|Do arquivo Público 15.03.2019| “Não pode haver democracia europeia porque não existe identidade europeia”, repetiram incessantemente alguns intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos. A solidariedade entre os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade onde partilhamos uma história, uma cultura e um destino nacionais.
Pois bem, desafio quem quer que tenha visto as imagens da Igreja da Notre-Dame ardendo em Paris a responder se o que sentiu não foi uma perda da sua própria identidade. Porque a Notre-Dame, a Île de la Cité em que ela se situa, e todo o perímetro que em tempos foi da Paris medieval, são bem mais do que apenas francesas. Elas fazem parte da história europeia. Melhor dizendo: a história europeia fez-se ali. Incluindo a portuguesa: nas primeiras décadas de 1500 até um homem nascido na minha aldeia por ali andou: Diogo de Gouveia, o moço, sobrinho de outro Diogo de Gouveia a quem chamaram de “grande reacionário”, e de um André de Gouveia a quem chamaram grande humanista. Nessa altura, o Colégio de Santa Bárbara, na Sorbonne, era uma colmeia de laboriosos estudantes vindos de todo o continente — e por várias vezes os reitores e estudantes mais ilustres foram portugueses. Ali nasceram os jesuítas como nascem tantas coisas na Europa: com um encontro entre estudantes fora de casa, numa cidade estrangeira. Antes disso por ali tinha passado Erasmo de Roterdão, no tempo em que não se fazia o programa Erasmus mas se podia visitar o Erasmo propriamente dito, para discutir as novas teorias de Martinho Lutero ou João Calvino, ou as novas terras reais e imaginárias de que falavam Damião de Góis ou Tomás Moro.
Toda essa gente passou pela sombra da Notre-Dame, sempre a mesma e sempre diferente ao longo dos séculos. Boa parte das suas gárgulas mais famosas e fotografadas são reconstituições neo-medievais do século XIX. As suas rosáceas são do século XIII. Os seus vitrais não são apenas medievais, mas também do século XVIII e até contemporâneos. A Notre-Dame resume em si grande parte da história deste continente. Por isso o momento do colapso da espiral da catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o momento em que uma flecha atingiu o coração da Europa.
Poderíamos ir mais longe. Ainda há pouco tempo sentimos o mesmo quando ardeu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil. Perdeu-se património brasileiro, mas perdeu-se memória e identidade que era também nossa. E era também nossa não só por sermos portugueses; era nossa porque se perderam registos da humanidade que não se voltarão mais a encontrar.
As modas intelectuais passam, regressam, e desaparecem. A tempo acharemos o nacionalismo do século XXI tão ridículo como o do século XX. Já nos esquecemos aliás que a teoria da moda há meros quinze anos era a da “Guerra das Civilizações”, que influenciou em grande parte a decisão de dar início à Guerra do Iraque, e segundo a qual seriam os grandes blocos culturais e não as nações a determinar o curso da história no novo milénio. Aquilo de que estas teorias do tribalismo a diversas escalas se esquecem é que existe só uma humanidade e que em cada parte da humanidade residem potencialmente as ideias da humanidade inteira. Quando os talibans destruíram os Budas de Bamyan, no Afeganistão, ou o ISIS tentou demolir Palmira, na Síria, o que aconteceu não foi uma civilização a atacar outra. O que aconteceu foi um ataque à memória de toda a civilização humana. Porque os Budas de Bamyan não deixam de ser tão nossos quanto a Notre-Dame o é — e aliás porque a linha que os une, passando pela Rota da Seda, por sábios muçulmanos da Ásia Central como Al Farabi, por judeus de Toledo que ensinaram árabe aos tradutores das traduções de Aristóteles, e pelo Tomás de Aquino que foi ensinado no Quartier Latin, é menos difícil de desenhar do que aquilo que se pensa.
Como disse um sábio que também andou pela sombra da Notre-Dame, François Fénelon, ali pela viragem do século XVII para o XVIII: qualquer ser humano é infinitamente mais beneficiado pelos contributos que lhe chegaram da humanidade inteira do que por aqueles que lhe foram legados pela sua pátria. E esse é verdade para todas as pátrias, em todos os tempos, em todo o mundo. Por isso todos nós devemos à Notre-Dame boa parte da nossa identidade europeia e de cidadãos do mundo. Quando a Notre-Dame se reerguer, como decerto acontecerá, ela reerguer-se-á para a toda a humanidade.
(Publicado no jornal Público em 15 de abril de 2019)