O homem contra o polvo

Sem quase ter visto o futebol, acabei por ver o Mundial um pouco à maneira deles. Desse ponto de vista, foi um bom Mundial. Vi este Mundial entre aeroportos e hotéis, jogos entrecortados e resultados sabidos por SMS. Na verdade, não vi este Mundial. Mas vi uma coisa que nunca tinha visto: o mundo a ver o Mundial. Por vezes, nem vi: ouvi. Numa tarde abafada em Bruxelas, ouvi gritos e aplausos sucessivos que vinham de uma praça ao lado do Parlamento, certamente a abarrotar de gente. “Deve estar a ser um jogo emocionante”, pensei. Era o Eslováquia-Itália. Confirmei pela Internet que esse jogo pareceu perdido para Itália, recuperado, renascido, perdido de novo. O Portugal-Coreia de Norte vi-o até aos 4-0, num intervalo para almoço. Alguém interrompeu uma reunião com o partido de oposição de Singapura para me dizer que o resultado tinha chegado aos sete. No dia seguinte, um trotskista dinamarquês cruzou-se comigo no corredor e disse-me: “Estou chocado convosco! Como puderam fazer isto aos camaradas norte-coreanos?” (para registo: era ironia; os trotskistas não gostam do regime de Kim Jong-il). Vi o Portugal-Brasil num carro do aeroporto (metade) e num hotel em Atenas (a segunda metade). Vi o Portugal-Espanha (só a segunda parte) num quarto de hotel em Washington, só, enquanto escrevia uma crónica sobre outro assunto. Ver o Mundial a ser visto nos EUA foi talvez o mais interessante.

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A fatia dourada

Quanto menor é o país maiores podem ser as ilusões. Um combate entre Portugal e Espanha por causa do Brasil — vá lá, entre uma empresa espanhola e uma empresa portuguesa por causa de uma empresa brasileira — anda à volta de uma expressão inglesa: a golden share, ação de uma empresa que vale mais do que o seu capital, porque detém o poder da guilhotina, do sim ou do não. Traduzida à letra, a golden share poderia ser a fatia dourada — se não me engano, o nome de uma iguaria. A utilização da golden share não tem muito que saber. Os defensores da infalibilidade do mercado costumam muito falar de “transparência”, mesmo em situações em que a complexidade artificial de um produto se destina a iludir, enganar, ocultar. Já a golden share do estado na PT é extraordinariamente simples: toda a gente sabia que existia e que detinha um poder de veto. Toda a gente que comprou ações da PT estava implicitamente informada da possibilidade de ela ser usada. Foi isso que aconteceu e — independentemente de outras considerações — ninguém se pode queixar de não ter contado com este cenário. Assunto encerrado.

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Uma derrota anunciada

Um bom zombie nunca morre à primeira. Em 2001, após o 11 de Setembro, a Administração Bush começou a pilhar em segredo os dados das transferências bancárias europeias. Fizeram-no através dos servidores do consórcio bancário SWIFT, que estavam em solo americano. E fizeram-no sem a mínima intenção de avisar os seus maiores amigos e aliados do que estava a acontecer. E teriam continuado a fazê-lo se não tivessem sido descobertos pela imprensa em 2006. Depois do escândalo, a SWIFT – Society for Worldwide Interbank Financial Transfers – acabou por mudar todos os seus servidores para solo europeu. Só que aí os EUA negociaram com o Conselho da União Europeia um acordo segundo o qual nós continuaríamos a ser pilhados, mas com o consentimento dos nossos governos e da Comissão Europeia. Que o deram, evidentemente, e às escondidas, 24 horas antes de entrar em vigor o Tratado de Lisboa. Só que aí matámos o zombie pela primeira vez.

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Atualizado: regulamento das bolsas já disponível

Caros amigos e leitores: O regulamento para as bolsas já está disponível e dá uma ideia bastante concreta de como se candidatar. Podem descarregá-lo aqui (ou em formato pdf aqui). O formulário é um pouco mais complicado tecnicamente (em particular porque prevê a possibilidade de se enviar todos os documentos digitalizados através de upload) e estará disponível no início da próxima semana. Mas entretanto, os interessados já podem ir verificando os requisitos necessários que se encontram listados aqui. Toda a informação sobre as bolsas irá sempre sendo atualizada em http://ruitavares.net/bolsas. Estas primeiras 48 horas foram um pouco atribuladas por uma boa razão. Eu estava numa delegação parlamentar a Washington — sobre um caso, PNR ou Passenger Name’s Records, de que ainda haverei de falar aqui — e remotamente as coisas ficam um pouco mais difíceis de acertar. Não teria sido possível fazer nada disto sem as ajudas da Cláudia Oliveira, João Macdonald, Gei Fernandes, Tiago Ivo Cruz e José Nuno Pereira — algumas das pessoas que trabalham comigo e com a delegação europeia do BE, em Bruxelas e Lisboa. São eles, aliás, que passam a ajudar na gestão deste blogue (em particular na aprovação dos comentários) uma vez que eu já há algum tempo que não consigo fazê-lo sozinho. A Vera Tavares tem dado desde o início uma ajuda preciosa na arte gráfica deste sítio. Um bom fim de semana a todos e, para quem não for candidatar-se, por favor ajudem a passar a palavra para ver se conseguimos projetos em qualidade, quantidade e variedade suficiente.

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Formulário e regulamento para as bolsas

Caros leitores, lamentamos, mas por questões técnicas não conseguimos inserir o formulário e o regulamento de candidatura às bolsas como prometido. Estes estarão disponíveis amanhã (02 de Julho) a seguir ao meio-dia. Pedimos desculpa pelo transtorno e agradecemos a compreensão de todos.

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A revolta da biblioteca

A Biblioteca Nacional vai encerrar-se durante quase um ano, deixando pendurados os investigadores — os quais, depois de ter deixado pendurado o cidadão comum seriam a sua exclusiva preocupação. Sabem o que deveria haver? Um campeonato do mundo para o país do mundo desenvolvido que trata pior a sua Biblioteca Nacional. Estou a ver Portugal ganhar isso de caras. A história da Biblioteca Nacional começa por aquilo que ela não é. Portugal deve ter das bibliotecas nacionais menos democráticas do mundo. Uma pessoa distraída poderia imaginar que a Biblioteca Nacional fosse um lugar aberto e disponível para qualquer cidadão. Não, não, não. Mariquices dessas são para a Biblioteca do Congresso dos EUA, onde qualquer um pode entrar, ou para o velho edifício da Biblioteca Britânica, onde os anónimos se podem sentar nas cadeiras de Darwin ou Marx e mexer nos livros à vontade. Por contraste, se o cidadão tentar inscrever-se como leitor da Biblioteca Nacional portuguesa, o primeiro obstáculo que terá de superar é um interrogatório bastante chato no qual tem de provar que precisa mesmo de consultar os fundos da Biblioteca Nacional. Onde noutros países basta querer, em Portugal é preciso ser autorizado. Isto passa-se porque a Biblioteca Nacional não tem capacidade para receber o público especializado e o público geral ao mesmo tempo. E houve um momento em que decidiu dedicar-se apenas aos investigadores (ou melhor, a uma relação abusiva e neurótica com os investigadores, mas já lá iremos) e em que, fiel à sua maneira de ser, não avisou a sociedade civil. Isso deixou o país na estúpida crença de que tem uma biblioteca pública — quando, de facto, não tem.

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regulamento e formulário

Tal como prometido amanhã a seguir ao meio-dia estarão disponíveis o regulamento e respectivo formulário de candidatura às bolsas. Esperem só mais um pouco.

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Crise!

A palavra crise perdeu metade do seu sentido. Crise deixou de ser um momento; passou a ser um estado. Atenas. — A palavra é grega; a sensação também. Para os gregos antigos, crise era um termo médico. Significado: crise era o momento na evolução de uma doença em que o doente poderia ficar muito pior, ou muito melhor. Para os médicos modernos da crise, que são os tecnocratas em Bruxelas, os governos de Sócrates a Papandreou, e os comentadores um pouco por todo o lado, a palavra crise perdeu metade do seu sentido. Agora quer apenas dizer o momento em que as coisas estão mal e vão ficar consistentemente pior. Crise deixou de ser um momento; passou a ser um estado. Visto de Portugal e da minha geração,

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Uma sinfonia de vuvuzelas

Quem quer cortar na despesa pública nunca se lembra de nos dizer como é que diminuirá a despesa privada. Há coisas que nunca vão pôr em risco a opinião de alguém. Uma delas: escrever que “é preciso cortar na despesa”. Posso escrevê-lo quando faz chuva, quando faz sol, quando faz vento e quando faz nevoeiro. Nunca parece mal, nunca parece pouco sério, é sucesso garantido. Em Portugal, então, deve haver um qualquer gene escondido que predispõe a nação para este discurso: nós portugueses nascemos sabendo que fizemos alguma coisa mal, apenas precisamos que alguém nos diga o que é e acreditaremos. Dizer que é preciso cortar na despesa tem até um efeito curioso. Isenta quem o disser de qualquer relação com a realidade, de qualquer preocupação com as consequências do que dizem, de qualquer necessidade de avaliar as circunstâncias e adaptar o discurso ao contexto. Diz-se que toda a gente tem de cortar nas despesas, e aplaudimos inclusive o corte nas despesas daqueles que nos compram coisas. Ao mesmo tempo, deseja-se que Portugal diminua as importações e aumente as exportações. Mas exportar para onde, se os outros cortam nas despesas?

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De A a Z

Saramago foi dos melhores escritores de sempre em pegar numa pequena ideia inicial, inverosímil, e desdobrá-la em palavras até construir um edifício à volta do leitor. Eu estava em Espanha, de férias com a minha irmã e a minha sobrinha. Elas foram para uma loja, eu entrei numa livraria. Estava folheando traduções de livros portugueses quando uma mulher de cabelos negros, falando num sotaque andaluz cerrado, me interpelou. Eu fiquei atrapalhado, pedi desculpa e voltei a inserir o volume que segurava na prateleira. Ela disse-me, “¿eres portugués?”, e prosseguiu numa algaraviada de que só entendi a palavra “saramago”. Perguntei “há mais livros do Saramago aqui, é isso?”. Ela desapareceu por detrás da estante, e voltou com o escritor José Saramago pela mão. Falámos durante três minutos, não mais. Eu tinha acabado de ler, nessa mesma tarde, O Ano da Morte de Ricardo Reis — e por isso buscara a tradução espanhola. Ele estava feliz; eu não me lembro do que ele disse. Ele brincava com Pilar del Rio — a mulher de cabelo negro —, inventava piadas, coisas para a fazer sorrir. Eles estavam apaixonados, eu tinha talvez quinze anos; inventei uma desculpa e fui embora. Eu não tinha palavras para conversar com Saramago e não tinha à-vontade para ficar ali boquiaberto a ouvi-lo. *** Uma das melhores passagens de Saramago encontrei-a por acaso num livro que li na faculdade, O Tempo das Catedrais, do historiador francês Georges Duby. É na abertura do livro; uma descrição panorâmica tão bem vertida em português que eu tive de ir à ficha técnica e descobrir: “mas quem foi o tradutor?” E lá dizia: tradução, José Saramago. Sem o Saramago que perdeu o emprego de jornalista e viveu de traduções, quando levava já quase meio século de vida, não teria havido o Saramago milagroso das décadas seguintes. Um escritor aprende muito traduzindo, ou até copiando à mão; aprende a cristalizar aquilo que observou. O solitário revisor de História do Cerco de Lisboa é pelo menos parcialmente a memória deste Saramago tradutor. Um escritor aprende muito lendo todo o género de coisas. Saramago gostava de literatura menor, gazetas antigas, sermões de Vieira ou ficção científica. Existe um livro de ficção científica chamado O Dia dos Trífidos que talvez Saramago tenha lido e no qual toda a gente acorda cega, menos um protagonista. Mas Saramago levou tão longe uma ideia semelhante que ao lê-lo nós sentíamos a “cegueira branca” e a angústia de tê-la. Ele foi dos melhores escritores de sempre em pegar numa pequena ideia inicial, inverosímil, e desdobrá-la em palavras até construir um edifício à volta do leitor. Um escritor aprende também muito nascendo e vivendo num país onde as elites são medíocres e mesquinhas, e cujas imaginações não aceitam que pode ter nascido um génio na Azinhaga, Ribatejo. Esta é uma história de que Alberto Caeiro gostaria. O Saramago da Azinhaga cresceu e a sua imaginação acabou por abarcar tudo de todas as maneiras. Padres barrocos e voadores, blimundas e baltasares, uma península que se desprende mar adentro, uma palavra mudada num livro, um poeta pela cidade em busca do poeta que o inventou, a cidade onde todos ficam cegos, um funcionário opaco numa conservatória do registo civil, um messias relutante e revoltado, um elefante em viagem, tudo. E mais polémicas, e indignações, e ideais, e o planeta e a humanidade e tudo. E depois ele mesmo, e um amor encontrado que nem na imaginação dele caberia, e uma mudança para uma ilha estranha, vulcânica. Nessa ilha construiu a sua casa, que com orgulho dizia ter sido feita apenas com as suas histórias, as suas ideias, as suas palavras. O Saramago da Azinhaga e o mundo que ele fez com vinte e poucas letras do alfabeto.

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