|Do arquivo Público 25.10.2021| Não vou hoje falar daquilo de que está toda a gente a falar — se o orçamento passa ou não e se há eleições antecipadas ou não — porque já tudo foi dito, porque já escrevi sobre o assunto várias vezes e porque de qualquer forma daqui a poucos dias saberemos. Mas nunca é demais lembrar que um dos problemas do pecado original desta legislatura — a falta de um acordo multilateral e multipartidário com um programa a quatro anos — é que em vez de andarmos com o credo na boca a cada avaliação trimestral, como acontecia no tempo da troika, ficamos em suspenso a cada negociação orçamental anual. Em resultado, a dificuldade de pensar o país a longo prazo persiste.
Vou apenas dar um exemplo, um único, do tipo de coisa de que poderíamos estar a falar se quiséssemos que o orçamento deste ano tivesse um impacto de justiça social, justiça ambiental e modelo de desenvolvimento para o país com efeitos de longo prazo. Trata-se de uma medida que está já presente no orçamento (e prevista no PRR) italiano.
Chamam-lhe o “super–bónus”. Em Itália, quem quiser isolar termicamente o seu edifício, instalar nele painéis solares ou aquecê-lo e refrigerá-lo com uma eficiente “bomba de calor” é subsidiado. Até aqui tudo normal. Mas não é subsidiado em dez por cento, nem sequer em metade do custo, nem sequer integralmente. Não; é subsidiado em cento e dez por cento. Ou seja: totalmente reembolsado (até um limite de cem mil euros) e ainda ganha mais dez por cento em créditos fiscais com isso. E como esses créditos fiscais são transacionáveis, não é sequer preciso ser o beneficiário final a adiantar o gasto, uma vez que muitas empresas de instalação preferem ser elas a receber os créditos e efetuar os respetivos descontos e há também bancos dispostos a comprar os créditos fiscais e financiar a renovação dos edifícios, ganhando os dez por cento suplementares mas evitando ao cidadão comum meter o dinheiro.
Não será demais? O governo italiano pensa que não. Outros governos têm dado subsídios à instalação de painéis solares ou bombas de calor, em geral de alguns milhares de euros, mas a verdade é que pouca gente tem hoje disponibilidade financeira para meter o resto do dinheiro. Se vivermos num prédio e for necessária uma decisão coletiva, basta um condómino recalcitrante (ou sem liquidez) para ficar tudo bloqueado. E se formos inquilinos, basta um senhorio indiferente para que nada se possa fazer. Com o super–bónus italiano, ninguém tem razões para desperdiçar a ajuda e acabaram os pretextos e desculpas para deixar de melhorar a eficiência térmica dos edifícios, no que aliás ganham todos: o planeta e as pessoas, que passam a viver com mais conforto em suas casas ou locais de trabalho.
Já ouço as objeções: ah, isso não se pode fazer num país endividado como Portugal. Bem, mas a Itália é um dos poucos países da UE mais endividados do que Portugal (160% contra 137% do PIB em dívida). Então é porque a Itália é governada por algum ecologista ou esquerdista irresponsável! Nem por isso: o primeiro-ministro italiano é Mario Draghi, o “senhor euro” e ex-banqueiro central europeu. Para ter tal amplitude no seu PRR, Mario Draghi recorreu não só aos subsídios mas também aos empréstimos a baixo custo da UE, e a verdade é que os mercados não o punem por essa aposta, porque sabem que a economia italiana tem de se modernizar e porque, mais do que a dívida, a questão é saber para o que ela serve.
Porque faz então a Itália esta aposta? Porque funciona. Não só o impacto desta medida específica de combate às alterações climáticas não se sente (negativamente) no bolso do cidadão como a abrangência do programa permite desburocratizar tudo (ao contrário do que se passa no programa português). Resultado: só no ano de 2021 as reduções de emissões de carbono doméstico que o governo italiano conseguiu com este programa foram maiores do que as conseguidas nos vinte anos anteriores. E o governo italiano poderia não saber, mas estas medidas vieram na altura certa: com o aumento dos preços do combustível, nada melhor do que ajudar o consumidor final a poupar e ter mais conforto ao mesmo tempo.
Um programa destes não é barato: nove mil milhões em Itália. Seria talvez o equivalente a mil e quinhentos milhões em Portugal. Mas Portugal é o país na Europa ocidental onde vivemos com mais desconforto térmico dentro de casa e no local de trabalho, com impacto direto sobre a produtividade e o Serviço Nacional de Saúde. E é agora, sob o fogo cruzado do preço da energia e da crise ecológica, que as pessoas precisam de saber que vão ter ajuda para fazer o que é melhor para elas e para o planeta.
Muitas coisas importantes andam a ser discutidas nas atuais negociações orçamentais portuguesas. Mas uma medida de longo prazo como esta não está em cima da mesa. E a culpa é capaz de ser de todos os parceiros negociais.
(Crónica publicada no jornal Público em 25 de outubro de 2021)