|Do arquivo Público 18.10.2021| A panteonização de Aristides de Sousa Mendes, que terá lugar amanhã, 19 de outubro, após proposta da deputada Joacine Katar Moreira e aprovação praticamente unânime da Assembleia da República (o deputado da extrema-direita faltou à votação) é não só um ato de justiça como de memória histórica e de enorme responsabilidade por parte do nosso país.
Que Aristides Sousa mereça estar no Panteão Nacional está para lá de qualquer dúvida: em 1940, no início da maior tragédia do século XX, e desobedecendo às ordens de Salazar, Aristides de Sousa Mendes salvou um número indeterminado de pessoas (milhares, segundo a maior parte dos autores que ao assunto se dedicaram) concedendo-lhes visto para escapar à vaga nazi que avançava pela Europa. Os seus atos corajosos foram reconhecidos no Yad Vashem, ou memorial dos “Justos Entre as Nações”, onde é um dos poucos portugueses que se encontra homenageado (os outros, como o embaixador português em Budapeste Sampaio Garrido e o funcionário Teixeira Branquinho; o padre Joaquim Carreira; e o operário emigrante José de Brito Mendes mereceriam também ser memorializados no Panteão). A questão a partir de agora é sermos nós merecedores de Aristides de Sousa Mendes no Panteão.
Há anos que defendi nestas páginas a panteonização nesses precisos termos: “Dar-lhe honras de Panteão tornará bem claro que, para o Portugal democrático, a desobediência corajosa de Aristides é um exemplo que nos norteia”. Quer isso dizer que, depois de décadas de esquecimento, quando não de ataques à sua memória, durante a ditadura, o Portugal saído do 25 de Abril foi gradualmente reconhecendo que, mais do que a obediência ao estado, o que era preciso valorizar em Aristides de Sousa Mendes era antes a obediência a uma ideia de humanidade: “A partir de agora, darei vistos a toda a gente, já não há nacionalidades, raça ou religião”.
Um país precisa de símbolos, e ao escolhê-los precisa de saber que valores quer transmitir aos seus cidadãos, às gerações futuras, e àqueles que nos visitam e procuram conhecer. Ao escolher Aristides de Sousa Mendes como seu referente moral, Portugal está a elevar a fasquia para si mesmo. Num momento da história em que regressam alguns dos fantasmas dos piores crimes do passado — o racismo, o nacionalismo agressivo, a xenofobia, o preconceito de todos os tipos —, ter Aristides de Sousa Mendes como exemplo no Panteão indica-nos a todos que qualquer um de nós, seres imperfeitos que somos, como ele também o era, podemos estar à altura da história se decidirmos encarar os humanos todos por igual. Num momento em que a Europa fecha fronteiras e em que estados em todo o mundo se negam aos refugiados, Portugal está a dizer a si mesmo, e em particular aos seus funcionários públicos como Aristides o foi, que mesmo nas nossas rotinas mais burocráticas há um espírito de humanidade que deve estar sempre presente, um capacidade de nos colocarmos no lugar do outro que não pode nunca ser esquecida. É isso que faz de alguém que serve a República Portuguesa merecedor dos maiores louvores.
Mais do que isso, ter Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional é uma mensagem à nossa cidadania, e aos estrangeiros (e são muitos) que visitarem o Panteão: estar à altura do que nos acontece é algo que está ao alcance de todos. Muitas vezes, nas nossas interações quotidianas, na mesquinhez e agressividade que imperam no debate político, no ódio que infelizmente se tornou quotidiano nas redes, é fácil perder essa ideia simples de grandeza. É tentador imaginar que a história já lá vai e que nos nossos tempos já não são precisos gestos como o de Aristides de Sousa Mendes — ou que, caso fossem precisos esses gestos, que apenas seres raros, quase santos, seriam capazes de agir eticamente.
Nada de mais errado. O que a história de Aristides de Sousa Mendes nos diz não é que é preciso ser um santo para agir eticamente. O próprio Aristides de Sousa Mendes era contraditório e imperfeito, como todos nós. E não é verdade que o momento histórico em que era preciso agir como ele já lá vai. Olhemos à nossa volta: o que não faltam são injustiças para as quais podemos escolher não contribuir, mesmo quando não as podemos corrigir. Aristides de Sousa Mendes não poderia nunca ter conseguido impedir o holocausto. O que podia era agir á sua medida para salvar quem pudesse ser salvo. O que decidiu foi fazê-lo. Para isso não foi preciso ser santo. Foi preciso, num momento desumano da história, não esquecer a sua humanidade.
Que Aristides merece estar no nosso Panteão, não pode haver dúvida. Que nós o saibamos merecer será uma missão de todos os dias. Mais do que homenageá-lo, o que estamos a fazer é a elevar a nossa fasquia moral. Saibamos ser maiores, e alcançá-la, porque o nosso momento histórico também o pede.
(Crónica publicada no jornal Público em 18 de outubro de 2021)