(Imagem: Le Pen, Bolsonaro, Orbán, Trump e Bannon, pelo coletivo #Designativista)
|Do arquivo Público 02.01.2019| É revelador que, para além de Marcelo Rebelo de Sousa, o único outro chefe de estado ou governo da União Europeia a viajar para assistir em Brasília à tomada de posse de Jair Bolsonaro tenha sido o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Portugal esteve representado por causa dos seus laços históricos nunca interrompidos com o Brasil. Mas Orbán é outra coisa. Orbán foi a Brasília avaliar o estado da sua obra. Orbán assume-se como o precursor do nacional-populismo, e é como tal reconhecido pelos seus discípulos. A ida de Orbán a Brasília não é só reveladora. É merecida. E não é só merecida. É — para quem tenha seguido os passos de Orbán desde que chegou ao poder em 2010 — instrutiva.
Orbán iniciou a construção daquilo a que ele próprio chamou uma “democracia iliberal” por um confronto com a imprensa. No início poucos prestaram atenção. Mas o confronto com a imprensa era necessário, não só para controlar o debate público, mas sobretudo para identificar um inimigo. Não para controlar a mensagem, mas para fazer passar uma mensagem. O mesmo fizeram Bolsonaro e os seus próximos, ontem, ao tratar a imprensa profissional tão indignamente quanto possível ao passo que os seus “influenciadores” amigos tiveram direito a acesso e tratamento especial. Alguns jornalistas sentiram-se baralhados com os escusados requintes de malvadez que lhes foram dirigidos — horas engaiolados numa sala longe das cerimónias, sem lugar onde se sentarem, refeições confiscadas, esse tipo de coisas aparentemente ridículas — e outros, segundo a Folha de São Paulo, vaticinaram que a atitude da presidência mudaria com a primeira crise política séria por que Bolsonaro viesse a passar. Uns e outros não terão percebido que o tratamento dispensado aos jornalistas não é um acaso, mas uma característica estrutural deste tipo de regimes, a começar por Orbán e a seguir por Trump. O objetivo é apresentar a cada jornalista uma escolha: ser aliado, ou ser tratado como inimigo, para gáudio dos adeptos do novo regime.
Curiosamente, era a Lula e ao Partido dos Trabalhadores que durante anos foi atribuída a vontade de controlar a imprensa. E essa é uma segunda importante semelhança metodológica entre Orbán, Trump e Bolsonaro: acusar sempre os seus adversários daquilo que eles próprios estão a fazer, ou pretendem fazer. Os nacional-populistas acusam os seus adversários de serem autoritários, para melhor poderem ser eles próprios autoritários. Os nacional-populistas acusam os outros de serem corruptos e gananciosos, para melhor poderem eles corromper e meter dinheiro ao bolso. Em todos os momentos, cada acusação é uma assunção de culpa, mas tão estridente e exagerada que se destina a desviar a atenção do público. Quem acusa de tal forma os adversários de serem corruptos não poderia certamente cair no erro de vir a tornar-se igualmente corrupto, interrogam-se alguns? Não. A corrupção de um Orbán, de um Trump ou de um Bolsonaro não será nunca um “erro” mas um modus operandi perfeitamente assumido desde o início. Para quem se pergunta como poderá Bolsonaro governar com o atual Congresso brasileiro, fica aqui a receita: comprando congressistas, como Bolsonaro sempre viu fazer durante os seus sete mandatos de medíocre deputado. O mensalão será, como já era, a regra. Mudará apenas de nome para poder ser praticado de forma ainda mais exagerada e impune, como as famosas “pedaladas fiscais” que levaram à impugnação de Dilma Rousseff e que foram a seguir legalizadas.
Mais curiosamente ainda, acusar os adversário daquilo que se está fazendo é suposto ser, segundo os próprios adeptos da nova extrema-direita, um princípio tático leninista (na verdade, não se sabe de onde vem a frase, mas uma das suas primeiras utilizações documentadas foi pelo nazi Goebbels, que assim descrevia a forma como os aliados tratavam os alemães). E aqui chegamos à terceira semelhança metodológica entre Orbán, Trump e Bolsonaro: aconteça o que acontecer, posar como vítima de uma ameaça maior. Já repararam como para os bolsonaristas, tudo — desde a TV Globo às universidades e à igreja católico — é comunista? Já repararam como Bolsonaro iniciou o seu mandato proclamando que o povo iria acabar com o socialismo no Brasil e ele próprio varrer do ensino toda a “porcaria marxista”? Também no início da decapitação do sistema judicial húngaro, quando todos os juízes no topo da hierarquia foram forçados à aposentação compulsiva, um deputado europeu húngaro me dizia “não se preocupe tanto com os juízes, isso no seu país faria sentido, mas na Hungria os juízes são todos comunistas”.
Há várias estirpes de nacional-populistas, dos verdadeiros crentes aos genuínos oportunistas. Mas todas essas estirpes precisam de exagerar e amalgamar todas as ameaças possíveis — Soros é ao mesmo tempo apresentado como um capitalista e um comunista — porque essa é a melhor forma de normalizar a excecionalidade dos seus planos de poder. Como na sua propaganda a sociedade está sempre ameaçada pelos comunistas, pelos marxistas culturais ou pelos globalistas, e estes fariam sempre pior, tudo aquilo que os nacional-populistas vierem a fazer será sempre necessário e, à partida, justificado.
Destas três premissas decorre uma conclusão. Orbán, Trump e Bolsonaro não são apenas ideologicamente semelhantes. Eles são metodologicamente idênticos — e a sua metodologia é a fraude. Uma fraude moral, cultural e política. Sim, eles dirão que atacá-los é o mesmo que atacar o eleitorado. Esse é apenas mais um método fraudulento que eles têm em comum. Mas não. Dizer que eles fazem parte da mesma fraude é apenas dizer que o rei vai nu. E é o primeiro passo necessário para conseguir restaurar a saúde às nossas democracias. Porque toda a política é, agora, global.
(Crónica publicada no jornal Público em 02 de janeiro de 2019)