|Do arquivo Público 17.04.2019| Anteontem passei a noite, como tanta gente em todo o mundo, procurando notícias sobre o incêndio da Notre Dame, em Paris. Mas rapidamente o que me passou a interessar foi a disseminação de mentiras e teorias da conspiração sobre o dito incêndio.
Uma ferramenta como o Twitter, que permite fazer pesquisas de conteúdos em tempo real em todo o planeta e onde é fácil traduzir conteúdos em línguas que não dominamos, é especialmente útil nestas situações. Foi um tweet de um brasileiro que atribuía a possível destruição da catedral parisiense aos “globalistas” que em primeiro lugar me chamou a atenção. Depois um conhecido “influenciador” britânico de extrema-direita, com cerca de um mlhão e meio de seguidores na sua página youtube, tentava insinuar que havia muçulmanos a celebrar o incêndio — o que por sua incentivava os seus interlocutores a insistirem na tese do atentado e não do acidente para o mesmo. A seguir fui traduzindo automaticamente uma controvérsia em língua turca: um utilizador tentava abnegadamente a solidariedade com os franceses e cristãos, explicando que se fosse a mesquita de Sultanahmet a arder certamente o mundo estaria em choque, e era atacado pelos fundamentalistas do seu próprio país, viciados na narrativa da hipocrisia ocidental. Estes três exemplos bastam, mas havia milhares de outros iguais ou piores em todo o mundo. O Twitter tem 126 milhões de utilizadores, o Facebook tem dois mil milhões de utilizadores, e basta uma pequena percentagem destes a acreditar em teorias da conspiração e a disseminar notícias falsas para que se crie uma realidade paralela capaz de facilmente agregar muito mais gente. A isto podemos acrescentar a facilidade de contágio de notícias falsas no WhatsApp — que levaram já a assassinatos e massacres na Índia e tiveram um papel decisivo em resultados eleitorais no Brasil —, para não falar dos canais de Reddit, de comunidades como a 4Chan, de certas ferramentas dedicadas a utilizadores de extrema-direita que foram banidos das anteriores, e rapidamente veremos que se o público em geral tivesse noção de um por cento do que aí se partilha ficaria deveras assustado. Nas catacumbas do ciberfascismo são comuns os conteúdos supostamente irónicos que minimizam o holocausto, as teses sobre conspirações que dominam o mundo, a organização de ataques coordenados a inimigos políticos, e por aí adiante.
É normal, quando se dá uma revolução comunicacional, que percamos o pé numa primeira fase. Há uns meses escrevi nestas páginas como o próprio Martinho Lutero, que tanto beneficiara da invenção da imprensa com a rapidíssima propagação das suas primeiras obras em 1517-18, escrevia em meados da década seguinte “sabemos como estas coisas começam, mas não sabemos como acabam”. Hoje a ideia que temos da imprensa é praticamente apenas benigna: mais livros, mais ideias, mais conhecimento, mais tolerância. Mas essa é uma vista de longe. Seguindo de perto a história inicial da imprensa também se pode ver como ela foi usada para espalhar a intolerância, promover ataques e massacres, fomentar as guerras de religião.
Continuo convencido que a internet, como a rádio antes dela, e a imprensa muito antes, será principalmente vista como uma enorme fonte de progresso. Precisamos apenas de voltar a encontrar o pé, e há muitas coisas que nos podem ajudar a fazê-lo. Criar incentivos financeiros — fundos, bolsas, prémios — ao jornalismo de investigação e à verificação de factos. Regular os gigantes da internet pelo menos à escala europeia, obrigá-los a pagar os impostos devidos, responsabilizá-los perante a utilização criminosa e irresponsável das suas plataformas. Promover a criação de projetos não-lucrativos e cidadãos de repositórios de conhecimento, de que a Wikipédia é um extraordinário exemplo. E depois, a montante e a jusante, educação, educação, educação. Introduzir disciplinas de verificação de notícias e utilização de media nas escolas secundárias. Generalizar o acesso ao ensino universitário. Voltar a investir na ligação — que o Renascimento fez tão bem — entre as humanidades e a tecnologia.
Até lá, porém, basta um indivíduo, entre um por cento daquele universo conspirativo, para que a faúlha salte para outro canto do planeta. É essa a natureza da tal aldeia global em que vivemos. Estarmos preparados para isso também é uma maneira de lutar pela sanidade política e ajudar a evitar o pior.
(Crónica publicada no jornal Público em 17 de abril de 2019)