990, era Pacheco Pereira o único intelectual encartado do seu partido e usava essa qualidade para explicar que o PSD era feito de “self-made men” sem ideologia mas com um pragmatismo e genialidade próprios. Os “self-made men” ficaram maravilhados; amaram-no como ele os amava. Mais tarde, já com o partido na mão, perguntavam-se: “mas quem é este gajo de barbas e por que ainda está aqui a falar?”

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Dos comentários

Sabe que gosto muito de si Rui e é por isso o título “a cruel verdade” me suscita a pergunta: porque não retoma o tema, que o trazia tão entusiasmado na própria noite das eleições americanas a propósito do referendo na Califórnia, do casamento gay? Faço votos de que seja porque percebeu que se trata de tema irrelevante e mesmo ridículo, mas não deixaria de ser interessante vê-lo falar sobre uma desilusão neste contexto em que, lamento dizê-lo, está tão ilusionado sobre as vurtualidades da sua “grelha de análise da realidade”. Bem, eu nunca fiz previsões sobre o referendo na Califórnia e se tivesse feito era para o casamento gay perder. Para ser sincero, acho que perdeu por pouco. As pessoas esquecem-se que só se fala deste tema há menos de uma década, depois de milénios em que um homem casar com outro homem (principalmente isto) era a própria imagem do mundo ao contrário. O que disse na noite eleitoral na SIC-N quando fui o primeiro a declarar que Obama ia ganhar as eleições, ponto final, foi que faltava saber a dimensão da vitória no senado (pelo menos 57 senadores em 100) e os resultados na Califórnia, que não eram importantes do ponto de vista eleitoral mas como barómetro cultural nada irrelevante nem ridículo. Mantenho. Já agora, aproveito para dizer que sou contra o referendo neste caso. Estou à vontade, porque fui sempre a favor do referendo do aborto, apesar de isso ter dificultado a mudança no sentido em que eu pretendia (e muitos dos meus amigos de esquerda serem contra). A diferença está nisto. No caso do feto, há uma decisão a tomar sobre o estatuto de um terceiro, ou de um potencial terceiro, cuja configuração é ambígua por parte da sociedade. É parte da mãe? É um ser autónomo? Se sim, merece a protecção jurídica da sua existência? Creio que faz sentido entender o que a maioria das pessoas pensam sobre isto, e que isso se entende indirectamente através do referendo. Quanto ao casamento gay, não há tal ambiguidade. Trata-se de duas pessoas adultas e livres. A única razão para lhes negar o direito de casarem com quem amam é considerar que se tratam de cidadãos de segunda. Foi isso que ocorreu em tempos. Hoje vivemos nos resquícios desse tempo, mas sem qualquer sustentação legal, política ou científica que justifique tal posição. Pelo contrário, é aberrante a todos a ideia de que um gay seja um cidadão de segunda. Não sei então como poderemos ter as maiorias a decidir o que podem ou não fazer cidadãos na plena posse dos seus direitos que não prejudicam a liberdade de outrem. Não vou referendar o meu casamento, não vejo por que os meus concidadãos gay terão de passar por isso.

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A cruel verdade

Para ficar apenas em território nacional, a cruel verdade é esta: ficaria muito mal informado sobre o que se estava a passar nos EUA quem lesse em exclusivo Pacheco Pereira, Vasco Pulido Valente, Alberto Gonçalves, João Miranda ou ouvisse (por exemplo) Nuno Rogeiro. Por outro lado, ficaria bem informado quem lesse o João Rodrigues, o Carlos Santos, o Pedro Magalhães, o Pedro Sales, o João Galamba ou a Palmira Silva (há outros, claro, só não ponho o João Pinto e Castro porque ele apostou um jantar comigo no resultado das eleições e perdeu). Não precisam de acreditar em mim. Façam a experiência: em alguns casos ficarão a saber de factos e tendências que só semanas ou meses depois encontrarão na imprensa de referência estrangeira. Por outro lado, que apenas um destes nomes tenha pouso regular na imprensa nacional diz-nos muito sobre as razões da famosa crise dos jornais.

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