Desta vez apanharam-me: até eu acho exagerado o prémio Nobel da Paz atribuído a Barack Obama.
Há cerca de um ano por esta altura, decidi que iria a Chicago assistir às eleições presidenciais americanas. Na Europa, um debate viciado por oito anos de George W. Bush deixava a direita escanchada numa cega arrogância em relação a Obama: ora negando a importância do então candidato, ora agourando-lhe uma falta de ligação ao “povo”, ora menosprezando o efeito que teria a sua eleição, na maior parte contra todas as evidências disponíveis. Em última análise, encolhiam os ombros e diziam que o putativo anti-americanismo dos europeus, e em particular da esquerda, se converteria rapidamente num sentimento anti-Obama. E em última das últimas análises, acrescentavam, Obama estaria ali para defender os interesses americanos e que isso acabaria rapidamente com as suas simpatias no resto do mundo.
Passado um ano, nada disto se confirmou. Escrevi aqui muitas vezes que Obama seria o mais multilateralista dos presidentes americanos, e isso está amplamente confirmado. O mundo necessitava desesperadamente de superar a estúpida “guerra de civilizações” entre o Ocidente e o Islão e, visto a um ano de distância, é simplesmente notável o respeito que Obama conseguiu entre muçulmanos de todo o mundo. Ainda havia muito trabalho da Guerra Fria para fazer, e Obama abriu um novo ciclo com a Rússia que permitirá diminuir em muito o arsenal nuclear de ambos os países. E, finalmente, o tal do anti-americanismo (que a direita atribuía à esquerda europeia) sumiu-se quando George W. Bush se meteu num helicóptero para abandonar a Casa Branca e aliviar a paciência humana.
Com isto tudo, o Prémio Nobel é exagerado. E por uma simples razão: cada uma destas coisas é uma condição para grandes realizações. Mas as realizações não estão feitas. E não se deve canonizar o santo antes dos milagres.
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Há ainda a hipótese de este ter sido um Nobel “táctico”, atribuído não para reconhecer o passado mas para condicionar o futuro. Nesse caso, eu apostaria que na mente do júri norueguês estava um conflito em particular: Israel e Palestina.
Entre as declarações do dia em que Obama ganhou o Nobel da Paz talvez a mais desconfortável e tristonha tenha sido a de Shimon Peres, presidente da República de Israel. Num momento em que o governo israelita de Benjamin Netanyahu se entretem a meter no bolso o Presidente dos EUA, não dá muito jeito ter de dizer “não” a alguém que não é apenas um estreante na Casa Branca, mas um homem já consagrado por um Prémio Nobel. E esta pressão tem como destinatário o próprio Obama, como quem diz: agora que és Nobel da Paz, comporta-te como tal.
E Barack Obama — de quem se pode dizer tudo menos que tenha mau carácter — pareceu entender a mensagem, recebendo a notícia do prémio com modéstia e inteligência, dizendo que considerava “não merecer” este Nobel prematuro e que o interpretaria como “um chamado à acção”.
Mesmo assim, não me parece que o Comité Nobel tenha agido bem. Não é a pressão de um qualquer prémio — mesmo que seja um Nobel — que condiciona um político, mas a força das instituições à sua volta e os equilíbrios das forças à sua volta. A dinâmica do conflito israelo-palestiniano tem se revelado intratável, e até agora Obama não tem conseguido mais do que os antecessores. Tratando-se da Terra Santa, mesmo o mais maníaco dos obamaníacos quer esperar para ver — e ver para crer.
[do Público]
2 thoughts to “Canonizar antes dos milagres”
Caro Rui,
“Há ainda a hipótese de este ter sido um Nobel “táctico”, atribuído não para reconhecer o passado mas para condicionar o futuro. Nesse caso, eu apostaria que na mente do júri norueguês estava um conflito em particular: Israel e Palestina.”
Concordo.
cumps,
ezequiel
Caro Rui Tavares
Permiti-me “roubar para aqui” algumas frases Suas, e dizer = 100% de acordo:
“O mundo necessitava desesperadamente de superar a estúpida “guerra de civilizações” entre o Ocidente e o Islão e, visto a um ano de distância, é simplesmente notável o respeito que Obama conseguiu entre muçulmanos de todo o mundo. Ainda havia muito trabalho da Guerra Fria para fazer, e Obama abriu um novo ciclo com a Rússia que permitirá diminuir em muito o arsenal nuclear de ambos os países. E, finalmente, o tal do anti-americanismo (que a direita atribuía à esquerda europeia) sumiu-se quando George W. Bush se meteu num helicóptero para abandonar a Casa Branca e aliviar a paciência humana.
Desta vez apanharam-me: até eu acho exagerado o prémio Nobel da Paz atribuído a Barack Obama
Com isto tudo, o Prémio Nobel é exagerado. E por uma simples razão: cada uma destas coisas é uma condição para grandes realizações. Mas as realizações não estão feitas. E não se deve canonizar o santo antes dos milagres.
esperar para ver — e ver para crer”.
Um abraço
Augusto Küttner de Magalhães