|Do arquivo Público 14.05.2021| Há uma semana, o Dia Mundial da Língua Portuguesa foi uma coisa melancólica. A CPLP está parada, apesar das negociações sobre liberdade de circulação entre países lusófonos. Um Brasil liderado por Bolsonaro não inspira ninguém a partilhar cimeiras, debates, iniciativas e fotos de família com aquele que é, agora que Trump foi derrotado, o pior presidente democraticamente eleito do hemisfério Ocidental. E ontem, na Folha de São Paulo, o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues escrevia com gesto largo e trágico “Lusofonia, adeus!” — a crónica que motiva esta crónica.
Sérgio Rodrigues começa o seu texto assim: “Olá, meu nome é Sérgio e eu já acreditei no mito da lusofonia. Embaraçoso, eu sei.” A razão do desencantamento tem a ver sobretudo com notícias sobre o que ele considera ser o recrudescimento do antibrasileirismo em Portugal, que por sua vez interpreta como motivado pela reação contra o acordo ortográfico e que resulta na seguinte conclusão: “está claro que o português não deseja se tornar uma língua sem centro, com 270 milhões de falantes e algumas variedades nacionais. Chega de perder tempo!”. E se assim for, não há razão para não tomar a sério a ideia, segundo ele “à espera apenas de uma decisão política”, de proclamar o brasileiro como uma língua autónoma.
Não sei se o texto do Sérgio Rodrigues é mesmo uma despedida. Se o fosse, ele teria encolhido os ombros e seguido adiante, sem um grito nem talvez um murmúrio. Se o for, deve ser uma daquelas despedidas lusófonas, de quem sai do bar à espera que os amigos lhe digam “não vá, fica aqui com a gente, bebe mais uma”. E a minha crónica é isso mesmo.
O antibrasileirismo em Portugal é um fenómeno real, preocupante e doloroso para muita gente, que não deve ser escamoteado nem menorizado. Hoje no Brasil o sentimento antiportuguês talvez tenha menos impacto do que antes, mas já foi forte e continua a ser real. E há também, é claro, preconceitos cruzados, e não raro racismo, entre outros países de língua portuguesa. Não creio, no entanto, que essas lamentáveis realidades sejam mais fortes do que o facto global de uma língua através da qual há intercompreensão entre mais de duzentos milhões de pessoas, e até ao fim do século cerca de quinhentos milhões de pessoas, das quais uma maioria provavelmente viverá em África. É essa a força da língua portuguesa que não deve ser menosprezada.
Onde está o maior risco, em meu entender, não é nos povos, mas nos governos. A estagnação da CPLP tem a sua origem na falta de imaginação — ou de empatia política — entre os governos dos países de língua portuguesa. E uma decisão intempestiva de autonomizar oficialmente parte da língua portuguesa teria também de ter origem num governo nacional (por ação, no caso do Brasil; por omissão, no caso de Portugal), que não mudaria em nada a intercompreensão entre as centenas de milhões de falantes da língua mas que teria um impacto desastroso para o português do ponto de vista da sua estratégia internacional.
Ao governo português, em particular, deveriam soar os alarmes, como aos portugueses em geral. Países de dez milhões de habitantes com línguas faladas por dez milhões de habitantes há muitos. Países de dez milhões de habitantes com uma das línguas mais faladas do mundo há poucos, ou mesmo só um. O valor cultural, político desse facto global é imenso — mas só poderá ser aproveitado com políticas inteligentes de promoção da língua por governos que não têm recursos inesgotáveis. Há uns anos o então Ministro da Cultura de Portugal, José António Pinto Ribeiro, propunha a criação de uma Academia Internacional da Língua Portuguesa. Faz todo o sentido, e já viria tarde. Faria todo o sentido também investir num canal de media conjunto da lusofonia, uma “TV Cultura” da CPLP, ou criar um instituto conjunto de língua portuguesa, ou ainda um fundo de apoio aos departamentos de língua e literaturas de língua portuguesa nas universidades de países terceiros. Tudo boas ideias para quando o Brasil tiver outro presidente.
Mas tal como não me canso de dizer com o projeto europeu, é aos cidadãos empenhados que compete em primeiro lugar a defesa do sonho de uma comunidade de língua portuguesa vibrante, fraterna e cada vez mais relevante.
Por que não criar, como há uns anos foi feito o Parlamento Internacional dos Escritores, um Parlamento Internacional dos Escritores da Língua Portuguesa, com objetivos de defender os direitos fundamentais, a liberdade de expressão e a riqueza literária e linguística dos povos de língua portuguesa? Por que não criar uma rede cidadã de defesa dos direitos humanos, uma espécie de Amnistia Internacional em língua portuguesa.
Sérgio, senta aí. Vamos falar. Quem sabe, vamos até fazer.
(Crónica publicada no jornal Público em 14 de maio de 2021)