Cova da Moura sem lei?

Na crónica de hoje no Público, mais de 20 anos de conhecimento da Cova da Moura e do preconceito sobre o bairro, agora finalmente revelado por um caso que pode vir a ser uma oportunidade para enfrentar o racismo sistémico que existe em Portugal. “Para quem era de fora, “a Cova da Moura sem lei” era aquela onde a polícia não entrava. Mas para quem era de dentro, a “Cova da Moura sem lei” era aquela em que a polícia agia com regular impunidade. Sem a imagem que cá fora tínhamos da primeira, a segunda não poderia existir lá dentro.”

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Contra isto, e com isto, teremos de viver [texto integral]

|Do arquivo Público 03.07.2017| 1. O grande dramaturgo russo Antón Tchekov disse-o de várias maneiras diferentes mas sempre com este sentido: “se aparece uma arma no primeiro ato de uma peça de teatro, forçoso é que essa arma seja disparada antes do quinto ato”. Assistimos na semana passada ao primeiro ato. Um assalto levou de um paiol das Forças Armadas Portuguesas dezenas de armas e explosivos. O que é verdade para uma peça de teatro de Tchekov é mais verdade ainda na vida real: estas armas foram roubadas para ser usadas. Nada mais faria sentido. Ninguém rouba esta quantidade de armas para as manter como recordação. Se foram roubadas no primeiro ato, forçoso é que venham a ser usadas, algures, numa guerra ou num ataque terrorista. A única questão é contra quem, e quando. Nesse dia, para desgraça de nós todos, o estado português terá uma quota-parte de responsabilidade pelo que tiver sucedido. Não falo dos problemas na prevenção e nos defeitos na vigilância. Falo da falta de ação determinada após os ataques. Não se compreende, por exemplo, que não tenha havido controles fronteiriços de emergência para tentar impedir que estas armas saíssem do país. Se um dia houver um ataque terrorista algures na Europa com estas armas, não faltarão opiniões de quem ache que a culpa tenha sido da liberdade de circulação no espaço Schengen. Infelizmente, não espero que alguma autoridade militar ou civil portuguesa tenha a coragem de repor a verdade: a culpa foi também nossa.

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Como poderíamos aprender com o erro de Passos [texto integral]

 | Do arquivo Público 28.06.2017 | Quando soube que Passos Coelho tinha anunciado erradamente o suicídio de sobreviventes do incêndio de Pedrógão Grande, por falta de acesso a cuidados de saúde mental, tive por ele um tipo especial de pena. Não tanto a comiseração que se tem por quem é humano e erra, embora esse tenha sido o caso. Mas principalmente o desgosto que me aflige cada vez mais perante uma política apressada, estridente, feita para competir com as mais apressadas e estridentes opiniões nas redes sociais, sempre na crença de que chamar permanentemente a atenção é mais válido do que tomar tempo, refletir, falar depois de pensar. Esse tipo de política apressada dá-me pena, e não é uma pena boa. Dá-me medo, também, ao ver que há tantos políticos reféns dela. Mas que Passos tenha sido só traído pela forma, por penoso que tenha sido, é o que torna necessário escrever sobre o que se passou. O conteúdo é mais importante do que a forma. Aquilo de que Passos queria falar — a prestação de cuidados de saúde mental às vítimas — é importante. Oxalá os políticos portugueses falassem mais de saúde mental. Noutros países este é um tema que vai pouco a pouco saindo do silêncio envergonhado a que o preconceito o votou durante séculos.

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Portugal reencontra-se consigo mesmo

“Com o caso das armas e explosivos roubados em Tancos, como com os incêndios de Pedrógão Grande, Portugal reencontra-se consigo mesmo. É melhor que se reconheça rapidamente naquilo que vê. Qualquer tentativa de afastar o olhar, qualquer pretexto para desviar a atenção, só servirá para prolongar ainda mais o caminho do nosso atraso e nos afastar mais da ansiada soberania — não a da retórica, mas a real. Pois quando desaparecem as armas das nossas tropas isso significa que não fomos capazes de proteger uma dimensão essencial da nossa soberania. E quando essas armas e explosivos podem já ter passado fronteiras, isso significa que — numa era de enorme integração e interdependência — somos nós que estamos a pôr em causa a segurança e a soberania dos outros.” Hoje no Público.

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A sociedade custo-benefício [texto integral]

 | Do arquivo Público 26.06.2017 |  Há um cálculo usado em hospitais para determinar se se deve contar o número de compressas inseridas no corpo do paciente durante uma cirurgia. Esse cálculo inclui o tempo que se perde a fazer a contagem e a probabilidade de uma compressa ficar esquecida, mais os salários por hora do pessoal médico e de enfermagem e o custo de uma possível indemnização a pagar em caso de uma queixa bem sucedida contra o hospital. O resultado depende de uma análise de custo/benefício: para algumas instituições vale a pena, e para outras não, implementar procedimentos mais exigentes para garantir que um paciente nunca saia de uma cirurgia com uma compressa no abdómen. Do ponto de vista do paciente, porém, é fácil entender porque nos causa esta história desconforto: todos queremos ser tratados com dignidade e não como variáveis de uma análise de custo-beneficio. Ora, a dignidade e o custo-benefício são mais do que dois extremos numa história ilustrativa. A dignidade e o custo-benefício são os dois principais paradigmas da governação na Europa do pós-guerra. Após os horrores da IIª Guerra Mundial, as democracias europeias compreenderam que não bastava respeitar a lei e o estado de direito tal como entendido pela maioria dos cidadãos. Pela primeira vez, o conceito de dignidade começa a aparecer nas constituições europeias. Em alguns casos, como o da Alemanha, não é possível alterar o artigo constitucional relativo à dignidade nem com maiorias qualificadas ou plebiscitos. A mensagem é clara: nem à democracia é legítimo ir contra a dignidade.  Décadas depois, esquecidos que foram sendo os horrores do século XX europeu, um outro paradigma foi surgindo. Importado das áreas da gestão e acompanhado pelo lugar-comum de que o estado é “como uma empresa”, o custo-benefício foi erigido como critério fundamental da governação a partir dos anos 80. Como é evidente, as pessoas que o defenderam continuam a dizer acreditar no respeito pela dignidade — tal como as pessoas que defendem a dignidade não se recusam a fazer análises de custo-benefício. Mas a questão essencial é: qual deve ter a primazia e qual deve ser instrumental?

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Ao especialista instantâneo em incêndios [texto integral]

 | Do arquivo Público 21.06.2017 | É solitário não se ser especialista instantâneo em incêndios por estes dias. Eu não sabia que vocês eram tantos na nossa vida: às vezes parece que por detrás de cada telemóvel e de cada teclado, de cada microfone e página de jornal, de cada câmara e em cada estúdio, há um especialista instantâneo em incêndios. A convicção de cada um é grande, as certezas fulminantes. Às vezes gostaria de fazer uma troca: ouvir-vos menos agora para ouvir mais os especialistas não-instantâneos (também conhecidos por “aqueles e aquelas que se deram mesmo ao trabalho de estudar e pensar prolongadamente sobre um determinado tema”) durante o resto do ano. Mas não. Nós sabemos as regras do jogo. A sazonalidade dos fogos determina a dilatação do perímetro de especialistas e a multiplicação dos espécimes opinativos. São eles o preço a pagar por podermos ouvir também os especialistas não-instantâneos (ou, como eu lhes prefiro chamar, “aqueles e aquelas com quem se aprende qualquer coisa”) que estão cada vez melhores. Distingo-os à maneira possível aos pobres não-especialistas como eu: aquelas e aqueles com quem se aprende alguma coisa, além de não costumarem aparecer no resto do ano, são menos definitivos nas suas respostas, repetem muitas vezes que “é complicado” (para desespero dos entrevistadores) e têm, em geral, um ângulo ou abordagem que perseguem há anos, metodicamente: sabem que proteção civil não é idêntica a proteção ambiental, que o ângulo da desertificação não é o mesmo das alterações climáticas, que a prevenção e o combate não têm os mesmos princípios nem os mesmos objetivos, etc. Sabem que precisam uns dos outros para avançar no conhecimento e nos resultados. Já o especialista instantâneo não precisa de mais ninguém. Fala ou escreve como se a sua torrente de opiniões apagasse os fogos. Quem dera. Mas a torrente de opinião muda de rumo todos os dias. No primeiro dia, choque e consternação. No segundo dia, escândalo e indignação. Ao terceiro dia, a sentença: nada vai mudar a não ser para pior, vai continuar a haver incêndios e mortes, o país é uma esterqueira. É aí que estamos agora. Esta profecia tem a vantagem, para quem a profere, de não poder falhar. E, no entanto, eu acho que

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Como poderíamos aprender com o erro de Passos

Hoje, no Público, sobre como poderíamos todos aprender com o erro de Passos. “Passos quis, na sua pressa, alegar que o estado “falhou e continua a falhar” às vítimas. Gostaria de pensar que essa conclusão fosse, no seu caso, mais do que uma frase de efeito ou uma arma de arremesso. Gostaria de pensar que essa frase fosse, no caso de Passos, o resultado de um caminho e de uma reflexão. Passos entrou na liderança do PSD defendendo um estado mínimo — inclusive com uma proposta de revisão constitucional de onde desapareceria a expressão “tendencialmente gratuita” aplicada à saúde. Como Primeiro-ministro, Passos liderou o mais radical período de diminuição das funções do estado português nas últimas décadas. A quantidade de coisas que Passos nos disse que “não são vocação do estado” encheriam uma longa lista. Espero que Passos entenda agora que a vocação do estado tem de ser mais do que aparecer quando a tragédia bate à porta.”

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A sociedade custo-benefício

Hoje no Público, a partir da dignidade e do custo-benefício como dois principais paradigmas da governação na Europa do pós-guerra. “Após a catástrofe, é fácil concordar que isto não deveria ser assim. Mas antes da catástrofe, quando as mesmas pessoas perderam acesso à estação do correio, à esquadra ou à escola, não faltou quem dissesse que “não compensava” pôr certos serviços no interior. Depois da desertificação, resta a indignação contra a morte. Convinha, no próximo debate sobre o interior, que não fosse esquecida a dignidade em vida.”

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A entreajuda [texto integral]

|Do arquivo Público 18.06.2017|  O mais importante agora, pouco mais de um dia após o incêndio em Pedrógão Grande que vitimou mortalmente mais de meia centena de pessoas, é socorrer as populações afetadas, dar apoio aos sobreviventes e às famílias das vítimas e prestar auxílio aos bombeiros e à proteção civil. Essa é a primeira linha da solidariedade. Mas asolidariedade é necessária para lá do imediato: como torná-la mais perene e mais perfeita? A semana que passou foi marcada por dois incêndios — muito diferentes nas origens, tão parecidos nas consequências — e em ambos a questão da solidariedade é forçosamente a questão central. Em Londres, pelo menos meia centena de pessoas morreram numa torre residencial: num dos bairros mais finos da opulenta capital britânica, os serviços sociais e de proteção civil foram forçados a uma poupança tão restritiva que até permitiu devolver impostos a alguns dos seus habitantes mais ricos. Mas a torre onde viviam os habitantes pobres desse bairro rico não tinha dispositivos anti-incêndio em número suficiente e fora revestida com um material inflamável mais barato em duas libras do que o seu equivalente à prova de fogo — no total, uma vergonhosa poupança de cerca de 5 mil euros nas origens de um incêndio que nos diz muito sobre o colapso da solidariedade na era dos cortes orçamentais. O incêndio de Pedrógão Grande tem circunstâncias inteiramente diversas e sobretudo origens muito diferentes. Nos próximos tempos haverá certamente uma discussão sobre o que mais poderia ter sido feito para evitar tantas vítimas mortais. Mas seria importante que a discussão fosse para lá disso e que entrasse no campo da nossa responsabilidade coletiva perante o meio ambiente e entre todos nós. Mais uma vez, é uma questão de solidariedade, antes, durante e depois da catástrofe. É essencial que haja espaço democrático e vontade política para que o debate especializado seja feito e dele nasçam propostas inovadoras (que até podem ser velhas práticas, rejuvenescidas, como a da refundação de um verdadeiro serviço de proteção de florestas) e o mais abrangentes possível, para implementar num calendário claro e publicamente conhecido. As alterações climáticas vão trazer consigo mais ocorrências de fenómenos meteorológicos extremos, num país em que a floresta tem uma grande prevalência territorial e uma enorme importância económica. Temos de exigir todos que Portugal se prepare melhor e que tome a dianteira desta agenda ambiental, no cruzamento com aproteção civil.

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