Três maneiras de falhar

O ocidente, incluindo nesta designação a União Europeia e os Estados Unidos da América, gasta cada vez mais dinheiro em serviços secretos, de informação e espionagem. Quanto, muitas vezes não se sabe; nos EUA, o montante dedicado a tais atividades é secreto por lei. Mas numa investigação feita pelo Washington Post, chegou-se à conclusão de que quase um milhão de pessoas trabalha na área. Na Europa, a acrescentar aos serviços nacionais, Bruxelas lá vai conquistando mais uma base de dados, mais competências para a Europol, mais uma “situation room” desde que seja “state of the art”. Nada se nega aos “secretos”: mais pessoal, mais meios, mais segredo.

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‘Com que critério?’

A política trata de tantas coisas diferentes que não é possível fazê-la sem um critério. Cada vez mais dou por mim a usar o seguinte: o que estou a fazer serve para mudar alguma coisa? Não é um critério universal — um político conservador não o subscreveria. Não é um dogma, antes algo que a experiência recente consolidou em mim. Não vale sozinho: não basta “mudar coisas”, mas fazê-lo na direção certa. É pessoal: para gerir o sistema, haverá certamente outros bem melhores, e também eu preferiria fazer outras coisas. E tem uma dimensão quase quotidiana: é aquilo que fica ao fim do dia.

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Egito: é difícil fazer melhor

Se eu fosse egípcio, teria acordado no sábado pensando: será que é verdade? aconteceu mesmo? o Mubarak já não é presidente? E depois, teria perguntado: e agora? o que vai acontecer? Não me teria lembrado disto: pegar numa vassoura e ir varrer as ruas. E foi isso que muitos egípcios fizeram.

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Quando não é bom ter razão

Não é bom ser desmentido por três ministérios ao mesmo tempo. Pior ainda? Ter razão. No início deste ano fui contactado para comentar uma notícia saída no DN que dava conta de um acordo assinado entre Portugal e os EUA para transferência de dados biográficos, biométricos e de ADN de cidadãos portugueses.

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O que interessa e não interessa em Estrasburgo

Estamos em semana de sessão plenária em Estrasburgo e comecei com uma intervenção pedindo a exclusão do debate referente a Cesare Battisti agendado para quinta-feira. Estes debates de quinta-feira são chamados de “debates de urgência” e tratam de assuntos prementes de violação de Direitos Humanos. São debates cruciais que antecedem votações importantíssimas do Parlamento Europeu, que daqui emite declarações em nome de todos os cidadãos sobre diversos tipos de abusos e catástrofes humanas. O problema é que o caso Battisti não é um caso de Direitos Humanos e rouba tempo que podia ser usado em assuntos verdadeiramente urgentes. Battisti é um italiano acusado pelos tribunais do seu país de actos terroristas nos anos 70, quando fazia parte dos Proletari Armati per il Comunismo. A acusação refere-se a vários assassinatos. (E deixem-me deixar bem claro que eu repudio qualquer tipo de violência política, da esquerda ou da direita.) Os outros problemas com o debate de quinta-feira sobre Battisti são maiores ainda porque ele está neste momento preso no Brasil, sem qualquer possibilidade de fuga; porque o Brasil está em férias judiciais; porque fazer uma resolução do PE sobre ele seria um insulto à recém-eleita Dilma Rousseff; porque este é um assunto bi-lateral entre o Brasil e a Itália e até o Conselho Europeu recusou uma proposta semelhante de Berlusconi. E, volto a dizer, é uma enorme perda de tempo, quando temos coisas muito mais importantes para tratar. Fiz hoje a intervenção, mas o Parlamento rejeitou em votação excluir o caso dos debates. Aqui fica o que eu disse: “Alguns colegas tomaram a iniciativa de colocar uma resolução urgente sobre a recusa do Brasil de extraditar Cesare Battisti para a Itália na agenda de debates desta semana. Eu entendo as suas intenções, mas este não é um caso de Direitos Humanos, não é um caso urgente e não é sequer uma violação da regra da jurisprudência. A sua oportunidade é também inapropriada, vinda num momento em que o Brasil enfrenta a pior catástrofe natural de sua história. Battisti está preso à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal e não há razão para acreditar que não haverá uma decisão judicial independente. E devo dizer que me solidarizo com as famílias das vítimas deste caso e que não tenho nenhuma simpatia por violência política, venha da esquerda ou da direita, e que abomino o terrorismo. O que devíamos estar a debater é a situação no Líbano, no sul do Sudão, o caso do prisioneiro de consciência indonésio Buchtar Tabuni ou o homem palestino assassinado em sua cama. Será que este Parlamento vai oferecer à Presidente Dilma Rousseff, na primeira vez após sua eleição, e por nenhuma boa razão formal, um tipo de debate que normalmente se reserva para pessoas como Robert Mugabe?”

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O original pecado de Helena Matos

Helena Matos tem um historial de, em citações e interpretações de textos de outros, nunca conseguir ser fidedigna. Mesmo assim, como é que mesmo ela consegue ler a seguinte passagem de uma entrevista minha e nela descortinar “cumplicidade” com alguns dos piores facínoras da esquerda. A passagem, nesta entrevista à Pública, é esta: «A família é a esquerda, o que quer dizer que quem é de esquerda é meu primo de uma maneira ou de outra. Isto foi muito mal entendido quando disse que é a mesma família do Sócrates. Eu sou de esquerda e ele é de centro-esquerda. Não tenho de gostar dos meus primos todos, há primos que fazem coisas muito erradas, há primos que defendem a Coreia do Norte. Não pago dívidas pelas dívidas dos meus primos, os erros dos meus primos são erros dos meus primos. Mas são pessoas que se reclamam da esquerda. Não posso dizer que só é da esquerda quem é como eu sou. As espécies: sociais-democratas, republicanos clássicos, mutualistas, libertários de esquerda, marxistas, não marxistas. E podem coexistir muitos bichos.»

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Um saco de mágoa

Se houver abuso de algum destes dados, não pensem que a lei americana nos protege, uma vez que o Privacy Act só protege cidadãos americanos e residentes nos EUA. Já não me lembro de há quanto tempo não escrevo uma crónica minimamente otimista. E, acreditem, isso não é melhor para mim do que para vocês. Mas se o otimismo se funda em saber que a sociedade tem recursos suficientes para superar os seus problemas, afunda-se quando vemos que passámos os últimos tempos a agravá-los. Três casos. 1. Dizer “isto é o regresso da censura” é, muitas vezes, uma hipérbole. Porém, o governo húngaro pretende implementar uma lei que é — e eu, por causa das coisas, quase nunca uso a expressão — o regresso da censura. Segundo esta lei a imprensa está sujeita a multas que vão até 700 mil euros — que terão de ser pagas antes de recurso aos tribunais, o suficiente para levar à falência a maioria dos títulos — por “falta de objetividade” ou “falta de equilíbrio” nos seus artigos. E quem decide o que é falta de equilíbrio? Uma comissão, nomeada por nove anos, cujos membros pertencem ao partido do governo. Em certos casos, esta comissão pode proibir programas ou ver artigos antes de publicação. É claro que um país com uma tal lei de imprensa não seria nunca admitido na União. Mas agora que está cá dentro, pode até presidir a ela, como é o caso da Hungria desde 1 de janeiro deste ano. 2. O ministro Rui Pereira negociou com os EUA um acordo para lhes ceder informações constantes dos nossos Bilhetes de Identidade, incluindo dados biométricos

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Um ínfimo Portugal?

Aquilo que dei por mim a pensar é que se “um imenso Portugal” é o outro nome para o Brasil, qual é então o outro nome de Portugal? Uma nação já de si tão inventada que sabe as suas falas de cor? Diz Evaldo Cabral de Mello que só os portugueses são mais piegas do que os brasileiros. A prova, assinala, encontra-se à vista em qualquer aeroporto: para cada brasileiro que viaja, há outros cinco que se despedem, chorando. Quem tiver visto a despedida de Lula da Silva e a tomada de posse de Dilma Rousseff sabe que é assim: Lula chorou, Dilma chorou, e o povo na esplanada dos ministérios chorou também. Eu não vi, mas sei que foi assim. Evaldo Cabral de Mello é um dos maiores historiadores de língua portuguesa, não só em profundidade como em abrangência. A erudição, nos seus livros, é uma filigrana resistente; por detrás está uma alma ágil de ensaísta. Brasileiro de Pernambuco, é o representante e herdeiro de uma geração de ouro de intelectuais a que está ligado até familiarmente — Gylberto Freire e Manuel Bandeira eram seus primos, e João Cabral de Mello Neto seu irmão. Em Portugal recebeu um prémio pelo livro A Fronda dos Mazombos, de 1995, mas nem por isso é muito conhecido. No Brasil a presença deste velho diplomata, que não andou pelos departamentos universitários, é também discreta. O livro de Evaldo Cabral de Mello para que eu gostaria de chamar a atenção hoje é uma coleção de trinta e seis artigos e ensaios sobre história e historiografia publicado em 2002. A editora é a 34, de São Paulo, mas creio que se encontra nas livrarias portuguesas. Francamente, se pelo menos um de vós decidir comprar e ler esse livro, a primeira crónica do ano está ganha. O título é Um Imenso Portugal,

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Dar tempo ao tempo

As pessoas que eu estudo também não tinham o tempo todo, também elas estavam sob o mesmo efeito do futuro, puxando-as para cima como um corpo cheio de ar à tona de água. Inexoravelmente, mês após mês, uma oportunidade só de cada vez. “Chegou maio de 1768”. “Chegou novembro de 1768”. “Chegou, finalmente, o dia 6 de junho de 1775”. “Veio o verão e passou o verão; chegou o Natal de 1775”. Estou escrevendo um livro que se passa entre 1768 e 1777. “Estou escrevendo” é uma forma de expressão — na verdade, há mais de dez anos que o faço. Como entre maio de 1768 e março de 1777 passaram quase dez anos, isso significa que já trabalho há mais tempo no livro do que o tempo que levaram a passar os acontecimentos que eu estudo. Já demorei mais tempo neste tempo do que o tempo que ele demorou consigo mesmo. Isto não tem nada de especial; é comum entre os historiadores das guerras napoleónicas, ou da Guerra Civil de Espanha que se leve décadas felizes estudando uns poucos anos infelizes. Os historiadores da Revolução Francesa podem dedicar a carreira inteira a mastigar o que aconteceu entre julho de 1789 e o termidor de 1794, meros e quase exatos cinco anos depois. Pelos meus pecados, porém, não tenho passados estes mais de dez anos inteiros olhando para aqueles quase dez anos que passaram há 230 anos. Só às vezes mergulho dois ou três dias — com sorte um pouco mais

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O ano em que a crise ganhou

Esta crise formou-se subterrânea desde a década de 1980, e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista. Nunca gostei da frase “a única coisa a temer é o próprio medo” que Roosevelt disse no seu discurso de investitura no mês de março de 1933, em plena Grande Depressão. Nunca gostei da frase porque a achava pirosa, o que é uma péssima mania; eu era novo e não queria admitir que uma boa parte das coisas verdadeiras e/ou importantes acabam por força sendo pirosas. O problema das pessoas novas é — mais do que não terem experiência — não terem imaginação para recriar mentalmente um momento em que uma frase destas possa ganhar todo o seu sentido. (O problema das pessoas velhas é igualmente falta de imaginação. Por experiência a mais ou a menos, a falta de imaginação é sempre um problema.) Pela mesma mania, nunca gostei de outra frase, desta vez dita por Lula quando perdeu uma eleição: “o medo ganhou à esperança”. Parecia-me, igualmente, uma frase pirosa. Mas acontece o medo ganhar à esperança, tal como acontece ficarmos tolhidos pelo próprio medo. Agora sei, porque o vi acontecer. Esta crise formou-se subterrânea desde a década de 1980, e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista: a única questão era saber se a queda ia ser dura ou suave. Quando, no verão de 2007, a bolha imobiliária americana deu os primeiros sinais de rebentar, ficámos à espera: agora íamos saber. Ainda assim, durante um ano inteiro esta crise foi observada em embrião por uma minoria de curiosos, enquanto ainda era teimosamente negada pelos poderosos, cuja frase de eleição era: “os fundamentos da economia são sólidos”. Ah, sim! Chegou setembro de 2008 e os alicerces da economia desmoronaram-se sob os nossos olhos. Uma série de falências em cadeia teria levado bancos e seguradoras para o buraco se as suas perdas não tivessem sido, no fundo, nacionalizadas. E quando se experimentou deixar cair um banco aparentemente dispensável — o Lehman Brothers — a economia mundial viu o abismo. A crise foi tão má como nas piores previsões. Logo no fim desse ano de 2008, apesar de tudo, a sociedade reagiu e, num primeiro combate, a crise apanhou um belo soco no olho. A eleição de Obama foi uma vitória da esperança contra o medo, a frase não deixa de ser pirosa, mas foi o que foi. E até achámos que estávamos preparados para fazer frente à crise. Não seria fácil mas conhecíamos o exemplo histórico da Grande Depressão, sabíamos o que estava em causa, tínhamos alguma ideia do que fazer e, sobretudo, os erros da ideologia dominante estavam identificados. Era cedo para cantar vitória; como num daqueles jogos de futebol em que uma equipa voluntariosa mas desorganizada marca um golo nos primeiros minutos, o resto do tempo tem sido passado a ver a vantagem fugir, primeiro, e uma derrota avolumar-se depois. Nos EUA, Obama passou este tempo todo com medo de tudo: da Fox News, do Tea Party, de ser acusado de ser “socialista”. Logo no início do mandato, recusou nacionalizar os bancos por parecer uma coisa “não-americana”. Roosevelt não teve medos desses quando, poucos dias depois de chegar à presidência, fechou todos os bancos por uns dias e reabriu apenas os que se revelaram sólidos. Na Europa, a influência do medo tem sido ainda mais penosa. Não é um medo-pânico, como talvez devesse ser, mas uma cobardia instintiva, feita de receio, mesquinhez e paralisia. Em 2010 instalou-se, e não se vê como vamos sacudir esta coisa de cima dos ombros. Sabemos como estas coisas continuam: com um enfraquecimento da cidadania, primeiro, e da democracia depois. Eu, apesar dos sinais, ainda me recuso a admitir que a democracia não seja mais forte. Mas pode ser que — tendo vivido em democracia desde os dois anos de idade — simplesmente me falte imaginação.

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