O barulho do contrato que se rompe

Que o novo contrato ia falhar ficou claro quando os estudantes começaram a ser empurrados para os empréstimos bancários. Foi o próprio estado, via Caixa Geral de Depósitos, o pioneiro na introdução das gerações mais jovens ao endividamento (lembrem-se disto quando vos disserem que o povo foi imprevidente no recurso ao crédito). Atenção: segue-se a temível frase “no meu tempo”. No meu tempo de Universidade, havia um contrato mais ou menos claro entre os estudantes, as famílias e o estado. Esse contrato partia do pressuposto de que o ensino era “gratuito”, ou seja, que não eram os alunos que pagavam directamente os salários aos professores, mas os seus pais através dos impostos. O corolário era simples: se estudares, entrarás no ensino superior, de preferência público, de preferência perto de onde moras. O estado pagará aos professores com os impostos dos teus pais, e os teus pais pagarão directamente as outras despesas com livros, alimentação e alojamento. Não era um contrato perfeito, mas era simples — e foi o que permitiu o acesso ao conhecimento por parte de uma geração de gente sem dinheiro na família. Nos anos 90 apareceu uma nova proposta de contrato.

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Uma nova simplicidade

há dois tipos de simplicidade. A simplicidade estúpida: o fascismo, a ditadura, a agressividade e a guerra. E a simplicidade inteligente: a democracia, a participação, o pluralismo e a cooperação pacífica. Ali por 1998 li um exuberante artigo anunciando a “Nova Economia”. A vulgarização da internet, ainda no início, iria mudar tudo: veríamos nascer novas formas de trabalho e de distribuição numa rede potencialmente infinita à escala global. Cada um dos nós dessa rede, defendia o autor, mudaria os pressupostos da velha economia. Não havia nenhuma razão para crer que os habituais ciclos de expansão e retracção se mantivessem neste novo mundo com novas regras. Estávamos à beira de uma economia de crescimento interminável; provavelmente, já tínhamos até entrado numa era sem recessões. Tudo bem: seria fácil escarnecer da ingenuidade hiperbólica deste artigo.

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O filho da antropóloga

O olhar de Obama é, primeiro instintivamente e depois cultivadamente, o olhar antropológico. Na mensagem que enviou aos iranianos pelo Nowruz — o ano novo persa — Barack Obama quis assinalar o que havia de comum entre os Irão e os EUA dizendo algo como isto: “vocês celebram esta festa da mesma maneira que nós fazemos com os nossos feriados, recebendo a família e os amigos, trocando presentes e histórias, e olhando para o futuro com um sentido de renovação”. Parece estupidamente simples, mesmo ingénuo.

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Memórias sem hábitos

Aqui temos principalmente uma memória colectiva fortíssima de uma catástrofe antiga que se poderá repetir, ou não, durante as nossas vidas. Essa memória não se apagou, nem apaga, mas não se converte em hábitos. Quando publiquei o “Pequeno Livro do Grande Terramoto”, recebi uma mensagem de uma portuguesa emigrada numa cidade japonesa, onde estudava a língua e literatura daquele país. Contava-me ela que, tal como os seus vizinhos japoneses, se habituara a ter sempre uma mala feita com os objectos essenciais e roupa escolhida de prontidão para o caso de haver um sismo durante a noite. Quando saía pela manhã tinha um especial cuidado em fechar a canalização do gás, para evitar explosões no caso de haver um sismo quando estava fora de casa. Ao fazê-lo, salvava vidas. Perguntava-me ela por que razão, sendo Lisboa a cidade de 1755, os portugueses não tinham o mesmo tipo de cuidados.

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Pragmatismo público

É a conclusão possível para a teoria segundo a qual todos os humanos são “agentes racionais no mercado”, pelos vistos com a excepção dos habitantes deste cantinho à beira-mar: os portugueses andam enganados. Notícias velhas: o eleitorado português virou à esquerda. Para quem estava desatento: o eleitorado está mais à esquerda do que os políticos. Uma sondagem recente da Visão diz que os portugueses dão preferência, por largas margens, aos serviços públicos nas seguintes áreas: câmaras municipais, segurança social, hospitais e centros de saúdes, escolas e universidades, recursos naturais. Em todas estes itens a maioria é de quase dois terços. Nos transportes públicos é de pouco mais de metade. E nos bancos, única área em que os resultados são mais renhidos, 43,8% contra 39,7% preferem os bancos públicos aos privados. Estes dados deixaram a direita desanimada e deprimida, repetindo aqui e ali ainda o queixume habitual.

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Tavares & Tavares

O erro de percurso do político preocupa-me menos do que o pecado contra a liberdade de expressão. Vindo do primeiro-ministro, este pecado acaba por infectar toda a cadeia de comando e degradar a qualidade da democracia que temos. Há coisa de um mês, o colunista do DN João Miguel Tavares escreveu uma crónica sobre a estratégia que José Sócrates utilizou para se referir ao Caso Freeport no Congresso do Partido Socialista. O título da crónica era “José Sócrates — o Cristo da Política Portuguesa” e a sua frase de abertura, que tem sido muito citada, era a seguinte: “Ver José Sócrates apelar à moral na política é tão convincente quanto a defesa da monogamia por parte de Cicciolina”. Sabe-se hoje que José Sócrates processou João Miguel Tavares por causa desta crónica. Há também informações de processos judiciais contra jornalistas do Público, mas vou ater-me aqui apenas a este caso. Em breves palavras terei de começar por dizer o que desejo para o caso Freeport.

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“Não vão longe”

Estão por isso errados todos aqueles que pensam que a solução passa apenas por dar um toque, aqui ou acolá, no desenho institucional da Europa. O grande problema da Europa é de democracia — de fundar ou refundar a futura democracia europeia — e, enquanto não resolvermos esse problema, dificilmente resolveremos qualquer dos muitos outros. Vamos imaginar que Durão Barroso era um líder político de visão, capaz de apresentar uma estratégia para dar a volta a esta crise e com ela conquistar a confiança dos cidadãos europeus. Sim, eu sei. É um esforço desumano para uma segunda-feira. Mas vamos ao menos imaginar que ele seria capaz de convencer os líderes europeus a assentarem numa estratégia coordenada e coerente, mesmo que não fosse a dele. Por outras palavras: que Durão Barroso não chegasse a ser um Barack Obama mas que ao menos conseguisse ser um Jacques Delors. Que tal?

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Homogéneo e desigual

O erro está em pensar que igualdade é homogeneidade, quando são coisas muito diferentes. Não por acaso, a obsessão com a homogeneidade é de direita (se pensarmos bem, é herdeira da obsessão religiosa com a pureza) e a obsessão com a igualdade é de esquerda. Consideremos os (mais ou menos) dez milhões de portugueses que vivem em Portugal. Agora vamos escolher os dois milhões mais pobres e mais ricos, cerca de um quinto da população para cada lado. Agora, adivinhem qual é a diferença de rendimentos entre uns e outros: os mais ricos são oito vezes mais ricos do que os mais pobres. O mesmo exercício repetido para a Espanha dá resultados diferentes: os mais ricos são apenas 5,6 vezes mais ricos que os mais pobres.

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A desigualdade

Desigualdade, segundo The Spirit Level Para ver os gráficos completos sobre desigualdade a que me refiro na crónica de hoje (fonte: Guardian) basta clicar na imagem acima. É um pdf largo que não cabe completamente aqui. Mas aproveito para deixar mais uma ou duas seleções da imagem. Clique nelas para aumentar. Japão e Suécia, Portugal e Espanha. Literacia mais alta para todos nos países mais iguais.

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A ironia do projeto europeu

Em plena Guerra Fria, o pensador e teólogo americano Reinhold Niebuhr escreveu um livrinho intitulado A Ironia da História Americana. Apesar de ser um texto curto em extensão e claro em estilo é quase impossível de resumir: em cada uma das suas páginas há muitas ideias e em cada uma dessas ideias muitos sentidos. Mas podemos dizer, sem receio de errar muito, que um dos seus principais objectivos é alertar contra o excesso de crença americana na sua própria virtude, que (ironicamente) poderia destruir o idealismo da própria herança americana. Ao lê-lo na era da globalização, e do lado de cá do Atlântico, é impossível não pensar no que seria um livro destes sobre a Europa, hoje.

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