De onde vem o poder?

Ele termina o seu discurso elevando a voz e sincopando as últimas palavras e, depois, — silêncio. Acontece nada. Volta e meia, vem-me esta imagem à cabeça: um primeiro-ministro, jovem, bem-falante, elegante e poderoso, fazendo um discurso no parlamento do seu país. Os gestos são estudados, mas adquiriram com o tempo uma certa naturalidade — o que significa que estamos perante um político muito profissional, que sabe distinguir-se da massa dos políticos meramente profissionais. As palavras saem bem articuladas, as frases aparecem moduladas, os parágrafos terminam enfáticos — e tudo isto aparece como se fosse convicção. Ele é um político de sucesso e sabe que o é. Tem o partido e o país na mão, graças a uma fórmula que foi afinando ao longo da vida, combinando carisma, oratória e sobretudo lealdades disciplinadas. Ele termina o seu discurso elevando a voz e sincopando as últimas palavras e, depois, — silêncio. Acontece nada. Na plateia ninguém aplaude. Não apenas a oposição, que não aplaude, mas também não apupa, não vaia, não protesta — nada. Mas acima de tudo a maioria, o partido de governo, com os fiéis correligionários do chefe, não levanta as mãos para o aplaudir. A única coisa que se segue ao discurso do chefe é silêncio, e a seguir a esse silêncio, mais silêncio. No meu sonho não ficam claras as razões para este fenómeno. Talvez se tenham distraído todos. Talvez se tenham aborrecido. Talvez cada um dos seguidores do chefe tenha achado que, naquele dia, se poderia dar ao luxo de não aplaudir porque certamente todos os seus colegas o fariam. Talvez, sem sequer considerar o fundo e a forma do discurso, tenham sentido que aplaudir era apenas uma obrigação de trabalho, como picar o ponto, ou de cortesia — e, de repente, não lhes tenha apetecido fazê-lo, como quem decide ligar para o emprego e inventar uma doença para ficar o dia de pijama. E agora já é tarde. Ninguém bateu palmas e o silêncio durou já uma semibreve a mais, e agora ninguém se atreve a ser o primeiro, nem consegue aliás levantar os braços, porque estão todos hipnotizados pelo sucedido. O que acontece de imediato não sei.

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Ilha do Natal

Até àquele dia já tinham morrido oito, abatidos a conta-gotas. Se isto não é uma urgência, não sei que seja. Christmas Island, ou Ilha do Natal, é um território governado pela Austrália mas localizado a apenas quinhentos quilómetros da Indonésia. Na madrugada de quarta-feira um barco com talvez uma centena de refugiados — tecnicamente, “requerentes de asilo” — nafragou ali, despenhando-se contra os rochedos. Morreram cerca de 30 pessoas, entre elas uma dezena de crianças, na maioria de origem iraquiana. Conheci gente desta nos campos de refugiados da Síria do Norte e nos arrabaldes de Damasco. Não podem voltar a casa nem ficar onde estão. Alguns são advogados ou engenheiros; perguntam-nos se achamos que emigrariam voluntariamente para ser taxistas ou faxineiras noutro país. Muitos são cristãos; a absurda “guerra de civilizações” feita para defender “os valores ocidentais” tornou-lhes impossível a vida numa terra onde as suas comunidades perduraram milénios. Praticamente todos correram risco de vida nas suas cidades e voltaram a corrê-lo para fugir. Outros desesperaram nos campos e voltaram a arriscar. Devem ter pensado que chegariam a uma vida nova antes do fim do ano. É hábito em Estrasburgo que permaneçam reunidos, no fim das sessões do Parlamento Europeu, deputados em trabalho sobre direitos humanos. Chama-se a isto as “urgências”. Na última sessão do ano ali ficámos, sessenta e poucos boiando num hemiciclo para mais de setecentos, rodeados de neve por todos os lados. Nas montanhas da península egípcia do Sinai, cerca de 250 refugiados oriundos da Eritreia estão reféns de traficantes de seres humanos que lhes exigem resgates elevados. O governo egípcio primeiro negou que fosse verdade e depois disse que ia ver o que se passava; está agora a pensar fazer qualquer coisa. Enquanto isso, os traficantes vão violando as mulheres e executando os homens. Até àquele dia já tinham morrido oito, abatidos a conta-gotas. Se isto não é uma urgência, não sei que seja.

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Tavares contra Tavares

Diria o falecido senador Moynihan que Miguel Sousa Tavares tem direito à sua opinião — mas não tem direito a factos só para ele. Miguel Sousa Tavares é um homem muito corajoso, como todos sabemos — porque ele não se cansa de no-lo repetir. Estranhei por isso vê-lo utilizar, na sua última crónica do Expresso, o bom velho truque do toca-e-foge. Consiste essa manha em aludir a alguém, não identificando, o que permite inventar o que o outro escreveu e depois escapar a uma réplica. É assim que me vejo transformado em “um deputado do Bloco de Esquerda” que “escrevia no Público” que “os segredos diplomáticos servem para subtrair aos povos o seu direito à informação”. E, continua, “seria ridículo, se fosse inocente” — e que, não sendo inocente, “é hipócrita”. Seria, seria, seria — se fosse o que eu escrevi. Ora, no meu texto fui cuidadoso em distinguir entre “segredos justificados e/ou necessários” (listando até alguns casos clássicos, como a posição de tropas em tempo de guerra, a identificação de fontes, ou pormenores sobre vítimas ou testemunhas de crimes) de uma “cultura de secretismo” crescente nos últimos anos. Confundir ambos serve apenas propósitos demagógicos. Recapitulemos — fora de fofocas fúteis — aquilo que de realmente importante temos aprendido com a wikileaks, somente nos últimos dias: 1. a petrolífera Shell diz ter infiltrado todos os ministérios do governo Nigeriano; 2. a farmacêutica Pfizer, após terem morrido onze crianças que tinham sido sujeitas a seus testes de medicamentos em África, tentou sujar o nome do procurador que investigava esse caso; 3. em Portugal, um presidente do BCP ter-se-á oferecido para espiar os possíveis clientes do banco no Irão (o próprio nega). E mais uma — esta parece menor mas, acreditem, não é — um dos telegramas sugere-me que o gabinete de um juiz francês chamado Jean-Louis Bruguière estava infiltrado. Nenhumas das coisas que listei acima faz parte dos casos clássicos sobre os quais é preciso, e moralmente justificado, guardar segredo. Escreve Miguel Sousa Tavares

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Monstrinhos bicéfalos

Continua a não haver quem fale pelos 500 milhões de cidadãos europeus. E eu já ficaria contente que houvesse alguém a falar pelos 10 milhões de portugueses. A revista alemã Der Spiegel publicou há dias um interessante artigo sobre Merkel, Sarkozy, e a vontade de protagonismo. O seu título era um pouco cruel — “como manipular os anões políticos da Europa” —; o pior é que não havia como lhe escapar. O texto é escrito a partir da perspetiva norte-americana, criteriosamente ilustrado com diversos acontecimentos dos últimos meses e pormenorizadamente documentado. (Como é agora evidente, a Der Spiegel recorreu aos célebres “telegramas” da wikileaks; mas notemos que estamos a falar dos tolinhos dos jornalistas alemães, que são muitos menos espertos do que os seus homólogos portugueses. Os jornalistas e comentadores portugueses não precisam de analisar estes documentos; eles já sabem tudo, conhecem tudo e estão convencidos — como os fanfarrões nos bares — de que têm tudo debaixo de olho.) Diz a Der Spiegel: “A competição entre Merkel, Sarkozy e outros significa que se torna fácil para Washington pôr os líderes da União Europeia uns contra os outros”, e continua, “pressões, pedidos, diligências, dividir para reinar — os telegramas permitem ver como lidam os EUA com a Europa”. Quanto à Alta-Representante Ashton, os telegramas permitem concluir que os americanos a vêem simplesmente como “uma candidata saída de intrigas internas”, o que demonstra que — por isso é tão interessante lê-los — os diplomatas americanos continuam observadores perspicazes. Uns meses andados, a União Europeia continua presa das decisões desse estranha criatura bicéfala, vaidosa, teimosa, e em última análise irresponsável, que é o par Merkel-Sarkozy.

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Tudo se desconjunta

É pena que, no momento em que se revela a nossa verdadeira face, eu não tenha razão. Um banco suíço decidiu congelar a conta de Julian Assange, o rosto da wikileaks, por este não residir no país. Ou, por outras palavras: está o mundo para acabar. Um banco suíço (suíço!) não aceita dinheiro de residentes no estrangeiro. Por amor de Zeus, a banca helvética é extraordinariamente cuidadosa com os seus clientes. Se ao menos Assange tivesse — como Isaltino — um sobrinho na Suíça, a coisa ainda poderia ser conversada. Assim sendo, o banco suíço teve de recusar. E, por uma questão de decoro, foi forçado a publicitar essa recusa. Ou, por outras palavras, anda aqui um gajo a cansar-se. Mas mas mas afinal o sigilo bancário — mas mas mas afinal os paraísos fiscais. Mas mas mas afinal as contas do Pinochet, mas mas mas afinal o branqueamento de capitais, mas mas mas mas afinal isto era tudo tão difícil. Anda um gajo a preocupar-se pensando que os bancos suíços guardam a sete chaves os dinheiros de ditadores e barões da droga, genocidas e senhores-da-guerra, milhares de milhões de dólares roubados a chilenos e filipinos e indonésios e angolanos e zairenses ou congoleses — e afinal uma porcaria de 31 mil euros guardados para reagir a um caso de assédio sexual mal amanhado podem ser cativados de um momento para o outro e objeto de um bom comunicado de imprensa para o mundo inteiro. Aí Suíça, Suíça.

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O nosso teste

O problema é quando o segredo se torna a regra e não a exceção, como demonstram os documentos até agora divulgados pela wikileaks. “Vastos ataques por parte de uma China que tem medo da internet”. Este era o título do New York Times na passada sexta-feira. No seu contexto, vale tudo o que se tem dito nos últimos dias sobre a wikileaks, cujos documentos — ironicamente — o New York Times usava para narrar a repressão chinesa, em 2009, contra o google. Nesse mesmo dia um poderoso senador americano exigia que todas as companhias do seu país cessassem contactos com a wikileaks. Extraordinariamente, elas obedeceram. A Amazon tirou a página da wikileaks da rede. Outra empresa abateu-lhe o endereço. Outra ainda apagou “as visualizações de dados” — gráficos e não documentos classificados — que se encontravam no site. Seguiram-se ataques informáticos em massa. A wikileaks desapareceu. Umas horas depois reapareceu na Suiça, depois sumiu, apareceu de novo, e continua intermitente. O Departamento de Estado dos EUA proibiu os seus funcionários de consultarem o site, mesmo que a partir de casa. Segundo a Universidade de Columbia, notificou estudantes para que não citassem a wikileaks nas suas páginas de twitter ou facebook, se quisessem preservar as hipóteses de um dia conseguirem emprego na administração. A Biblioteca do Congresso impediu o acesso à wikileaks a partir dos seus computadores. (Na Europa, um ministro francês declarou inaceitável que a wikileaks pudesse alojar-se na França. Ao menos neste caso, a empresa francesa a que ele se referia respondeu de forma digna: senhor ministro, queixe-se a um juiz.) Em poucos dias passámos da desvalorização — “isto não tem nada de novo” — ao mais vasto ataque por parte de governos que têm medo da internet. A China é aqui? Esse é o nosso teste.

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Um inestimável serviço à democracia

Os EUA desenvolveram pressões junto dos governos, em particular do alemão, para que estes “controlassem” os seus eurodeputados. É uma pena, aliás, que as fugas de informação se fiquem por fevereiro; é que em maio um acordo levemente diferente foi a votos e passou. Que foi agora? Quando a wikileaks publicou documentos das guerras do Iraque, — incluindo um vídeo que mostrava assassinatos cruéis e gratuitos por parte das tropas americanas — a resposta foi que “era verdade mas não era notícia”. O Pentágono, com a ajuda de um jornal preterido na divulgação, tentou alegar que a wikileaks estava a pôr vidas em risco e não a salvá-las (recuaram meses depois, quando já não era notícia). Agora, a divulgação de 250 mil de documentos diplomáticos também tem sido alvo de tentativas de desvalorização, desde os que dizem que “isto tudo já se sabia” até àqueles que acham que “há segredos importantes que é preciso guardar”. Reparem como estes argumentos são contraditórios: se “isto tudo já se sabia” é porque não são “segredos importantes”, sacou? Ora, por mais que “achemos que sabemos” o que pensam os sauditas acham iranianos, não conheço nenhum jornalista que não ficasse doido por uma citação do rei saudita chamando ao Irão “a cabeça da serpente”. E quanto à falta de interesse público, vejamos o príncipe André de Inglaterra justificando subornos no Cazaquistão — país de onde, uns meses mais tarde, saiu o homem que lhe comprou uma mansão por quinze milhões de libras, mais três milhões do que o pedido —; será que o contribuinte inglês e o cidadão cazaque, pelo menos, não têm interesse em saber como se faz uma “diplomacia económica” que tresanda a corrupção? Como nota futura, duas coisas só aparentemente menores chamaram a minha atenção.

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Ponham os olhos na Islândia — agora

Como se está a sair a Islândia? Num critério central o governo de esquerda está a fazer um trabalho notável: o desemprego caiu para quase metade. Numa semana de 2008, entre o fim de Setembro e o início de Outubro, foram à falência os três maiores bancos da Islândia. Juntos valiam dez vezes mais do que a economia do país. Ora, nos anos anteriores este país insular de trezentos mil habitantes não tinha só aplicado a receita do costume — desregulação, desregulação, desregulação —; como tinha feito dela uma experiência. Os bancos tiveram rédea larga para criar e investir nos mais sofisticados produtos financeiros. Quando a bolha rebentou deixaram milhares de clientes — principalmente no Reino Unido e na Holanda — na mão; e os islandeses com uma dívida que não tinham feito nada para contrair. O país estava na falência; a coroa islandesa caiu sessenta por cento; ainda mais rapidamente caiu o governo de direita que tinha governado durante os dezoito anos anteriores. Quando foram a eleições, os islandeses viraram energicamente à esquerda, dando a vitória aos sociais-democratas, de centro-esquerda, e à aliança verde-vermelha, de esquerda radical. O novo governo tem cinco ministros de cada um desses partidos. Em suma: crise chegou lá primeiro e com mais força;

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Em greve

Esta é provavelmente a primeira Greve Geral para essa geração de há dezassete anos, e para os jovens que vieram depois dela. Estes já não são o trabalhador clássico, mas uma nova mão-de-obra precarizada e subaproveitada — as vítimas do neoliberalismo, e da crise do neoliberalismo. Há 17 anos, salvo erro, passei este dia em frente à Assembleia da República, numa manifestação de estudantes contra o aumento das propinas. Não éramos muitos; mas estávamos determinados a ficar ali o tempo que fosse preciso. Tinha havido um jogo de avanços e recuos com a polícia nas escadarias do parlamento. Eles ganharam. Ao fim da tarde, estávamos arrinconados no pequeno largo cá em baixo das escadarias de São Bento. De repente, sem dar aviso, avançou sobre nós a polícia de choque. A intenção era limpar o largo, e conseguiram-no. Alguns de nós fugiram pela rua de São Bento. Outros — entre os quais eu — pela Rua do Quelhas. A violência foi inesperada e, mais do que desproporcional, injustificada. Num recanto ajardinado da Rua do Quelhas lembro-me de ter visto em espasmos e com dificuldade de respiração uma miúda frágil e perfeitamente inofensiva. Portugal não tinha então — e não voltou a ter, valha a verdade — hábitos de repressão policial sistemática e agressiva. Ficámos surpreendidos, embora pouco tempo antes de nós tivesse acontecido com os trabalhadors da TAP. Pouco depois viria a acontecer, de forma mais séria, com os trabalhadores da Pereira Roldão na Marinha Grande. E depois, de forma grave e mesmo criminosa, na repressão aos acontecimentos da Ponte 25 de Abril. Desde então, muitos governos nossos têm caído, cada um à sua maneira: em fuga ou em farsa. Mas nenhum como esse governo terminou com aquela mistura de agressividade, repressão e teimosia, com um bocadinho de burla e faturas falsas à mistura. O primeiro-ministro era Cavaco Silva. O ministro do interior era Dias Loureiro.

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Dois anarquistas conversando

Proudhon estava a terminar um tratado de política chamado Guerra e Paz. Tolstói gostou do título, e roubou-lho para um romance. Proudhon, que tinha proclamado “a propriedade é o roubo”, não se queixaria. A Tolstói — que viria a recusar os lucros dos seus livros — não passaria outra coisa pela cabeça. No final de fevereiro de 1861, Pierre-Joseph Proudhon — que era uma das maiores celebridades filosóficas e políticas da Europa — recebeu a visita de um jovem conde russo. Este russo já tinha passado por algumas mudanças. Fora militar e participara na repressão a revoltas no Cáucaso, mas agora tinha pretensões literárias. Tivera um filho bastardo com uma camponesa, de entre os servos “propriedade” da sua família. Mas estava agora noivo de uma jovem da corte, dezasseis anos mais nova do que ele. As coisas pareciam mais encaminhadas. Nasceriam filhos, muitos; quando em Moscovo, a família daria festas no palacete; passariam grandes temporadas em Iasnaia Poliana, no campo. Ainda assim, Lev Nicolaievitch Tolstói, o jovem conde russo, trinta e três anos, não sabia que fazer da vida.

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