O Bloco de Esquerda levou a primeira grande lição da sua história de dez anos. Foi mesmo o principal derrotado das últimas eleições autárquicas (o CDS não conta porque praticamente nem foi a jogo).
Isto é interessante. Mesmo as pessoas que gostam do BE e que acham que ele tem um papel essencial na política portuguesa — eu incluído — certamente não acham boa ideia que um partido tenha o crescimento por garantido, o que faria dele acrítico, teimoso e desatento.
Uma derrota é uma coisa preciosa, e a sua lição não deve nunca ser desperdiçada. O próprio Bloco de Esquerda deveria sabê-lo bem, uma vez que é, de certa forma, filho de uma derrota — a do primeiro referendo do aborto, que precedeu e influenciou directamente a fundação do partido em 1999. Dez anos depois, tendo feito mais pela alteração do panorama político português do que provavelmente qualquer outro partido, e no fim de um ano brilhante em termos eleitorais, esta derrota vem no momento menos mau.
Mas não pode ser desvalorizada. As eleições locais não são eleições menores. Provavelmente, é mesmo por aí que o Bloco de Esquerda poderia começar. As eleições locais têm uma lógica própria que não deve ser subalternizada pelas eleições nacionais — são demasiado importantes para isso. Um partido de esquerda, com raízes urbanas e com objectivos de modernização do país, precisa de ter a cabeça mais aberta quando pensa a política local. E não é só o Bloco.
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Nas próximas eleições locais, entre os 305 presidentes de câmara, metade não poderá recandidatar-se. O país deveria aproveitar para iniciar uma autêntica revolução no poder local, feita de um novo discurso urbano e de uma nova prática cívica. A preparação dela começa agora.
Um novo discurso urbano começa por duas dimensões aparentemente simples: onde as pessoas moram e como elas se movem. Mas as suas ramificações têm consequências enormes. Num tempo de crise, é comum falar-se dos efeitos “multiplicadores” do investimento público. É bom lembrar que, em política urbana, os multiplicadores vão muito para além da economia. É investimento público que gera novo investimento, é certo, mas igualmente importantes são os seus multiplicadores culturais e sociais. Em cidades com centros degradados com as nossas, são também multiplicadores de qualidade de vida. Em cidades dominadas pelo automóvel, as políticas de transportes públicos são também multiplicadores ambientais. E promover a participação política local é talvez um dos mais poderosos multiplicadores cívicos.
Aqui entra o segundo plano. Uma nova prática cívica significa promover mais debate local, ter mais abertura, criar mais momentos de deliberação. As pessoas podem não saber tudo sobre macroeconomia ou direito internacional, mas em geral têm uma ideia muito concreta de como querem mudar a sua vida na cidade. Ao discuti-lo não só preparam o caminho para essa mudança como melhoram a qualidade da democracia.
É agora que é preciso começar a fazê-lo, abrindo espaço para iniciativas radicais como a elaboração de programas políticos em fóruns comuns e, apenas mais tarde, a realização de eleições primárias locais. A esquerda — toda ela — deve ser pioneira nisto. Eu não quero apenas que, daqui a quatro anos, metade dos presidentes de câmara tenha uma cara nova; quero que eles tenham sido escolhidos de uma outra maneira, mais inteligente, mais exigente — e que saibam melhor o que fazer.
[do Público]
6 thoughts to “A derrota é uma coisa preciosa”
Caro Rui Tavares
Felicito-o por esta excelente análise.
um abraço
Augusto Küttner de Mgalhães
Rui Tavares
Em complemento da sua proposta de preparação a partir de agora duma nova prática cívica que venha renovar o modo de fazer o poder local e de o criar a partir duma democracia de base participada, tomo a liberdade de lhe sugerir uma visita a um “post” hoje colocado por Joana Lopes no blogue “Entre as Brumas da Memória” e intitulado «Democracia e Poder Local», onde se refere a realização anual, desde 2007, da Semana Europeia da Democracia Local (SEDL), iniciativa conjunta do Congresso de Poderes Locais e Regionais da Europa e do Comité para a Democracia Local e Regional do Conselho da Europa.
Este encontro efectua-se sempre em Outubro em datas próximas do dia 15. Aliás o deste ano decorreu entre 12 e 14 deste mês.
Informações detalhadas sobre os objectivos da SRDL e sobre as fichas dos projectos de intervenção em análise poderão ser obtidas através do documento posto “online” naquele “post”.
Até ao momento Portugal faz parte do grupo de 13 Estados, entre os 47 Estados membros, que não têm nenhuma entidade que mantenha contactos regulares com a organização deste evento e ignoro mesmo se alguma vez algum nosso compatriota, a título pessoal ou enviado por alguma entidade colectiva de base ou organização política, participou nestes encontros. Julgo que seria um bom complemento ao trabalho de base a desenvolver desde já, conforme a sua proposta, uma participação regular na SEDL, a qual deveria ser também bem preparada ao longo do ano.
Boa sugestão, temos que alargar horizontes de conhcimento, neste e noutros tempos, para não ter que inventar sempre a roda. Mas o Rui Tavares, é que deve aqui – opinar.
Oi Rui!
Mt bem, q das fraquezas saibamos fazer forças. Este é um óptimo momento para reflectirmos imenso no q queremos e como. Para além disso novas ideias são necessárias para problemas que já se vão arrastando… Por exemplo, que quotidiano urbano, que cidades queremos para o século XXI em Portugal? Por aí passa grande parte da resposta à crise e ao desafio da sustentabilidade.
Abraço!
Já agora, sobre os resultados do BE:
mundoemguerra.blogspot.com
A hubris é perigosa: o aviso veio no melhor momento possível. Mas esta derrota tem a grande virtude de apontar o caminho a seguir.
Esperemos bom senso e cuidados de todos, para não acabarmos de vez com o País.
Aqui não será só do BE, do CDS-PP, mas também do PS, PC e se possivel PSD.