|Do arquivo Público 28.06.2021| Há exatamente 52 anos neste dia a polícia nova-iorquina invadiu, como era habitual, um bar gay, lésbico e trans chamado Stonewall, localizado no bairro de Greenwich Village em Nova Iorque. A diferença naquela ocasião foi que os fregueses do bar, cansados de tanto assédio, decidiram resistir à violência policial. Nos dias e semanas seguintes a comunidade LGBT local auto-organizou-se em torno da exigência a poderem viver em segurança a sua sexualidade; passado um ano, decidiram comemorar o 28 de junho, dando assim início ao que é o Dia do Orgulho que se comemora hoje em todo o mundo pela 51ª vez.
O caminho feito neste meio-século é nada menos do que extraordinário — e a estratégia da visibilidade teve nisso uma enorme importância. De comunidade proscrita que era possível assediar sem causar resistência, nem mesmo dos próprios, passou-se a um movimento capaz de se auto-defender, de se organizar e mobilizar por causas que naquela noite de 1969 ainda não imaginavam, desde o combate à pandemia de HIV-SIDA até à defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo. De pessoas obrigadas a encarar a sua própria sexualidade na vergonha e no medo, passou-se hoje (em muitos contextos, mas não em todos) a um orgulho, uma coragem e uma entreajuda que salvam vidas. De uma sexualidade estigmatizada e criminalizada (no nosso país, por incrível que isso possa parecer, até aos anos 1990) passou-se a uma naturalização da diferença e a um entendimento muito mais empático do direito de cada um viver em liberdade a sua sexualidade e deixar aos outros o mesmo direito. E de uma desvalorização da importância destas lutas, que até há pouco tempo ainda subsistia (ou ainda subsiste) mesmo entre quadrantes que têm por hábito considerar-se progressistas, passou-se finalmente a entender-se o caráter profundamente libertário, igualitário e democrático das suas demandas.
Nos países onde tudo isto sucedeu — e há muitos onde continuamos na era da criminalização — não só a vida das pessoas LGBTQIA+ ficou incomparavelmente mais respirável como a nossas sociedades se tornaram melhores: mais inclusivas, mais respeitosas, mais capazes de entender os direitos de todos. Essas conquistas, nos lugares onde ocorreram, significam um progresso de séculos em poucas décadas, mas não caíram do céu. Devemos agradecer por elas a todos e todas os que fizeram essas lutas, e aos seus aliados.
No cerne destas lutas, e da razão para elas terem progredido de forma comparativamente tão rápida, está um questão decisiva de igualdade. Desse ponto de vista, a expressão tantas vezes usada de “direitos LGBT” é enganadora. Porque aquilo que foi e continua a ser exigido não são direitos LGBT; são direitos humanos iguais aos de quaisquer outros seres humanos, também para as pessoas gays, lésbicas, bissexuais, trans e por aí afora. São direitos de não se ser perseguido pela sua preferência sexual — como qualquer pessoa. Direito de não sofrer violência verbal ou física, de não sentir estigmatização — como qualquer pessoa. Direito de viver a sua vida com a pessoa que se ama, de com ela casar e constituir família — enquanto adultos em mútuo consentimento, e em pleno respeito pela liberdade dos outros, como qualquer pessoa.
Os direitos a que chama LGBT são direitos humanos, ponto. São direitos de pessoas LGBT, que são seres humanos com a mesma dignidade intrínseca de todos. São simplesmente direitos de pessoas a serem pessoas.
Esta característica faz deles por vezes mal entendidos no contexto atual. São esse direitos uma questão política, ou não? A resposta é: claro que sim. Como quaisquer outros direitos humanos, são uma questão profundamente política. Que os direitos humanos são políticos não oferece dúvida; o que eles não devem ou mesmo não podem ser é controversos.
Já ouço questionar: mas como não são controversos? Não é o reconhecimento desses direitos recente? Não implicou lutas como as descritas nos primeiros parágrafos? Não serão por isso mesmo controversos? E continuo a insistir que enquanto direitos humanos eles não são controversos — são aliás os mesmo que todos os humanos exigem rotineiramente para si mesmos, como o direito à liberdade de expressão ou o direito à vida familiar. O que alguns políticos querem é fazer dos direitos das pessoas LGBTQIA+ controversos por causa das pessoas que eles devem proteger.
Esse é o projeto político de Orbán, de Bolsonaro e outros. Tornar direitos humanos controversos por causa das pessoas que eles devem proteger, e assim esvaziar o próprio conceito de direitos humanos.
E é também por isso que não é possível neutralidade nesta luta. As pessoas que estão sob ataque na Hungria, equiparadas a criminosos e limitadas na sua liberdade de expressão, estão na linha da frente da defesa de direitos humanos que são património de todos. E todos devemos sair em sua defesa.
(Crónica publicada no jornal Público em 28 de junho de 2021)