Quanto menor é o país maiores podem ser as ilusões.
Um combate entre Portugal e Espanha por causa do Brasil — vá lá, entre uma empresa espanhola e uma empresa portuguesa por causa de uma empresa brasileira — anda à volta de uma expressão inglesa: a golden share, ação de uma empresa que vale mais do que o seu capital, porque detém o poder da guilhotina, do sim ou do não. Traduzida à letra, a golden share poderia ser a fatia dourada — se não me engano, o nome de uma iguaria.
A utilização da golden share não tem muito que saber. Os defensores da infalibilidade do mercado costumam muito falar de “transparência”, mesmo em situações em que a complexidade artificial de um produto se destina a iludir, enganar, ocultar. Já a golden share do estado na PT é extraordinariamente simples: toda a gente sabia que existia e que detinha um poder de veto. Toda a gente que comprou ações da PT estava implicitamente informada da possibilidade de ela ser usada. Foi isso que aconteceu e — independentemente de outras considerações — ninguém se pode queixar de não ter contado com este cenário. Assunto encerrado.
Isso deixa muito espaço em crónica para um assunto que me interessa mais: o lugar do nacionalismo neste debate. Um colega espanhol abordou-me para demonstrar o seu espanto pela atitude do governo espanhol e deplorar o que lhe parecia ser o colonialismo lusitano. Em Espanha, país de grande soberba e vistas dominantes sobre o continente americano, surpreendem-se pelo que certamente consideram o devaneio do país seu vizinho. Se nos ouvissem falar sobre a posição de Portugal no mundo, julgariam que estamos loucos e diriam que somos demasiados pequenos para isso: um país pequeno tem localização no mundo, mas não mais. Felizmente, eles não estão atentos às nossas conversas. Não imaginam que quanto menor é o país maiores podem ser as ilusões.
Do outro lado do atlântico, há no Brasil muito antilusitanismo que se esforça por não nos querer. É comum ouvir suspirar que “se tivéssemos, nós brasileiros, sido colonizados por outro povo que não os portugueses…” (divirto-me sempre a completar: “…naturalmente, não seriam brasileiros”). Os ingleses, os holandeses, os franceses e até os espanhóis são muitas vezes os colonizadores retroativamente ansiados por brasileiros que, não querendo entender Portugal, terão sempre grande dificuldade em entender-se a si mesmos. Não sabem que mesmo as comparações, hoje na moda entre a elite brasileira, com a China e a Índia, não são originais: foram introduzidas na reflexão sobre o Brasil em pleno século XVIII, por portugueses como Luís da Cunha e luso-brasileiros como Alexandre de Gusmão. A propósito, duvido que José Sócrates saiba que este último foi seu antecessor, e muito menos que ele foi nascido em Santos, no litoral paulista. E quantos portugueses sabem que tiveram um Presidente nascido no Rio de Janeiro? Também deste lado, os devaneios sobre o Brasil são feitos de muita ignorância.
Tanta obsessão com o Brasil fez-nos distrair da visita de Cavaco Silva a Cabo Verde. Dos cinco discursos com que foi brindado, três citaram palavras ou o nome de José Saramago, o escritor cuja homenagem ele mesquinhamente evitou. Cabo Verde é o lugar onde podemos aprender quem fomos, quem somos e — se prestarmos atenção — talvez quem viremos a ser. Cabo Verde detém, modestamente como é seu hábito, uma fatia dourada da nossa consciência.
2 thoughts to “A fatia dourada”
Na ocasião das primeiras notícias sobre a citação de Saramago, achei que se tratava de um “castigo”, quiçá encomendado pelo próprio escritor (embora ninguém saiba se existe o “outro lado”, partamos por instantes do princípio que sim…)
(Como faço parte dos muitos que muito ignoram sobre o Brasil e a nossa História comum, e menos sei ainda sobre economias e políticas, não me pronuncio sobre o resto do post – mas vou daqui com mais conhecimentos, e matéria para reflexão – obrigada)
Nobre deputado. Brasileiro, de ferias em PT, li no Publicos sua cronica. Compactuo com sua nocao de que o Brasil eh, naquilo que ele tem de melhor, p.ex. enorme territorio coeso e unido em nacao e seu componente multiracial e multicultural, obra dos portugueses logico que me conjunto com os brasileiros que la habitavam. Ha mais para falar sobre isso, no que vejo nas minhas andancas pelo BR. Vi seus outros escritos no blog. Parabens pela mente aberta. Disponha do contato do modesto professor universitario em agrononmia no Brasil. Marcos Silveira Bernardes