|Do arquivo Público 10.12.2018| Quando dou aulas, uma das coisas em que insisto perante os alunos é que não vejam as pessoas de que falamos — sobretudo se forem autores, pensadores, artistas, políticos, cientistas e outros homens e mulheres célebres — como se fossem nomes numa enciclopédia, mas antes como mulheres e homens que viveram como os humanos vivem: foram jovens, entusiasmaram-se, hesitaram, tiveram medo, apaixonaram-se e zangaram-se uns com os outros, e também não viam as pessoas à sua volta como figuras prontas a entrar nos livros de história mas como gente do seu tempo por quem tinham amor ou ódio, respeito ou amizade, antipatia ou empatia.
Como todas as banalidades que é preciso não ter medo de repetir, esta guarda dentro de si duas verdades importantes. A primeira é que embora nem todos os autores escrevam para o seu tempo, a nenhum é dado viver fora do seu tempo; e a realidade com que viveu é muitas vezes essencial para entender as ideias que teve, porque as manteve, ou porque as abandonou. A segunda, mais importante ainda, é que também a nós, mesmo quando nos deprimimos, assustamos ou desorientamos, nos é dada a oportunidade de contribuir com qualquer coisa de bom e útil para a humanidade. É bom não esquecer essa oportunidade e não deixar de a usar quando se apresenta.
Quando chegou a Lisboa, em janeiro de 1941, Hannah Arendt, que nascera em 1906, já tinha sido brevemente presa pelos nazis em 1933, era refugiada desde os 27 anos e apátrida desde os 31 anos. Tinha acabado de casar pela segunda vez, com o poeta Heinrich Blücher, e escapara in extremis da França ocupada com o seu marido e a sua mãe. Quem conseguiu passá-los, através do recurso a documentos falsos, foi um jovem de vinte e poucos anos que tinha lutado pelos republicanos na Guerra Civil de Espanha e que viria a ser o grande economista e historiador das ideias Albert Hirschman.
Repito: toda esta gente não era para Hannah Arendt (nem uns para os outros) a “filósofa” ou o “economista”. Eram a Hannah, o Heinrich e o Albrecht, mais um humano dos tempos sombrios a precisar de um visto e de uma passagem de navio para o exílio.
Hannah Arendt chegou a Lisboa sob a nuvem escura da notícia da morte do seu amigo Walter Benjamin, que se suicidara uns meses antes na fronteira entre a França e a Espanha, ao acreditar (supõe-se que erradamente) que não o deixariam passar até Lisboa. Os dois amigos não viriam a encontrar-se na capital portuguesa, nem nunca mais, mas Hannah e Heinrich transportavam consigo o manuscrito das Teses sobre a filosofia da história que Benjamin escrevera no início do ano anterior e que lhes enviara por segurança, pedindo que não fosse publicado (provavelmente, até que pudesse rever o texto). Das poucas coisas que sabemos que Hannah Arendt fez em
Lisboa, além de lutar contra a depressão e esperar por papéis e passagens para Nova Iorque, foi ler o ensaio de Walter Benjamin, que ela e Heinrich decidiram tomar a responsabilidade de fazer publicar quando chegassem aos EUA.
Hannah Arendt falava pouco e quase nunca escreveu sobre a sua passagem por Lisboa (um dos seus discípulos, o diplomata brasileiro Celso Lafer, lembra-se de ela lhe dizer que descobrira conseguir ler e entender os títulos dos jornais em português — Arendt era uma boa latinista, além de falar francês, o que lhe facilitava a compreensão da nossa língua). Mas não devemos daí inferir que essa passagem tenha sido pouco importante. Foi-o para ela e deve ser para nós.
A passagem de Hannah Arendt não foi só parte do percurso que lhe salvou a vida e que lhe permitiu depois escrever algumas das obras mais importantes da teoria e filosofia política do nosso tempo — algumas das quais, como As Origens do Totalitarismo, estão permanentemente a precisar de serem redescobertas. Em meu entender, a influência da estada paralisante em Lisboa, do seu peso emocional, do seu desespero surdo, sente-se principalmente no extraordinário ensaio Nós Refugiados, que Arendt viria a publicar em 1943 e que deveria ser leitura comum pelo menos nas escolas europeias. Por sua vez, é o ter entendido, na sua pele de pessoa refugiada e apátrida, que a cidadania é o primeiro dos direitos — “o direito a ter direitos”, como ela lhe chamava — que esteve na origem da sua cada vez mais relevante filosofia dos direitos humanos.
Para nós, é importante lembrar Hannah Arendt precisamente como cidadãos, na dupla acepção da palavra: como cidadãos de Lisboa e de Portugal, e como humanos neste planeta, sujeitos de inalienáveis direitos à dignidade, à liberdade e a participar nas decisões que nos dizem respeito.
Hoje, segunda 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, às onze da manhã, a Câmara Municipal de Lisboa inaugurará um memorial a Hannah Arendt próximo ao lugar onde ela viveu na nossa capital, na Rua da Sociedade Farmacêutica 6b. O memorial ficará no larguinho, que espero que um dia se venha a chamar Largo Hannah Arendt, da esquina entre a Rua da Sociedade Farmacêutica e o Conde Redondo (declaração de interesses: a proposta do memorial foi do LIVRE, mas apraz-me dizer que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Municipal de Lisboa, e rapidamente implementada pela Vereação da Cultura de Lisboa).
Pelo que fica dito atrás, esta comemoração no espaço físico de Lisboa não é só um ato de justiça perante o passado; é um ato de esperança no futuro. A partir de agora, a cidade de Lisboa lembrará a quem ali se quiser sentar, descansar e refletir, as últimas palavras de Hannah Arendt em Nós Refugiados: “a Europa estilhaçou a sua alma quando deixou que os seus mais vulneráveis fossem perseguidos e escorraçados”. Não o esqueçamos nunca, para que não voltemos a perder a nossa alma.
(Crónica publicada no jornal Público em 10 de dezembro de 2018)