|Do arquivo Público 19.04.2019| A discussão em torno do estudo sobre a sustentabilidade da Segurança Social dirigido por Amílcar Moreira para a Fundação Francisco Manuel dos Santos pode ser talvez resumida por uma metáfora futebolística: trata-se de uma discussão entre quem acha que devemos jogar para o empate e quem acha que devemos jogar para perder por poucos.
A razão para isto está no perímetro da discussão, ou seja: devemos discutir só a Segurança Social ou devemos discuti-la no contexto das dinâmicas mais gerais da economia e da sociedade portuguesa? Como o próprio Amílcar Moreira reconhece, é impossível conhecer com certeza o futuro da Segurança Social sem saber como se vai comportar a economia portuguesa e, em particular, as variáveis que para esta questão mais importam: o crescimento da produtividade e o (possivelmente correspondente) aumento dos salários, além da evolução demográfica do país (natalidade+imigração).
Qualquer discussão sobre o futuro da Segurança Social acaba assim por ser uma discussão “encaixada” num cenário. A partir daí podemos optar por discutir “dentro da caixa” ou “fora da caixa”. Discutir “dentro da caixa” significa fazer aquilo que fizeram os autores do estudo: escolher um cenário central (no caso, a partir das previsões da Comissão Europeia para Portugal) e discutir a Segurança Social dentro dele. Discutir “fora da caixa” significa discutir como se alteram as dinâmicas da economia e da sociedade portuguesa.
Ambas as estratégias são legítimas e necessárias. Mais: o que é natural no tipo de estudo que foi pedido a Amílcar Moreira e aos seus colegas é a discussão “dentro da caixa”. Um estudo sobre a Segurança Social não é um estudo sobre a economia e a sociedade portuguesa em geral. Mas isso não impede — antes pelo contrário, deveria estimular — que o resto do debate público se faça também “fora da caixa”.
É aliás, o próprio Amílcar Moreira que nos dá uma pista nesse sentido quando admite (em entrevista ontem ao Público) que “obviamente não tínhamos hipótese de simular todas as medidas possíveis para melhorar a sustentabilidade do sistema”, dando entre outros exemplos a possibilidade de aumentar “as qualificações da população para melhorar a produtividade”. Medidas como esta estavam fora do perímetro do seu estudo, mas não podem estar fora da nossa discussão pública sobre o futuro de Portugal.
Se formos honestos, há que reconhecer que o debate sobre como aumenta a produtividade não é fácil de fazer, como confessam por vezes os próprios economistas. Mas o aumento das qualificações é precisamente um dos campos onde Portugal tem muito caminho a fazer. Não há nada a perder, e muito a ganhar, em investir numa reforma profunda do ensino superior em Portugal, no sentido de generalizar o acesso a ele por parte da população portuguesa em todos os momentos da sua vida ativa, e mesmo para lá dela. Ou seja, pode ser que o aumento das qualificações não resulte automaticamente no crescimento da produtividade, que por sua vez teria um reflexo positivo nos salários e consequentemente na sustentabilidade da Segurança Social. Mas isso não quer dizer que tenha sido mau tentar esse caminho.
Por sua vez, essa discussão deve inserir-se na redefinição de uma estratégia para Portugal a que me referi em crónicas passadas. Durante muito tempo, a meta-síntese da estratégia portuguesa foi a convergência com a média da União Europeia. Não só perdemos a convergência nas últimas décadas como descobrimos que a convergência por si só pode não ser suficiente para segurar em Portugal os trabalhadores mais qualificados e os jovens que emigram na chamada “fuga de cérebros”. Isso significa que talvez Portugal tenha de optar por uma meta diferente, passando a ter por objetivo algo de muito mais ambicioso do que a convergência: ser uma sociedade de conhecimento inclusiva e de economia mais especializada, uma sociedade altamente desenvolvida que não deixe ninguém para trás — algo que só é possível discutir no médio e no longo prazo, mas que pode ser verdadeiramente mobilizador para os portugueses.
Se começarmos por aí, todas as outras peças — incluindo as da Segurança Social — começam a encaixar. A experiência de outros países, com modelos muito diferenciados dos escandinavos aos bálticos e à Irlanda, indica-nos que é possível fazer esta discussão e levá-la a bom porto. A discussão sobre a Segurança Social é apenas mais um elemento que prova como Portugal precisa de mudar de estratégia. Ou precisa, pelo menos, de ter uma estratégia.
(Crónica publicada no jornal Público em 19 de abril de 2019)