A Biblioteca Nacional vai encerrar-se durante quase um ano, deixando pendurados os investigadores — os quais, depois de ter deixado pendurado o cidadão comum seriam a sua exclusiva preocupação.

Sabem o que deveria haver? Um campeonato do mundo para o país do mundo desenvolvido que trata pior a sua Biblioteca Nacional. Estou a ver Portugal ganhar isso de caras.

A história da Biblioteca Nacional começa por aquilo que ela não é. Portugal deve ter das bibliotecas nacionais menos democráticas do mundo. Uma pessoa distraída poderia imaginar que a Biblioteca Nacional fosse um lugar aberto e disponível para qualquer cidadão. Não, não, não. Mariquices dessas são para a Biblioteca do Congresso dos EUA, onde qualquer um pode entrar, ou para o velho edifício da Biblioteca Britânica, onde os anónimos se podem sentar nas cadeiras de Darwin ou Marx e mexer nos livros à vontade. Por contraste, se o cidadão tentar inscrever-se como leitor da Biblioteca Nacional portuguesa, o primeiro obstáculo que terá de superar é um interrogatório bastante chato no qual tem de provar que precisa mesmo de consultar os fundos da Biblioteca Nacional. Onde noutros países basta querer, em Portugal é preciso ser autorizado.

Isto passa-se porque a Biblioteca Nacional não tem capacidade para receber o público especializado e o público geral ao mesmo tempo. E houve um momento em que decidiu dedicar-se apenas aos investigadores (ou melhor, a uma relação abusiva e neurótica com os investigadores, mas já lá iremos) e em que, fiel à sua maneira de ser, não avisou a sociedade civil. Isso deixou o país na estúpida crença de que tem uma biblioteca pública — quando, de facto, não tem.

A primeira vítima dessa crença foi a Câmara Municipal de Lisboa, que se encostou aos mínimos necessários nesta área. A capital do país acumula assim extraordinárias honras, todas elas raras em países da OCDE. O rácio entre bibliotecas e habitantes da cidade é embaraçosamente baixo. A biblioteca principal da cidade não tem uma política de compras de bibliografia recente, em particular estrangeira. E, finalmente, Lisboa é única entre as cidades dignas desse nome ao não ter uma biblioteca pública em horário alargado. Sabem, uma daquelas em que o desempregado, o reformado, ou o caixa de supermercado podem ir consultar livros de informática ou línguas, ler jornais, navegar na internet, etc. — a qualquer hora? Não, claro que não. Se não temos, como sabemos que nos faz falta?

O equívoco entre Portugal e a Biblioteca começou em 1777, quando Dom José I emitiu um decreto que atribuía a ala ocidental da Praça do Comércio, à “Biblioteca Pública do Reino” (“pública”, notem bem). Era lá que ela fazia sentido, pois era nesse lugar que antes do terramoto tinha estado a fantástica biblioteca de Dom João V. E era no coração simbólico do país, onde até hoje os nossos políticos não sabem se querem pôr ministérios, hotéis de charme ou esplanadas, que o poder político de então queria ter os livros e a leitura. No século XVIII sabiam fazer as coisas: dar centralidade à “sociedade do conhecimento” significava pôr o conhecimento no centro da cidade e não tanto no centro dos discursos. Mas Dom José I morreu um mês depois.

E esse equívoco continua hoje, quando a Biblioteca Nacional — com uma antecedência de semanas — que vai encerrar-se durante quase um ano, deixando pendurados os investigadores — os quais, depois de ter deixado pendurado o cidadão comum seriam a sua exclusiva preocupação. As teses de mestrado ou doutoramento que ficam comprometidas, os projetos elaborados com anos de antecedência e já financiados, e os investigadores que vêm de todo o mundo para passar uns meses na BN que se lixem. Procurem no google.

10 thoughts to “A revolta da biblioteca

  • Maria Estácio

    Belíssimo. Acabei em gargalhada.
    É mt bom q denuncies estes atavismos profundos e ancestrais (absurdos,tão estúpidos quão fáceis de desmontar e mudar),q dariam em riso,n fora a tragédia disso. Para anteontem deviam ter sido.

    É importante estas rosas negras da realidade serem postas em luz(mesmo q negra).

    Tens uma finura de humor (mesmo q outros vejam grosseria) absolutamente arrazadora e libertariamente desconstrutora. Tendo e iluminando coisas e possibilidades de movimento ser e mudança.

  • Carlos

    É óbvio, que não se pode deixar que qualquer palerma entre na Biblioteca Nacional e ande por lá remexer nos livros e documentos valiosissímos que lá estão guardados…
    Conhecendo os comportamentos bruscos e pouco cuidadosos da maioría dos Portugueses, caso a Biblioteca Nacional fosse aberta ao publico o resultado seria desastroso… Assim os documentos ficam em segurança.

    E se está em obras é porque precisava de uma renovação.

    Só não percebo, é porque o Rui Tavares foi perder tempo a fazer uma cronica, de um assunto tão sem interesse e pouco importante como este.

    Já agora, agradecia que os meus comentários fossem aceites, é que eu so vejo comentarios de quem tem uma perspectiva igual à do Rui (o que acho muito bem), mas também gostaria de ver comentarios de quem pensa de forma diferente… Se não respeitam outras opiniões, nunca teremos uma sociedade plural, e voces nunca terão o minimo de respeitabilidade.

  • Uma Senhora de Idade Que Passou Por Aqui

    Apetecia-me deixar um comentário que exprimisse a minha frustração, decepção, revolta, desgosto por ser cidadã de um país onde tais coisas acontecem.
    Mas uma pessoa que ama os livros e o conhecimento fica completamente sem palavras perante tal enormidade.

  • Uma Senhora de Idade Que Passou Por Aqui

    Imaginemos, por absurdo, que a “Catedral da Luz” (ou de Alvalade, ou do «Dragom»):
    – passava(m) a ser reservada(s) apenas aos cientistas/estudiosos/especialistas do desporto em geral;
    – encerrava(m) por completo durante cerca de um ano.
    Calcule-se o que haveria de adeptos (justamente) indignados, manifestações, petições (quiçá, até, palavrões…); quantos programas de opinião e debate sobre o assunto haveria nas nossas TV’s? Quantas manchetes de jornais, entrevistas a todo o tipo de especialistas…
    Provavelmente rolaria até uma ou outra cabeça…
    Mas como se trata (só) de um dos maiores tesouros nacionais vivos, “no pasa nada”: autopsia-se a prestação da selecção no Mundial; opina-se sobre o (não-)negócio PT/Telefonica; fala-se vagamente de mais um contributo para a depressão (moral e económica) dos portugueses – o enésimo aumento de impostos sobre o cidadão comum.
    Livros? São (apenas) papéis pintados com tinta!…

  • Pedro

    “Conhecendo os comportamentos bruscos e pouco cuidadosos da maioría dos Portugueses, caso a Biblioteca Nacional fosse aberta ao publico o resultado seria desastroso… Assim os documentos ficam em segurança.”

    E é por causa de patetas destes que Portugal é o que é!
    Uma sociedade desigual, em que uns se acham melhores do que os outros.

    “Desastroso” Porquê? Já alguma vez foi a uma biblioteca pública? Se já sabe muito bem que o povo que lá vai não anda a estragar nada e, mesmo que o fizesse há multas para evitar esse tipo de problemas.

  • José Santos

    Como leitor e “amigo” da BNP apreciei o artigo sobre “A Revolta da Biblioteca” que se entende como a expressão da revolta dos seus frequentadores.
    Permito-me, já agora, acrescentar um pormenor que nunca vi referido antes. A BNP deve ser a única biblioteca pública em todo o mundo, cuja sala de leitura principal é sobrevoada na vertical e a poucas dezenas de metros de altitude, por um avião de 3 em 3 minutos.

  • Miguel Proença

    Se a lei de Boyle levanta dificuldades, não são nada em relação ao acesso à Biblioteca Nacional, uma verdadeira inquisição que só pode ser levada a sério face à versão de Mel Brookes ( the spanish inquisition …..). Por acaso tropecei no artigo e aproveito para o aplaudir a sério por coincidir com (pelo menos) uma experiência pessoal de acesso e ao mesmo tempo por espantar (para não dizer envergonhar), esta realidade da nossa biblioteca nacional, aquela que por 10 meses (dizem – não acredito) irá fechar ao público….

  • Isabel Alves

    Subscrevo o comentário sobre a BN e acrescento a minha própria experiência. Quando depositei na BN o Espólio Ernesto de Sousa em 1990, estava longe de pensar nas dificuldades que os investigadores enfrentam na sua consulta, e que têm vindo a piorar ano após ano. Acabo por prestar um serviço público, porque alguma coisa posso ceder a partir de casa e do site que organizei. Preocupa-me o futuro deste espólio (e doutros). É muito grave que o Dept. de Espólios da BN fique inacessível por 4 meses no próximo ano.

  • joao

    Caro Carlos,
    para que nos serve ter uma biblioteca nacional pública se não nos dão permissão para utilizá-la, quer se trate de um investigador, de um reformado, de um emigrante ou de um desempregado. esta privação durante um ano é semelhante, no meu entender, à privação de poder aceder à internet em Portugal durante um ano. imagine o que seria. claro que apelidariam o estado de pouco democrático, dictatorial. só não percebo é porque é que se perde tempo a criticar alguém que, no seu espaço, critica, e com razão,o encerramento de uma biblioteca NACIONAL. de que serve a “segurança” dos livros se não nos é permitido aceder aos mesmos. os livros são para folhear, para cheirar, para ler, para observar, para sentir, para investigar e para nos fazer pensar. e quem não pensa assim não merece as letras impressas. merece internet e traduções pouco seguras, ao contrário dessa tal”segurança” de que se fala…

  • Pedro Ferreira

    Mais um que escreve crónicas de escárnio e maldizer só porque é fácil e fica bem. Eu já vi o que foi feito a muitas e muitas obras que se encontram à guarda da BNP por muitos desses que deviam entrar na Biblioteca assim sem mais nem menos, só porque vamos fazer de conta que é democrático e também bonito. Veja-se lá que até na Biblioteca Britânica, coiso e tal. Que palavras bonitas. A prática são livros preciosos rasgados às vezes tão só para marcar uma página. Até estamos num país que é conhecido pelo seu imenso cívismo. Ah! Mas espera lá pode-se pagar uma Multa! Um livro com 300 anos, eu rasgo, mas está tudo bem, paguei a multazinha. A culpa deve ser dos aviões que passam de 3 em 3 minutos.

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