Destruam a democracia e depois queixem-se

|Do arquivo Público 04.01.2019| Há dias em que um cronista só se pode lembrar da música dos Rádio Macau: “eu não sei se hei-de fugir / ou morder o anzol”. A maior parte das vezes, fujo. Fugir significa escrever sobre as coisas realmente importantes. A chegada da China ao lado escondido da lua e o que isso indicia de uma nova corrida entre superpotências no espaço. Os vinte anos do euro e como a moeda da UE, mesmo feita pela metade, continua a desafiar as expectativas sobre a sua sobrevivência. O novo Congresso dos EUA e as pistas que ele traz para uma nova política progressista. “Morder o anzol” seria escrever sobre o que não importa — sobre os iscos que todos os dias nos são lançados exclusivamente para chamar a atenção, ganhar audiências e abrir a porta a gente desesperada por dinheiro e poder. “Morder o anzol” seria escrever sobre uma estação de televisão, a TVI, que no desespero da concorrência por audiências leva a estúdio um reiterado criminoso racista para lhe perguntar se “precisamos de um novo Salazar”. “Morder o anzol” é coisa que só se justifica quando por detrás dos golpes publicitários, sejam eles de aspirantes a políticos ou de vendilhões do jornalismo, está em risco um valor mais alto: a democracia e a sua sustentabilidade. Em situações normais, o perigo seria, ao denunciar, acabar por dar ainda mais divulgação a quem não a merece. Mas já não estamos numa situação normal. A degradação do espaço público que este tipo de oportunismos tem provocado já teve consequências funestas — na Europa, no Brasil, nos EUA, um pouco por todo o mundo. O perigo agora é não denunciar e deixar banalizar estes comportamentos. Sim, eles conseguem fazer-nos morder o anzol. Mas a denúncia é uma obrigação de defesa da democracia. O que a TVI fez ontem, ao convidar o criminoso racista Mário Machado para um programa da manhã e apresentá-lo como mero “autor de declarações polémicas” foi uma grave violação dos princípios que sustentam uma relação de confiança com os espectadores e, por conseguinte, da própria integridade do espaço público. Mário Machado não é um “autor de declarações polémicas”. É um dos líderes de um movimento que tem no seu historial variadíssimas agressões racistas e vários outros crimes de coação, ameaças, ofensas corporais e posse de armas ilegal. Foi um dos participantes mais ativos nos ataques racistas do 10 de junho de 1995, que resultaram na morte de um cidadão português, Alcindo Monteiro, por ter pele mais escura. Mário Machado participou diretamente em várias outras agressões nessa mesma noite, iniciando-as com um taco de basebol e deixando pelo menos duas vítimas inconscientes (num dos casos, ele e os seus comparsas gritavam “mata, é preto!”). Apresentá-lo como um mero opinador em temas políticos é mais do que uma falha deontológica. Significa mais do que branquear um ato criminoso. É mais e muito pior do que isso: é elevar um criminoso racista a uma posição de respeitabilidade sem qualquer contextualização ou informação ao público, e com isso contribuir para um caldo de cultura que vai provocar mais vítimas. Se o canal apresentasse um veneno como se fosse uma bebida natural consideraríamos certamente que havia uma responsabilidade moral no caso de essa decisão resultar indiretamente no envenenamento de alguém. Como pode a TVI eximir-se de responsabilidade moral ao apresentar um criminoso racista como alguém que vale a pena ouvir sobre se precisamos de um novo ditador em Portugal? Antes que apareçam os argumentos mal amanhados do costume, isto não tem nada a ver com a liberdade de expressão do senhor em causa. Ele tem, como tem qualquer outro dos mais de dez milhões de portugueses (incluindo alguns criminosos condenados como ele), direito a dizer os disparates que quiser. Mas milhões de portugueses não têm automaticamente direito a dizer os seus disparates num dos programas de maior audiência do país. Muito menos têm criminosos como Mário Machado o direito de serem branqueados ao vivo como “autores de declarações polémicas”— porque isso não é um direito dele, mas uma violação de um direito nosso. E esses direitos nossos — o direito a uma informação fidedigna, o direito a não sermos enganados ao vivo — estão na base de uma esfera pública íntegra, que está na base da própria democracia. Isto que a TVI faz e outras estações como ela vêm fazendo crescentemente é

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Orban, Trump, Bolsonaro: a mesma fraude global

(Imagem: Le Pen, Bolsonaro, Orbán, Trump e Bannon, pelo coletivo #Designativista) |Do arquivo Público 02.01.2019| É revelador que, para além de Marcelo Rebelo de Sousa, o único outro chefe de estado ou governo da União Europeia a viajar para assistir em Brasília à tomada de posse de Jair Bolsonaro tenha sido o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Portugal esteve representado por causa dos seus laços históricos nunca interrompidos com o Brasil. Mas Orbán é outra coisa. Orbán foi a Brasília avaliar o estado da sua obra. Orbán assume-se como o precursor do nacional-populismo, e é como tal reconhecido pelos seus discípulos. A ida de Orbán a Brasília não é só reveladora. É merecida. E não é só merecida. É — para quem tenha seguido os passos de Orbán desde que chegou ao poder em 2010 — instrutiva. Orbán iniciou a construção daquilo a que ele próprio chamou uma “democracia iliberal” por um confronto com a imprensa. No início poucos prestaram atenção. Mas o confronto com a imprensa era necessário, não só para controlar o debate público, mas sobretudo para identificar um inimigo. Não para controlar a mensagem, mas para fazer passar uma mensagem. O mesmo fizeram Bolsonaro e os seus próximos, ontem, ao tratar a imprensa profissional tão indignamente quanto possível ao passo que os seus “influenciadores” amigos tiveram direito a acesso e tratamento especial. Alguns jornalistas sentiram-se baralhados com os escusados requintes de malvadez que lhes foram dirigidos — horas engaiolados numa sala longe das cerimónias, sem lugar onde se sentarem, refeições confiscadas, esse tipo de coisas aparentemente ridículas — e outros, segundo a Folha de São Paulo, vaticinaram que a atitude da presidência mudaria com a primeira crise política séria por que Bolsonaro viesse a passar. Uns e outros não terão percebido que o tratamento dispensado aos jornalistas não é um acaso, mas uma característica estrutural deste tipo de regimes, a começar por Orbán e a seguir por Trump. O objetivo é apresentar a cada jornalista uma escolha: ser aliado, ou ser tratado como inimigo, para gáudio dos adeptos do novo regime.

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