Antes de passar à espécie de reportagem/ensaio que saiu no Público com este título, uma história que talvez tenha algum interesse.

 

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Nas celebrações do Grant Park fiz esta foto. Reparem no rapaz de cabelo curto, no centro à direita. Quando mostrei a imagem a uma amiga, ela deu um pulo na cadeira, porque se tratava de um colega de universidade dela, apanhado ali por acaso no meio da multidão.

 

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Passado alguns dias, já em Lisboa, recebi esta outra foto. Foi encontrada na máquina fotográfica do amigo da minha amiga, o tal que eu tinha fotografado por acaso. No centro da foto, descaído para a esquerda, estou eu. Ele e a namorada (que foi quem fez a foto) vieram de Tel Aviv, eu de Lisboa. Aparecemos nas fotos uns dos outros. Três pessoas entre talvez centenas de milhares delas.

E agora o artigo.

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No dia em que Barack Obama foi eleito, centenas de milhares de pessoas reuniram-se no Grant Park de Chicago para celebrar e ouvir o discurso de aceitação do candidato que tinham apoiado. Quem estava no meio da multidão viu apenas o que se passou no canto do parque onde lhe calhou estar, no máximo com um campo de visão alargado até um círculo de algumas dezenas de metros em torno de si. É quase impossível descrever uma multidão; desta poderei dizer que era tranquilamente festiva. Quando o discurso terminou, por exemplo, debandaram imediatamente, como se tivessem despachado o assunto que ali as tinha levado. Mas isso diz-nos pouco sobre cada um dos pormenores que compunham a multidão.

Uma jovem mulher mostrava o cartaz que tinha feito à mão, e cujas palavras inciais diziam: “Viva a Democracia, Viva o Capitalismo. Hoje começamos a luta para acabar com o socialismo para os ricos, a corrupção e os lóbis”. Continuava por diversas linhas num tom semelhante, e a exuberância das expressões condizia com a exuberância do sorriso dela e com os pulos de felicidade que dava. Era uma das centenas de milhares de pessoas que ali estava e, como todas elas, tinha razões diferentes para ali estar, e essas razões poderiam até ser incompletas ou contraditórias entre si. Mas isso não é incorrecto; é simplesmente como as coisas são. Cada pessoa traz as suas próprias razões para uma candidatura e ninguém, nem sequer o próprio candidato, encontrará uma correspondência perfeita entre elas e o que se passa à sua volta.

Durante uma campanha eleitoral, principalmente uma longa e importante como foi este ano a dos Estados Unidos, criam-se dezenas de abstracções, generalizações e argumentos. São coisas que ajudam a lidar com as contradições individuais em grandes números, para facilitar o entendimento do que se está a passar, e que se transaccionam como moeda corrente entre jornais, blogues e comentadores televisivos. A sensação que tive, ao descer a avenida, foi que a multidão levava agora tudo isso como uma enxurrada. Todas essas coisas que tanto nos ocuparam estavam agora encerradas; os comentadores escreviam as últimas frases, como quem fecha assuntos numa caixa. Aquelas pessoas que iam descendo a avenida, — brancos e negros, asiáticos e latinos, velhos e jovens, estudantes e funcionários, — eram mais reais do que qualquer comentário.

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No dia seguinte, os jornais esgotaram rapidamente. Fizeram-se filas às primeiras horas para comprar todos os exemplares. Passado algumas horas, o Chicago Sun-Times, que trazia apenas uma foto de Obama com o título “Mr. President”, já era vendido emoldurado como um quadro. Era um sinal de que o jornal daquele dia já valia mais como recordação do que como notícia. E era o sinal também de que as pessoas já sabiam o que se dizia lá dentro. Sabiam-no porque o tinham vivido.

Nessas condições, o único título verdadeiramente surpreendente era o de um jornal satírico, The Onion, conhecido pelo seu humor discreto e inteligente. Numa paródia às análises políticas do momento, o artigo do The Onion dizia que os EUA tinham chegado a “um ponto tão terrível que estavam finalmente dispostos a tolerar um presidente negro”, e continuava, “há apenas oito anos, este momento seria impensável. Mas finalmente nós, enquanto país, percebemos que chegámos ao fundo do poço, e pela primeira vez votámos num candidato mais pelas suas propostas do que pela cor da sua pele”.

No seu absurdo, este paródia tocava num ponto crucial e que apenas há alguns meses era ainda sujeito a controvérsia: como o racismo se tornara quase irrelevante na decisão eleitoral. Isso mesmo fora confirmado por alguns especialistas em sondagens no estado do Indiana, que há décadas não votava num candidato democrata. Conta-se que ao perguntarem a certas pessoas do interior do estado em que iam votar, estas se referiam a Obama por um epíteto racial insultuoso, mas mesmo assim diziam que iriam votar nele. Obama acabou por ganhar no estado do Indiana, o que de certa forma confirma a tese satírica do The Onion: nas condições terríveis da economia americana, e com o colapso financeiro ainda nas memórias de todos, o racismo tinha-se tornado um luxo a que os eleitores — e em particular aqueles que uns meses antes estavam dados como perdidos para Obama — não podiam ceder.

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Enquanto as conversas na rua tinham por tema a festa da véspera, as análises na imprensa tinha passado já ao tema seguinte. A questão é agora saber quais serão os colaboradores que Obama irá escolher para a sua administração, e o que quer isso dizer em relação à política que ele irá desenvolver.

Por muito interessante que seja o tema, devo confessar que não vejo nele todo o significado que lhe é dado pelos jornalistas de bastidores. A relevância dos colaboradores é grande, certamente, para as políticas menores em que um presidente não se empenha tanto. Quanto às políticas cruciais, a importância dos colaboradores depende em grande medida do temperamento do presidente.

Para entender o que quero dizer, vale a pena fazer uma comparação com Bush. Segundo os relatos de gente que o viu de perto, o ainda presidente americano não tinha auto-confiança intelectual. O resultado desse seu traço de personalidade é duplo. Por um lado, Bush tinha tendência a sobrevalorizar o seu instinto, ou seja, a capacidade para tomar decisões sem ter de pensar nelas. Talvez ainda alguém se lembre que muitos dos seus defensores o elogiavam como possuindo uma “clareza moral” inata, o que ainda agravou a tendência de Bush para achar que, em geral, as opções que tomava estavam certas. O segundo efeito da sua falta de auto-confiança intelectual foi que as pessoas à sua volta começaram a evitar contrariá-lo, ou mostrar que sabiam mais do que ele, ou dar-lhe informação que o pudesse deixar vexado. Gradualmente, o presidente Bush foi ficando fechado num casulo que atingiu um grau máximo de opacidade a meio do seu mandato.

Um exemplo oposto é o de Franklin Delano Roosevelt. Dele disse Oliver Wendell Holmes, um juiz do Supremo Tribunal americano, que possuía “um intelecto de segunda categoria, mas um temperamento de primeira”. Sem ser um grande erudito ou intelectual, Roosevelt tinha a auto-confiança necessária para se rodear dos colaboradores mais inteligentes à sua disposição sem ficar intimidado por eles. Apesar de hoje ser tido como o presidente mais “à esquerda” que os EUA já tiveram, deve ser lembrado que ele tinha vários republicanos e conservadores na sua administração, assim como outros opositores internos a quem ia pedindo opiniões. A sua administração chegou mesmo a ser conhecida como uma “equipa de rivais” a quem o próprio Roosevelt servia para ir dando coerência política.

Obama é sem dúvida mais próximo do perfil de Roosevelt do que do de Bush. É um estudioso de história e da biografia dos presidentes americanos que são o seu modelo — Lincoln e o próprio Fraklin Roosevelt. Ao contrário de Bush, tem confiança intelectual suficiente para ter perto de si gente de opinião contrária. Se há característica notável nele é, aliás, a cerebralidade e estabilidade — até uma certa frieza — que demonstrou durante a campanha eleitoral. Foi isso que levou um colunista conservador que não votou por ele — Charles Krauthammer — a confessar que, ao contrário de Roosevelt, ele tinha mesmo “um intelecto de primeira categoria e um temperamento de primeira categoria também”.

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O que vem aí, porém, é mais importante do que as características pessoais do próximo presidente dos EUA. É a própria crise económica que terá de levar à reforma necessária. Pouca gente se lembra de que Roosevelt, quando foi eleito, não confiava nos programas de obras públicas que acabaram por ajudar os EUA a aguentarem a Grande Depressão — e a sair dela. Foi a própria situação que acabou por forçar Roosevelt à adopção das políticas por que viria a tornar-se conhecido. A situação actual forçará o novo presidente Obama a agir decisivamente, com uma certa dose de experimentação e outra de regresso às suas tradições políticas progressistas. É a crise, mais do que o temperamento de Obama, que vai protagonizar os próximos tempos.

O tempo em Chicago mudou. Sentado num café, observando todas estas pessoas que não conheço mas que passam por mim na rua, vejo-as prepararem-se para o Inverno que inegavelmente já vem aí. Um vento frio desceu do lago Michigan e fez cair a temperatura para um terço em apenas dois dias. Dentro em pouco começará a nevar. As coisas grandes mudam lentamente, mas os pormenores que revelam quando as olhamos de perto enchem-nas de uma extrema delicadeza. São assim as nuvens, as economias, as sociedades. Podemos não ver o clima mudar. De repente, ei-lo em cima de nós com uma tempestade perfeita. Marcamos como ponto de transição o momento em que nos demos conta disso. Depois a tempestade passa. Não conseguimos lembrar-nos dela toda; guardamos apenas um ou outro aspecto do que vimos.

4 thoughts to “Fragmentos de uma multidão

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