|Do arquivo Público 11.01.2019| Globalização, europeízação, automação, crise de representação democrática, baixa produtividade, pouca especialização, desordenamento territorial, crise ecológica, baixos salários, desterritorialização do emprego, e poderíamos continuar — não há nenhum desafio que Portugal enfrente hoje no qual não seja crucial aumentar em muito, e muito rápido, e muito exigentemente, as qualificações da nossa população. E isso passa muito em particular pelo ensino superior, que na verdade nunca foi prioridade política ou orçamental no nosso país. Só metade dos nossos jovens vão para o ensino superior, e um país pequeno e semi-periférico numa grande economia aberta jamais conseguirá vencer os seus atrasos assim.
Os políticos dos anos 1990 e 2000 encontraram um atalho para lidar com a universidade (por facilidade e poupança de caracteres incluirei aqui neste termo o ensino politécnico e todos os tipos de ensino superior): as propinas. As propinas nunca foram mais do que uma forma de desresponsabilização: as universidades são chatas, os reitores pedem dinheiro e os alunos protestam, então que tal introduzir nas universidades um princípio de utilizador-pagador? O problema é que o utilizador do sistema universitário, num país desenvolvido, somos todos nós — mesmo os que não lá andam. Nós precisamos de mais “doutores” e não de menos, e precisamos de encontrar formas de encorajar os jovens (e os não-jovens) a entrar na universidade (e a voltar quando necessário). É isso que a Alemanha decidiu há uns anos, introduzindo a gratuitidade total do sistema universitário federal e estadual como objetivo político e forma de a economia alemã aumentar a sua competitividade. Se não tomarmos a mesma decisão, ficaremos para trás.
No entanto, a abolição das propinas, pela qual sempre me bati, não pode também ser agora um atalho nem um remendo. Conseguir uma vitória política com ela seria fácil, há maioria parlamentar para isso. Mas não devemos querer que os políticos usem esse atalho como forma de não pensar mais no assunto-universidade, o que seria apenas a repetição em sinal oposto da atitude anterior. A abolição das propinas deve fazer parte de um repensar geral do ensino superior em Portugal — do seu financiamento, sim, dos seus recursos, mas também das suas funções e objetivos para o nosso país. A prioridade ao ensino superior tem de fazer parte da estratégia para Portugal na próxima geração porque, repito, não há nenhum desafio contemporâneo que possamos ultrapassar sem um ensino superior robusto, tendencialmente gratuito e tendencialmente universal.
O que está dito atrás é o “porquê”. Agora vamos ao “como”. O Marquês de Pombal também inventou um atalho para financiar o ensino: chamou-lhe subsídio literário, e era um imposto sobre o vinho e o tabaco. Pode parecer arcaico, mas é um sistema de vinculação como este que financia as universidades de língua portuguesa em lugares cimeiros nos rankings internacionais: as do estado de São Paulo, e em particular a Universidade de São Paulo (USP) propriamente dita, financiadas com cerca de um terço do imposto interestadual de transporte de mercadorias. Essa escolha ajuda a independentizar os orçamentos das universidades dos humores dos políticos; além disso, a economia beneficia com as universidades e estas crescem com a economia. Mas esta não pode ser uma solução única (ou as universidades passarão a estar excessivamente dependentes do ciclo económico, se forem financiadas por uma vinculação parcial de um imposto, como o IRC por exemplo). O orçamento do estado tem também de desempenhar um papel direto, nomeadamente para assegurar as despesas de financiamento. E pode haver lugar também a um pagamento, através de um acréscimo nos impostos, por parte de quem beneficiou da universidade, desde que os seus rendimentos sejam acima da média (ou seja, em vez de pagar para estudar, pagar depois de ter estudado, se os estudos tiverem dado azo a rendimentos elevados). Se estas três fontes de financiamento se dedicarem, grosso modo, a pagar investimento, despesas de funcionamento, e as bolsas de estudo das gerações futuras, o ensino superior português poderá abalançar-se a outros voos e servir o país como precisamos que ele nos sirva.
E quais serão os outros voos? Esse será o “para quê”. No espaço que me resta, resumo três.
Em primeiro lugar, renovar geracionalmente os corpos docentes das universidades e politécnicos, aproveitando o acréscimo de qualificações internacionais dos doutorados portugueses das últimas décadas.
Em segundo lugar, europeízar as universidades portuguesas, a exemplo do que já foi feito no espaço lusófono, abrindo os seus cursos completos a estudantes de toda a UE, e antecipando a necessidade de criar Universidades da União.
Em terceiro lugar, o mais ambicioso: trazer o ensino obrigatório até à universidade, com a frequência de um ciclo geral universitário, onde se aprendam as bases do que torna uma sociedade contemporânea altamente qualificada (método científico, saber investigar com fontes de informação diversas, autonomia e disciplina de trabalho, bases de direito, economia, história e filosofia). Uma universidade para todos e sempre que necessário, ou seja, uma casa onde se possa voltar a qualquer momento da vida, quando as necessidades profissionais ou pessoais assim o exigem. Para chegar lá, o investimento terá de ser grande — por parte do estado, dos agentes económicos, e dos beneficiários da universidade — mas compensa largamente. Precisamos de dar prioridade ao ensino superior para sermos finalmente um país altamente desenvolvido. Podemos consegui-lo, e é essencial que este debate se faça.
(Crónica publicada no jornal Público em 11 de janeiro de 2019)