A história não cessa

Há duas maneiras de lidar com a pressão cidadã por mais democracia. Uma é fechar os olhos ou menosprezá-la, considerando-a uma mera expressão de experimentalismo ou uma intromissão irritante na esfera dos auto-consagrados políticos experientes. Outra é entendê-la e fazer de forma a que ela se materialize preservando todos os outros valores do estado de direito e do sistema de direitos fundamentais. Graças a uma espécie de decisão coletiva tomada em Portugal no dia 1 de dezembro de 1640 — que, fiel ao seu estilo, o atual governo aboliu como feriado — nós portugueses não temos de nos preocupar com a encruzilhada em que a abdicação do rei Juan Carlos deixou os espanhóis: sucessão ou referendo? monarquia ou república?Não é isso que impede, porém, de compartilhar o entusiasmo com que os nossos vizinhos vivem estes dias. Há uns vinte anos, isto seria impensável: qualquer espanhol nos diria que a monarquia fazia parte do compromisso histórico que permitira o estabelecimento da democracia em Espanha e que era, por isso, intocável.O que sucedeu?

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E agora?

Nada disto é fácil, mas quanto mais tarde começarmos menos hipótese teremos de dar resposta a um país que está sequioso de alternativa. Um compromisso de progresso pelo país e pela Europa será um passo decisivo para constituir a frente progressista — social e política — que o levará a cabo. As eleições europeias deixaram claras três coisas. A primeira, que os cidadãos desejaram punir a governação atual e a sua estratégia acrítica perante as políticas europeias. A segunda, que os mesmos cidadãos não conseguiram endossar ainda uma alternativa clara que permita substituir a atual governação por uma alternativa plausível de progresso, justiça social e democracia europeia. A terceira, que há um notório cansaço com uma política feita nas cúpulas partidárias, distante dos cidadãos.

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Escolhas decisivas

À esquerda, em particular, cabe a missão crucial de se juntar para apresentar um caminho alternativo real para o país. Nos próximos dias começa a escrever-se uma página decisiva da história da União Europeia: ou o próximo presidente da Comissão será um dos candidatos apresentados aos europeus nas eleições para o Parlamento Europeu, ou será como até agora o resultado de negociações entre os governos, nos bastidores do Conselho. Como é tomada esta decisão — e por quem — é crucial para saber-se se a União Europeia terá ou não hipóteses de vir a ser uma democracia. O candidato ou candidata a presidente da Comissão Europeia é, segundo os tratados, indigitado pelo Conselho após interpretação dos resultados eleitorais. Mas não poderá entrar em funções sem o voto positivo dos parlamentares europeus. É portanto preciso que o novo parlamento europeu tenha a força necessária para ganhar este braço-de-ferro com o Conselho, a saber: que nunca aceitará um presidente da Comissão que não tenha sido candidato a esse cargo nestas eleições.

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A ditadura do mesmo

Portugal, hoje, é a ditadura do mesmo: os mesmos debates, os mesmos círculos, as mesmas opiniões e os mesmos partidos, fazendo as coisas sempre da mesma maneira, e coreografando as mesmas controvérsias com as mesmas palavras e o mesmo vazio de significado. Escrevo minutos depois de ter visto o primeiro debate entre os candidatos a presidente da Comissão Europeia. Um debate histórico. Falou-se de tudo o que é essencial para o nosso futuro: desemprego, eurobonds, troika, juventude, energia, Ucrânia, imigração, envelhecimento, pensões e salários. Pela primeira vez desde que o mundo é mundo, quatro candidatos ao executivo de uma União de países explicaram como pretendem governar se forem eleitos. E, no entanto, escrevo estas linhas com raiva. Porquê?

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O que está em jogo

O que está em jogo hoje é o mesmo: lutar pela democracia europeia agora, para não ter de lutar pela civilização daqui a pouco. Esta coluna ficará suspensa até à realização das próximas eleições europeias, pelo que a crónica de hoje e a de quarta serão as últimas até lá. Pensei então que deveria fazer um resumo do que está em jogo na Europa, hoje, e em Portugal, depois de amanhã, enquanto me despeço temporariamente. Quando digo “o que está em jogo” não é nas eleições; é no nosso tempo histórico. Independentemente da evolução económica e financeira, estamos a aproximar-nos da rutura política. Os últimos anos foram muito angustiantes, e continuam a sê-lo, porque raras vezes o debate público foi tão inadequado perante os desafios de um tempo histórico. Os termos dos argumentos estão mal postos: a questão não é “mais Europa” contra “menos Europa”, não é federalismo contra soberanismo, não é sequer sair do euro contra ficar nele.

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Do gelo às formigas

É difícil não ceder à tentação de pensar que, enquanto escrevia Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez não estivesse possuído de toda a sabedoria do mundo. Gabriel García Márquez escreveu vários livros excelentes — dos que li, O amor nos tempos de cólera, a novela Crónica de uma morte anunciada — e um livro incomparável, Cem anos de solidão. Sem esse livro, ele seria um grande escritor. Com esse livro, foi o autor de um dos melhores romances do século XX, talvez o melhor de todo o pós-guerra. A tal ponto que a pergunta é se ainda é possível escrever um romance daqueles.Para quem leu esse livro do gelo até às formigas (e quem o fez sabe do que falo) o que nele há de único é uma surpreendente segurança de linguagem desde as primeiras linhas. Como se o romance se encaminhasse para ser aquilo, e não pudesse ser outra coisa: a invenção de um mundo novo, palavra após palavra.

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Impulso jornalístico

Quando um jornalista pede desculpa por fazer jornalismo, está tudo dito. Deu-se ontem, na entrevista de José Gomes Ferreira a Pedro Passos Coelho, um momento de verdade suprema. Durante toda a tarde, em antecipação de uma conversa entre um enamorado pela austeridade e um apaixonado pela austeridade, tinham chovido propostas de perguntas de um a outro: “porque não foi mais longe?”, era a mais fácil de prever. E claro que apareceu.A realidade, porém, não só ultrapassou a imaginação como a atropelou e fugiu. No único momento em que José Gomes Ferreira se lembrou de insistir numa pergunta, Pedro Passos Coelho franziu o sobrolho e levou o jornalista a escusar-se: “desculpe, foi um impulso jornalístico”.Quando um jornalista pede desculpa por fazer jornalismo, está tudo dito. Um dia este governo conseguirá que os juízes peçam desculpa por fazer justiça, os pensionistas por estarem vivos e os desempregados por ainda não terem emigrado.De resto, foram vários os “impulsos jornalísticos” que foram suprimidos durante a entrevista. Da dívida e da sua reestruturação, nada se disse. As europeias foram mencionadas, como de costume, como uma mera paragem do autocarro político. Ideias para o futuro de Portugal na União Europeia, zero; para qualquer futuro que não passe pela austeridade, menos do que zero.

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As 59 palavras que mudaram Portugal

Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui! Salgueiro Maia, em Santarém, há quarenta anos.

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Os partidos

Agora que a democracia se começa a aproximar em anos da ditadura, a relutância dos nossos partidosem credibilizarem-se pela abertura é a nossa pior inimiga política. Há uns meses ouvi a historiadora Luísa Tiago de Oliveira resumir as teses do Congresso da Oposição Democrática de 1973, em Aveiro. O pormenor que mais chamou a minha atenção foi este: nas conclusões daquele encontro, a um ano do fim da ditadura, a existência de partidos políticos foi apenas mencionada uma vez, num parágrafo que também incluía cineclubes e sociedades recreativas. Mal nos damos conta, mas naqueles primeiros dias de abril de 1973 só havia verdadeiramente um partido assumido como tal no país, e estava ilegalizado: o Partido Comunista Português, fundado em 1921, ainda durante a Iª República. A União Nacional (que em 1970 mudara o seu nome para “Acção Nacional Popular”), fazia na prática o papel de partido único, mas descrevia-se como associação cívica. E só duas semanas depois do Congresso de Aveiro foi fundado o Partido Socialista, no exílio. Osrestantes partidos e seus sucessores que temos até hoje nasceram, quase todos, nos meses e anos logo após o 25 de abril de 1974.

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Nós não somos este escaravelho

Nós, os portugueses, não somos e não podemos ser o escaravelho de Ortobalagan. Não podemos ter perdido a capacidade de imaginar um outro país que não no fundo da gruta.  A cientista portuguesa Ana Sofia Reboleira descobriu, numa gruta de dois mil metros de profundidade situada na Abecássia, ali nas montanhas do Cáucaso junto ao Mar Negro, uma nova espécie de escaravelho que não tem asas nem olhos viáveis. Segundo informa o Diário de Notícias, trata-se de “um escaravelho carabídeo”, e foi pela sua “adaptação à vida sem luz e às condições inóspitas” naquela que é a gruta mais profunda do mundo, que perdeu as suas asas e os seus olhos deixaram de servir para ver. A Dra. Reboleira, que batizou o seu achado de Duvalius abyssinius, considera “provável que ele habite outras cavidades do vale glaciar de Ortobalagan”. Um dia um cientista português vai ganhar o Prémio Nobel. Já aconteceu uma vez com Egas Moniz e a lobotomia, o que nos deu a todos a duvidosa honra de sermos todos lobotomizados de nascença. Como é evidente, desejo uma carreira preenchida de sucessos à nossa brava cientista no Cáucaso, incluindo uma mão-cheia de prémios. O meu medo é que depois digam que nós portugueses somos como o escaravelho que ela descobriu, quase uma versão zoológica da Caverna de Platão,

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