Há quem ache que Portugal é um problema económico: se fôssemos mais ricos, seríamos mais cultos e informados e desenvolvidos. Há quem ache que Portugal é um problema administrativo: se as pessoas parassem de falar, falar, falar — e simplesmente arrumassem a casa — pois bem, a casa ficaria arrumada.

Na semana passada assistimos à viragem pós-moderna da direita portuguesa: de repente, toda a gente era pela “ironia” de Manuela Ferreira Leite. Mas de forma pouco irónica — ou muito irónica? — esta interpretação vinha decretada com maus modos. Manuela Ferreira Leite “sugeriu a suspensão irónica da democracia, ponto final!” — e não se atrevam a duvidar. O filósofo Paulo Tunhas, no DN, resolveu filosoficamente a questão: quem ousasse comentar as interrogações de Ferreira Leite revelava simplesmente “estupidez”, e essa era a opinião mais “caridosa” que ele conseguia ter sobre tais pessoas.

Temendo, pois, a caridade de Paulo Tunhas, não comentarei as decarações mais recentes de Manuela Ferreira Leite. Não preciso.

Revisitarei antes um texto da SEDES — muito simpático para Manuela Ferreira Leite, — que saiu logo após ela chegar a líder do PSD. Na primeira linha escrevia-se, com toda a seriedade do mundo, que vinha aí “a sombra das eleições” que poria em risco “as reformas”. Na altura, comentei o documento da SEDES assim:

“Portugal tem uma funesta tradição de gente que desconfia das eleições [ou da democracia]. Chamemos-lhes democépticos. Não são forçosamente antidemocráticos, evidentemente, ou até pelo contrário. Simplesmente consideram que nada é mais prioritário do  que reformar o país segundo as reformas sempre urgentes do consenso técnico. Nada é mais importante do que reformar o país — nem mesmo o próprio país.”

Todos os dias vejo confirmações desta tradição democéptica. A semana passada não foi excepção.

***

Há quem ache que Portugal é um problema económico. É a doutrina que vai de Herman José a Vasco Pulido Valente: se fôssemos mais ricos, seríamos mais cultos e informados e desenvolvidos. Há quem ache que Portugal é um problema administrativo. É a doutrina que vai do “Homem” dos Gato Fedorento a Manuela Ferreira Leite: se as pessoas parassem de falar, falar, falar — e simplesmente arrumassem a casa — pois bem, a casa ficaria arrumada. E em seis meses! (Também há quem ache que o problema de Portugal é não ser a Inglaterra. É a doutrina que vai de João Pereira Coutinho a Rui Ramos — outro par de bobo da corte e pessoa muito séria, respectivamente — e simplesmente considera que se Portugal fosse a Inglaterra eles próprios seriam ingleses e toda a gente reconheceria o seu espírito e elegância inatos).

Mas Portugal é um problema político e, em particular, de cultura política. No último século tivemos mais «suspensão» da democracia do que democracia, e pelos vistos não deu tempo para arrumar a casa. Já em democracia, o maior partido da oposição queixa-se sempre da «ditadura da maioria absoluta» para nas eleições seguintes exigir logo uma maioria absoluta, sem a qual não poderá arrumar a casa — e ainda assim, a casa não fica arrumada. As nossas elites, por não terem realizações de monta, só se julgam elites se forem empurrando o povo para baixo — o que ajuda à desconfiança geral da democracia. Como sociedade nunca experimentámos deliberar em conjunto sobre nada, desde a localização do aeroporto à autonomia das escolas. Mas isto não é só um problema do «centrão»: os dois partidos mais à esquerda adoram ser oposição e nunca arriscam sujar-se no poder. Correr o risco de ouvir o povo sobre a Europa, enfim, é melhor nem falar. Correr qualquer risco já é mau.

Portugal é um problema político: chama-se falta de coragem democrática.

 

[do Público]

One thought to “Portugal é um problema político”

  • João Vasco

    «os dois partidos mais à esquerda adoram ser oposição e nunca arriscam sujar-se no poder.»

    Ah, pois é!

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