Isto irá (Crónica de amanhã para o jornal Público)

Isto irá. Daqui a uma semana é 1º de maio. Ser-te-á prestada homenagem, quando já estivermos mais repostos. Os teus amigos farão outra coisa: festejarão o teu aniversário.  Há quinze dias a crónica não saiu. Não fui capaz de a escrever. Eu tinha sofrido uma grande perda e não quis receber uma avalanche de mensagens. Recebi apenas algumas. Uma delas era do Miguel Portas: “internado em Antuérpia”, dizia, desejava-me força naquele momento difícil. Nestas duas semanas, enviei-lhe duas mensagens, desejando-lhe força também, para os tratamentos. “Brigado”, respondeu ele, “isto irá”. Hoje a crónica sai, não sei se em condições para ser lida, peço desculpa por isso. É 25 de abril, e o Miguel Portas morreu ontem. É duro. Daqui a uma semana será 1º de maio. O dia de anos do Miguel Portas, data que o enchia de vaidade. Isto é mais do que duro. É cruel. Foi cruel morrer assim o Miguel Portas, tão dolorosamente. Mas ele não se zangou com a vida. Logo o Miguel, que tantas vezes na vida se zangou sem razão, não se zangou com a vida, mesmo quando teve toda a razão para isso. Mas ele só podia gostar muito da vida. Tanto que nunca acreditou que ela lhe pudesse fazer esta desfeita. Há mesmo pessoas em que o gostar muito da vida está na raiz de tudo. Isto irá, Miguel

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O Estado contra a solidariedade

A direita no poder quer que a sociedade se ocupe daquilo que o estado vai abandonando, mas apenas da forma que a própria direita deseja. Há uns tempos, Pedro Passos Coelho, na esteira do inglês David Cameron, ainda ensaiou uns discursos daquilo a que chamava a “big society”, ou seja, uma “sociedade grande” que substituísse o estado nas suas funções de combate à pobreza, solidariedade social e redistribuição de riqueza. Em nenhum dos casos a ideia era para levar muito a sério, mas antes de eleição os políticos neoliberais têm tendência a inventar umas coisas para não parecerem frios e impiedosos. Esta necessidade não é nova: quem tiver memória lembrará que em 2000 George W. Bush foi eleito com uma campanha em torno do “conservadorismo compassivo”. Após a conveniência eleitoral, estas etiquetas voltam a ser guardadas, provavelmente na mesma pasta dos marqueteiros políticos de onde saíram. Lembrei-me disto ao ver, na semana passada, as notícias sobre o despejo da Escola da Fontinha, no Porto. Como é sabido, a Escola da Fontinha era um espaço abandonado e degradado que foi ocupado, recuperado e dinamizado por um grupo de jovens, com apoio dos habitantes do bairro vizinho, que lá faziam desde aulas de recuperação a atividades artísticas. Não só a escola era abandonada como o bairro era também pobre e esquecido pelo Estado; a singularidade do projeto da Escola da Fontinha foi achar que uma escola abandonada poderia continuar a ser um local de aprendizagem para todos os envolvidos

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Há uma nova esquerda

A moleza, em época de crise, é tóxica. A inconsequência, em época de crise, é uma irresponsabilidade. A esquerda que não se revê na moleza nem na inconsequência precisa de uma infusão de esperança. Uma vez fui a uma coisa chamada “Fórum de São Paulo”, que reúne as esquerdas da América Latina. Ouvi lá das melhores análises sobre a crise económica, curiosamente da autoria de políticos peruanos. Os brasileiros do Partido dos Trabalhadores eram pretendidos por toda a gente e, se é injusto dizer que tinham o rei na barriga, tinham pelo menos o Presidente Lula. Outros partidos tinham um discurso mais datado e simplista.A certa altura houve uma espécie de comício do Partido Comunista Cubano a que assisti por curiosidade. De repente ouço uma voz perguntar-me, num tom irónico e num castelhano de sotaque francês: “¿entonces, compañero, no aplaudes a los comunistas cubanos?” Era Jean-Luc Mélenchon, que agora é a grande surpresa nas eleições presidenciais francesas. Já tínhamos conversado muito nos dois dias anteriores e ele sabia muito bem que eu não aplaudiria o Partido Comunista Cubano, muito pelo contrário. Ficámos amigos desde esse tempo. Mélenchon sentava-se umas filas antes de mim no Parlamento Europeu.

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Datas, somente datas

Isto não são datas, somente datas. São memórias de como a história às vezes nos foge descontrolada. O que me interessa no naufrágio do Titanic é o que aconteceu depois. Quando os passageiros embarcaram no grande paquete transatlântico, há pouco mais de cem anos, ainda havia um mundo, o da Europa Imperial, com mais do que apenas vestígios de Antigo Regime, e todo um otimismo industrial-colonialista para supostamente o levar à glória. Em 1912 havia um Império Austro-Húngaro; havia um Império Otomano; havia um czar na Rússia; havia um Império Alemão que era o herdeiro da Prússia Imperial. E não é só que “havia” este ou aquele império. Parecia que sempre tinham estado ali (embora não fosse verdade) e que ali continuavam para durar. Na verdade, todo esse mundo estava à beira da falésia sem o imaginar. As ideias que o sustentavam tinham se esboroado já. O que não quer dizer que

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Três sílabas apenas

Depois de ter decidido acabar com o TGV, o governo de Pedro Passos Coelho anunciou que iria ser construída uma linha de alta velocidade para mercadorias, ligando Sines a Badajoz. Poucos dias bastaram para se descobrir que não haveria nada do outro lado da fronteira para levar os produtos portugueses até aos mercados europeus. Depois de ter decidido que o Partido Socialista iria votar a favor do novo tratado do “bloco orçamental” (a razão: porque sim), António José Seguro anunciou a invenção de um “tratado complementar” sobre crescimento e emprego, a ser adotado pressurosamente pelos chefes de 25 países europeus para que sossegar no Largo do Rato as consciências dos socialistas portugueses. Que hipóteses tem isto de acontecer?

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Um tratado inconstitucional?

Demorámos 60 anos a fazer a União, e este tratado começa a desfazê-la. Em dezembro passado os chefes da União Europeia reuniram-se prometendo uma solução “abrangente e definitiva para a crise”. Em vez disso, saíram da reunião de madrugada, sem o governo do Reino Unido, e prometendo um novo tratado que, alegadamente por essa razão, teria de ser feito fora da União Europeia. Meses depois, nada está bem explicado nesse novo tratado. Em Portugal, nem sequer o nome. Mesmo assim, a Assembleia da República prepara-se para o aprovar à pressa, sem provavelmente se dar conta de todas as consequências desse gesto, que podem ser muito graves

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O feudalismo na política portuguesa

A questão nem é de lei. É de cultura: é da naturalidade com que cada um for capaz de olhar o autoritarismo nos olhos e seguir tranquilamente o seu caminho. Por isso, o meu obrigado de cidadão a Ribeiro e Castro e a Isabel Moreira. Ai a liberdade é uma coisa tão desagradável. Tão difícil de aceitar. É uma coisa até “inexplicável”, para usar as palavras do Presidente da Mesa do Conselho Nacional do CDS-PP ao comentar o voto de Ribeiro e Castro contra a extinção do feriado da Independência, o 1º de Dezembro. Como diz o senhor Presidente António Pires de Lima, “o partido dispensa clivagens neste momento” (e não as dispensam sempre os partidos em Portugal?) e um ato de independência é “grave, grave para a coesão do partido”, valor pelos vistos superior à Independência com maiúscula simbólica e nacional, porque o que “é importante” é que o partido possa “continuar a crescer, apesar de um erro individual de um  deputado, que tinha e tem responsabilidades muito grandes enquanto representante  do partido na Assembleia da República”. Não, não e renão! Não foi um “erro individual” de um deputado: foi uma atitude consciente de Ribeiro e Castro, que explicou considerar que ninguém tinha mandato eleitoral para extinguir o 1º de Dezembro.

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