| Do arquivo Público 26.06.2017 |  Há um cálculo usado em hospitais para determinar se se deve contar o número de compressas inseridas no corpo do paciente durante uma cirurgia. Esse cálculo inclui o tempo que se perde a fazer a contagem e a probabilidade de uma compressa ficar esquecida, mais os salários por hora do pessoal médico e de enfermagem e o custo de uma possível indemnização a pagar em caso de uma queixa bem sucedida contra o hospital. O resultado depende de uma análise de custo/benefício: para algumas instituições vale a pena, e para outras não, implementar procedimentos mais exigentes para garantir que um paciente nunca saia de uma cirurgia com uma compressa no abdómen.

Do ponto de vista do paciente, porém, é fácil entender porque nos causa esta história desconforto: todos queremos ser tratados com dignidade e não como variáveis de uma análise de custo-beneficio.

Ora, a dignidade e o custo-benefício são mais do que dois extremos numa história ilustrativa. A dignidade e o custo-benefício são os dois principais paradigmas da governação na Europa do pós-guerra. Após os horrores da IIª Guerra Mundial, as democracias europeias compreenderam que não bastava respeitar a lei e o estado de direito tal como entendido pela maioria dos cidadãos. Pela primeira vez, o conceito de dignidade começa a aparecer nas constituições europeias. Em alguns casos, como o da Alemanha, não é possível alterar o artigo constitucional relativo à dignidade nem com maiorias qualificadas ou plebiscitos. A mensagem é clara: nem à democracia é legítimo ir contra a dignidade. 

Décadas depois, esquecidos que foram sendo os horrores do século XX europeu, um outro paradigma foi surgindo. Importado das áreas da gestão e acompanhado pelo lugar-comum de que o estado é “como uma empresa”, o custo-benefício foi erigido como critério fundamental da governação a partir dos anos 80. Como é evidente, as pessoas que o defenderam continuam a dizer acreditar no respeito pela dignidade — tal como as pessoas que defendem a dignidade não se recusam a fazer análises de custo-benefício. Mas a questão essencial é: qual deve ter a primazia e qual deve ser instrumental?

A maior parte de nós não terá hesitação em afirmar que a dignidade está primeiro e que as análises de custo-benefício têm de lhe estar subordinadas. Só que o paradigma do custo-benefício foi sendo de tal forma imposto na prática e na ideologia da governação que se torna difícil identificar onde é que ele já é vencedor. Vistos departamento-a-departamento, os custos têm tendência a levar a melhor sobre as obrigações constitucionais. E quando chega a austeridade, os cortes têm de ser feitos, numa proporção mais ou menos cega, em todos os departamentos. Quando damos por isso, o paradigma já mudou: tornámo-nos numa sociedade do custo-benefício.

As vítimas do incêndio de Londres mereciam um prédio com revestimento à prova de fogo. Numa análise custo-beneficio, levaram um inflamável que era mais barato em duas libras por cada placa. Os portugueses do interior merecem meios aéreos permanentes de combate ao fogo e um SIRESP que funcione sem falhas. Numa análise de custo-benefício, ficaram com aviões alugados e um SIRESP arrendado a privados.

Após a catástrofe, é fácil concordar que isto não deveria ser assim. Mas antes da catástrofe, quando as mesmas pessoas perderam acesso à estação do correio, à esquadra ou à escola, não faltou quem dissesse que “não compensava” pôr certos serviços no interior. Depois da desertificação, resta a indignação contra a morte. Convinha, no próximo debate sobre o interior, que não fosse esquecida a dignidade em vida.

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